Manuel do Riachão
É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente no
norte, a lenda da misteriosa personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do
Riachão e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico do Piauí a
Sergipe.
Nalguns lugares se acredita que Manuel do Riachão era o Diabo em pessoa.
Noutros o apresentam simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que
vendera a alma ao príncipe da treva, a fim de se tornar o primeiro tocador de
viola e improvisador dos batuques sertanejos.
Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo
sem rival, se afirmando que sua parada em qualquer lugar era prenúncio de
calamidade súbita e inexplicável. O povo guarda lembrança de que secavam os
regatos, não obstante a regularidade das chuvas, se tresmalhavam os rebanhos,
surgiam enfermidades no gado, desmereciam as lavouras, e até as pessoas se
sentiam atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a
tiracolo, atravessava qualquer paragem.
Assim, apesar da admiração que causava por seus altos dotes de
improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia
demorar muito tempo nalgum ponto. Desde logo a indignação popular se levantava
contra seus singulares costumes, e nela procurava um derivativo por causa dos
males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a
enfronhar a viola, e buscar outro lugar, até que, sendo ali também perseguido,
recomeçasse a eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão. Os lugares
que de preferência frequentava eram as tabernas, as mesas de jogo e,
principalmente, os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados
cantores.
Descrevamos a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio
Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
***
Numa noite de São João se folgava ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação. A criançada pagodeava em redor do fogo, assando batata e macaxeira no borralho. Na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folguedo, se conheciam muito e eram parentes próximos, afastados ou vizinhos bastante íntimos.
Assim se notava em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação
imensa, principalmente nos rapazes e moças, quase todos de namoro entabulado ou
de casamento ajustado.
Foi no meio dessa festa simples e boa que se lembrou um dia aparecer o
misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas: Manuel do Riachão, o mais
afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.
***
Esse bardo errante, sempre precedido de antipatia popular, se vira obrigado a abandonar Icó, onde assombrara pela perícia em improvisar mas onde também incorrera gravemente no desagrado público por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento duma praga de lagarta que devastou completamente os roçados de milho.
A calamidade foi tomada como conseqüência do desacato religioso, e
Manuel do Riachão, temendo violência contra sua pessoa, bebeu o último gole de
aguardente, nas tabernas do Icó, pôs a preciosa viola em bandoleira e até lá
foi, estrada fora, procurando novos auditórios pra exibição de seus dotes de
improvisador.
Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João
já estava na chapada do Apodi, sôfrego pra cantar, visto como no caminho não
encontrara parceiro com o qual se divertir.
Manuel do Riachão passava na estrada, quando viu a fogueira e a festa à
qual já nos referimos. Sem hesitação se encaminhou ao lugar da patuscada e, se
aproveitando dum momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e
cantou, com voz forte, estas duas quadras:
Todas as pessoas que estavam na sala, e bem assim a criançada que se
divertia em torno da fogueira, correram a perto de Manuel do Riachão, que, em
pé, no meio do terreiro, continuava tangendo o rasgado na viola, sem dizer
palavra, como esperando que alguém aceitasse o atrevido desafio. Muito alto,
magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em
postura mefistofélica, e um riso sardônico arregaçava o canto dos lábios magros
e arroxeados.
Naquela festa não haveria alguém que aceitasse o desafio daquele
sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam mutuamente, ansiosos pra
uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.
Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um
crioulo de gaforinha crescida, Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu
no mesmo tom e música ao violeiro errante:
Uma salva estrondosa de palma, acompanhada de gritaria dos meninos,
acolheu a cantiga de Xico Bordão, que, indo ao encontro do Riachão, que
continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, o cumprimentou e, o
tomando no braço, o introduziu na sala. Rapazes e moças se sentaram nos bancos
dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes
aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada
um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não
durou muito, pois Bordão se declarou logo vencido e se retirou da sala,
envergonhado.
Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro,
empurraram ao meio do aposento outro cantador, Xico Casa-Velha, que também
tinha suas fumaça de improvisador.
Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu.
Dizendo seu nome numa quadrinha, Riachão se aproveitou dele, e respondeu
que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente pra confundir o
adversário.
Ainda um terceiro cantador se sentou no fatídico tamborete: Era Totonho,
filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma
facilidade.
Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho.
E Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio,
se levantou, fez uma grande mesura, e, recuando até a porta, se preparava pra
se despedir em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a
tiracolo, e sem que alguém soubesse onde entrara, um rapaz muito pálido, de
longo cabelo dourado e anelado, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo
ponche-pala de cor cinzenta clara.
