"O amor dos quinze anos é uma brincadeira..."
Camilo Castelo Branco, em Amor de Perdição.
Camilo Castelo Branco cantou os seus
infantis amores com uma camponesa de Vilarinho da Samardã, onde passara, como
sabemos, alguns anos da infância.
Luísa,
flor dentre as fragas,
Donairosa camponesa,
Tipo gentil de pureza,
Lindo esmalte das campinas, etc.
Encontram-se recordações destes
amores em duas obras de Camilo: Duas
Horas de Leitura e Um Livro.
Nas Memórias do Cárcere refere-se ao fato de ter encontrado, em 1860, naquela
mesma aldeia, a donairosa Luísa de outrora.
Encarei sorrindo tristemente em meu
sobrinho (Antônio) e ele disse-me:
— Não a vê?
— Luísa?
— Sim. Aquela que tem os braços cruzados.
Contemplei-a, e vi uma velha.
— Aquela que me está olhando?! repliquei.
—A mesma Luísa de ha quinze anos.
E eu disse comigo: "Estará ela dizendo as
outras: — Ele é aquele velho?"
E passei avante.
E
meu sobrinho ia recitando com sentimental ironia os versos do meu poemeto,
consagrado aquela Luísa, que fora nova e linda, etc.
O coração infantil de Camilo borboleteava de flor em flor, de capricho em capricho, como é próprio das mariposas e das crianças.
Organização artisticamente impressionável
e vibrátil, a página dos seus quinze anos é simplesmente adorável, gorjeada das
notas frescas e cristalinas de um idílio, perfumado dos aromas campestres do
rosmaninho e da madressilva. Criado nos montes, a mulher dos campos foi a
primeira que impressionou o seu coração, que a orfandade fizera sedento de
amor. Em 1841, Camilo casara com uma aldeã, uma rapariga de São Cosme de
Gondomar, que se domiciliara na povoação de Friúme, freguesia do Salvador,
concelho de Ribeira de Pena.
O documento autenticamente
comprovativo desta união conjugal diz o seguinte:
Francisco Xavier Alves, Reitor da freguesia
do Salvador da Ribeira de Pena, arquidiocese de Braga:
Certifico
e atesto, que em um livro dos assentos de casamento desta freguesia do
Salvador, concelho de Ribeira de Pena, arquidiocese de Braga, está lavrado a
fl. 43 o assento do teor seguinte: "Camilo Ferreira Botelho Castelo
Branco, filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco, e Jacinta Rosa Almeida
do Espírito Santo, da cidade de Lisboa e de presente assistente nesta freguesia
do Salvador, e Joaquina Pereira, filha de Sebastião Martins dos Santos e Maria
Pereira de França, do lugar de Friúme, desta freguesia do Salvador da Ribeira
de Pena, contraíram o Sacramento do matrimônio por seus mútuos e expressos
consentimentos in facie Ecclesiae conforme
o Concílio Tridentino e Constituição do Arcebispado com comutação de proclamas
para depois de recebidos na minha presença e das testemunhas abaixo assinadas,
a dezoito de agosto de mil e oitocentos e quarenta e um: testemunhas presentes
o Padre José Maria de Souza, do Pontido de Aguiar e Francisco Ribeiro Moreira,
de Friúme, desta freguesia: e para constar fiz este termo era ut supra. O
Encomendado Domingos José Ribeiro. O padre José Maria de Souza. Francisco
Ribeiro Moreira. Tem à margem "Friúme e Vila Real." É cópia do próprio
original, a que me reporto. E por ser verdade passei a presente que juro in
fide Parochi. Paroquial do Salvador da Ribeira de Pena, 21 de Novembro de 1887.
Francisco Xavier Alves.
O fato do casamento de Camilo não era
em 1852 tão ignorado no Porto, que o abade da Sé, padre José Vicente Teixeira,
não declarasse, num documento existente no cartório da câmara eclesiástica daquela
cidade, que Camilo Castelo Branco era viúvo de D. Joaquina Pereira de França.
Vamos agora à historia destes amores
primaveris, fielmente reproduzida de uma carta escrita por pessoa residente no
concelho de Ribeira de Pena. Transcrevo textualmente a carta:
Joaquina Pereira era natural de São
Cosme de Gondomar; veio para a povoação de Friúme, da freguesia do Salvador de
Ribeira de Pena, em companhia de seus pais, Sebastião Martins dos Santos e
Maria Pereira França, que naquela época tinham aqui uns parentes rendeiros das
comendas de São Salvador, Santa Maria de Fiães e outras.
Sebastião Martins dos Santos, na
terra da sua paturalidade, era alfaiate; aqui em Friúme foi negociante, tendo
um estabelecimento de mercearia e fazendas de lã. Era um meio doutor lareiro, lido em Carlos Magno, Princesa Magalona, Profecias
do Bandarra, Lunário Perpétuo.