Esse moço se adiantou na sala, e se sentando no tamborete onde foram
vencidos Bordão, Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte
quadrinha, em desafio, se fazendo acompanhar no machete:
Manuel do Riachão, se sentindo nomear em lugar em que julgava ser
completamente desconhecido, teve um estremeção e fixou os olhos fundos e vivos
como brasas no desconhecido que continuava dedilhando no machete, até então
conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção
do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões. E ele, procurando
disfarçar, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:
O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em na
fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem sinal de emoção
denunciou ao ouvir a resposta atrevida de Riachão.
Ao mesmo tempo que em todos os circunstantes crescia o interesse pelo
desafio um pressentimento vago lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a
frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que
viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as mãos, que eram duma
brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:
Manuel do Riachão tornou a fitar os olhos de brasa no moço do
ponche-pala cinzento. O famoso violeiro como procurava saber quem parecia
querer revelar ao auditório matuto sua misteriosa e sombria natureza. No
entanto não deixou de fazer entrada em tempo e responder com visível mau-humor
nos seguintes versos:
Os caipiras começaram a se admirar da feição estranha que tomava o
desafio poético. Quem seriam os dois singulares violeiros, tão estranhos e
diferentes nos modos e nas figuras?, perguntavam, chegando as bocas aos ouvidos
uns dos outros. Quando as últimas notas que acompanhavam os versos do Riachão
se extinguiram o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, ainda
sem levantar a fronte, e cantou:
Riachão se torceu no tamborete, incomodado por essa segunda investida a
sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba
do verso, bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o
despeito:
Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa
resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém,
continuava impassível e de olhos fitos no chão. De seu amplo ponche-pala
cinzento se flutuava como uma neblina levemente dourada que o envolvia todo, e
assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no machetinho, com voz que mais
parecia um rosário de suspiros docemente abemolados:
E ao mesmo tempo que cantava esta copla o moço do machetinho levantava
lentamente os olhos do chão, até os fitar em cheio em Manuel do Riachão, que,
sem se saber por quê, se perturbou com a luz serena, profundamente azul que
deles jorrava e, em sua confusão, deu uma nota falsa no acompanhamento e não
pôde encontrar logo a réplica.
O maço do machetinho tornou a baixar os grandes olhos e, antes que o
outro se restabelecesse completamente, lhe despediu mais esta quadra:
Então Manuel do Riachão já se acalmara, e assim respondeu de pronto:
Minha viola, seu moço, tropica, mas não focinha. Tem ganho em tecla
função coroa e grau de rainha.
No entanto, apesar dessa bravata de cantador laureado, Manuel do Riachão
denunciava no semblante esquálido crescente perturbação. E embora só o encarara
de frente uma vez, o moço pálido bem percebia, e assim saiu com esta:
Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda
resistir, e assim respondeu, incontinenti:
Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório
compreendeu e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera, que, sempre de
olhos baixos, tangia no machetinho com tanta doçura que parecia que os dedos
vaporosos nem feriam as cordas.
Logo que Riachão se calou, o moço levantou na segunda vez os olhos
serenos, tornou a fitar em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e
vibrante:
Manuel do Riachão, ao sentir de novo a luz clara e profundamente azul
dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a se confundir: Os dedos rasparam
na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o corpo todo tremeu e, na segunda
vez nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete,
aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, a voz ficando
aguda e firme:
Sentindo essa provocação direta a seu sentimento religioso, Manuel do
Riachão se ergueu com um salto. Todo o corpo foi tomado por um tremor convulsivo.
E torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as
cordas da viola com tanta raiva, que as, fazia arrebentar, ao mesmo tempo que
berrava com voz sombria:
Ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram e também a fogueira
que crepitava no terreiro. Todos foram tomados de assombro.
No luar que entrava na janela viram que o moço pálido se levantava e se
erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda
que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso
desafio:
Assim que acabou de cantar se ouviu na sala um estrondo medonho. Se
abrindo logo o assoalho, de meio a meio, nele se enterrou e sumiu o nefasto
Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se
elevava do chão. Seu amplo ponche-pala cinzento se transformara em par de asas
brancas como a neblina da manhã. E seu machete tomara a forma duma palma, que
comprimiu ao seio, e, sempre subindo, voou na janela aberta e desapareceu no
espaço, sem que olhos humanos o pudessem seguir.
***
É assim que o povo do norte conta como Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
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