"Joaquina Pereira era uma moça
reforçada, alta de peitos, de estatura regular, morena, muito simpática, folgazã
e de uma ingenuidade e bondade a toda a prova. Um verdadeiro tipo de camponesa
de São Cosme, do seu tempo.
Desde que aqui estava a família de
Sebastião Martins dos Santos, apareceu aqui Camilo Castelo Branco, em companhia
de sua tia Dona Rita do Loreto Castelo Branco, sogra de Francisco José Ribeiro
Moreira, abastado proprietário em Friúme, em casa de quem Camilo Castelo Branco
se hospedou conjuntamente com a tia: e por aqui viveu despreocupadamente, já
fazendo cantigas para descantes, já ensaiando corridas de galo e entremezes,
sendo sempre Camilo o protogonista destes divertimentos, sendo ponto, contrarregra, ensaiador,
ensaiando os papeis aqueles que não sabiam ler, dando o risco para os tablados
onde tinham lugar as representações: enfim um rapaz vivacíssimo.
A este tempo, Luís da Cunha Lemos,
então secretario da câmara e da administração do concelho, teve que tomar conta
dos lugares de escrivão de fazenda e de escrivão e tabelião do julgado; e como
tivesse aglomeração de serviço, apesar da simplicidade com que, então,
eram regidas aquelas repartições, reconhecendo em Camilo grandes aptidões
convidou-o para escrevente, lugar que ele aceitou mediante cama e mesa e não
sei se alguma remuneração em dinheiro.
Na época das corridas do galo e
dos entremezes, Camilo principiou namoro com Joaquina Pereira, que
lhe correspondia com toda a efusão de sua alma, namoro a contento da família dela,
porque se dizia que Camilo tinha uma grande herança a receber. Por isso
Sebastião Martins dos Santos, que era financeiro, tanto apadrinhou a inclinação
de ambos, que os casou em 18 de agosto de 1841.
Pouco depois de casados, Camilo a
instâncias do sogro foi lecionar-se em latim com o padre mestre Manoel
Rodrigues, da Granja Velha, e como Friúme distasse daquela povoação cerca de 8 quilômetros,
o sogro arranjou-lhe hospedagem na povoação de Viela, em casa de Rita Alves, e
daqui ia à aula da Granja, vindo visitar apenas a esposa aos domingos e dias
santificados.
Quando frequentava o latim, efetuou-se
em Ribeira de Pena um casamento que causou grande ruído, pela oposição que a família
do noivo fazia a este enlace. Camilo, instado pela parcialidade dos oposicionistas,
fez uns versos em que ridicularizava os noivos, os quais versos foram afixados à
porta da igreja do Salvador, versos estes, que se não é avisado a tempo, lhe
renderiam algum desacato pessoal, pois o povo, que era fidalgo e tinha suas
fumaças de valentão, logo que soube quem era o autor, protestou vingar-se dele.
Camilo, por esta razão e por que o
sogro desejava que ele fosse médico, foi para Lisboa e depois para o Porto,
onde frequentou algum tempo as aulas superiores.
Camilo, não sabemos porque, abandonou
as aulas e o Porto, regressando a Vila Real, para a companhia da tia Dona Rita.
Por esta razão o sogro, Sebastião
Martins dos Santos, ficou inimistado com Camilo. A pobre Joaquina Pereira, que
culpa alguma tinha, era a vítima inocente das iras do pai. Sabedora de que Camilo
estava em Vila Real e desejando que ele viesse para a sua companhia ou ela ir
para a dele, convidou umas mulheres de Friúme para irem a Vila Real, com uma
carta sua (Joaquina sabia ler e escrever) em que lhe dizia que estava doente e
que por esta razão desejava vê-lo. E ensaiou as mensageiras para que dissessem
ao seu Camilo que efetivamente estava muito doente. Foram-lhe porém falsas,
fingiram que foram a Vila Real e não foram; esconderam-se às suas vistas três
dias e apresentaram-se-lhes dizendo que Camilo não estava em Vila Real, mas que
a tia Dona Rita lhes dissera que, logo que ele ali regressasse, lhe entregaria
a carta, e com certeza que o sobrinho iria visitar a esposa.
Esta, porém, cansada de esperar,
convidou Bernardo Alves para ir a Vila Real com nova carta. Este, condoído da
pobre Joaquina Pereira, porque sabia da falsidade das duas primeiras
mensageiras, foi a Vila Real, entregou a carta a Camilo, pintou-lhe com negras
cores o estado de saúde da esposa.Camilo, que também ansiava vê-la, e se o não
fazia era por causa dos ódios do sogro e não ter recursos para se sustentar e à
esposa e á filhinha (a este tempo tinham uma filhinha de três a quatro anos)
veio com o mensageiro Bernardo Alves, e ao chegar junto da esposa, vendo-a de saúde,
disse-lhe: — Então eu por aqui tão aflito, e tu de perfeita saúde!
Demorou-se aqui alguns dias, sempre
vigiado pelo sogro, e depois regressou a Vila Real. Nos colóquios que tiveram,
acordaram, pela confissão que Joaquina deles fez a uma sua intima amiga, no
seguinte:
Que Camilo voltaria ao Porto para
continuar os estudos, e que logo que os concluísse Joaquina iria para sua
companhia, e que para educarem a filhinha convenientemente, a meteriam num
recolhimento no Porto.
Infelizmente, porém, Joaquina Pereira
não chegou a ver realizados os seus sonhos dourados, pois que daí a meses
sobrevieram-lhe umas câimbras e faleceu em tantos de setembro,
e a filhinha faleceu poucos meses depois da mãe.
Camilo estava para o Porto e não teve
conhecimento das enfermidades da mãe nem da filha, e só depois do seu falecimento
é que o sogro lhos participou talvez para mais lhe torturar a alma."
Quer-nos parecer que Camilo Castelo
Branco deixou nas últimas páginas do livro Coração,
Cabeça e Estômago uma fotografia da sua vida serena de Friúme, de onde fora
compelido a ausentar-se.
Leiam-nas atentamente.
Um documento autêntico permite-nos
determinar com segurança a data do falecimento da primeira esposa de Camilo:
"Dom Antônio José de Freitas
Honorato, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo e Senhor de
Braga, Primaz das Eespanhas, etc.
Fazemos saber que por parte de... Nos
foi requerido lhe mandássemos passar em forma autêntica a certidão de óbito de
Dona Joaquina Pereira, França, primeira mulher do Visconde de Correia Botelho,
Camilo Castelo Branco, que se acha junta aos papéis com que este obteve licença
com dispensa dos proclamas, para se unir em segundas núpcias com Dona Ana
Augusta Plácido, a qual certidão ante nós reconhecida, é do teor seguinte:
Francisco Xavier Alves, Reitor da freguesia do Salvador da Ribeira de Pena,
Arcebispado de Braga Primaz; certifico, que em um livro findo dos assentos de óbito
desta freguesia do Salvador, Concelho de Ribeira de Pena, Arcebispado de Braga,
achei a folhas dezesseis o assento do teor seguinte: Joaquina, casada, do lugar
de Friúme e freguesia do Salvador de Ribeira de Pena, faleceu com todos os
sacramentos em dia vinte e cinco e foi sepultada aos vinte e sete de setembro
de mil oitocentos e quarenta e sete, foi sepultada como pobre, nada teve, e
para constar fiz este termo. Era ut supra.
O Pároco José Antônio Rodrigues Tem à margem
a nota seguinte: Friúme. Teve missa cantada. É cópia fiel do próprio original a
que me reporto. E por ser verdade passo esta que juro in fide Parochi. Paroquial
do Salvador de Ribeira de Pena, quatorze de julho de mil oitocentos oitenta e
cinco. Francisco Xavier Alves. Segue-se ao mesmo documento ou dita certidão a
declaração seguinte: Declaro que o assento supra se refere segundo informações
a que procedi e que tenho por fidedignas, a Dona Joaquina Pereira França,
casada que foi com o Excelentíssimo Senhor Camilo Castelo Branco, hoje Visconde
de Correia Botelho; e declaro mais que a maior parte dos assentos daquele
tempo estão lavrados com o mesmo laconismo e deficiência de nomes. Todavia,
tenho por certo, que o presente assento é atinente à mencionada Dona Joaquina Pereira França. Era ut supra. Francisco Xavier Alves.
Segue-se o reconhecimento. Nada mais continha a dita certidão e declaração
junta, o que assim certificamos. E para constar Mandamos passar pela nossa Câmara
Eclesiástica a presente forma autêntica a que damos e interpomos a nossa Autoridade
Ordinária e Judicial Decreto, declarando que o documento de onde esta foi extraída
se acha legalmente selado.
Dada em Braga, sob Nosso Sinal e Selo
das Nossas Armas, aos 2 de julho de 1890. E eu Padre Antônio Augusto Gomes da
Costa, Secretário interino da Câmara Eclesiástica, a escrevi. Antônio, Arcebispo Primaz.
— Vista: Monsenhor de Figueiredo Campos."
Como se viu, Camilo Castelo Branco
teve de afastar-se de Ribeira de Pena por um destes vulgares conflitos de política de
aldeia, a que as pessoas de idade e reflexão não podem tantíssimas vezes ser
indiferentes, quanto mais uma criança de quinze anos é temperamento vivaz.
Mas o seu procedimento para com a
esposa foi de todo o ponto correto, como a carta que transladamos, escrita por
pessoa fidedigna, inteiramente justifica.
ALBERTO PIMENTEL
Lisboa, 1890.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)
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