A mula-sem-cabeça
No mundo estranho e singularmente fantástico do qual nos ocupamos, a
mula-sem-cabeça tem lugar proeminente. Não há quem o ignore, por menos versado
que seja em matéria de crendice popular.
A mula-sem-cabeça, assim como a bruxa e o lobisomem, não é uma
verdadeira alma do outro mundo ou espírito sobrenatural, e sim uma criatura
humana, dotada das mesmas qualidades das outras mas que por determinada
circunstância adquiriu propriedades fantásticas e atributos que não se
encontram no resto da humanidade.
A crença na mula-sem-cabeça foi importada de Portugal: É geralmente a
mulher que mantém relação amorosa com padre, o qual, pelo juramento de
castidade que faz ao receber ordem, chama sobre aquela que consigo coabita a
maldição divina, pois o caráter de mula-sem-cabeça é o dum fadário isto é, a
degradação momentânea e periódica do ser humano em vil animal.
Entre as muitas histórias de mulas-sem-cabeça que sabemos, todas
assentando sobre a mesma base da punição da mulher por seu amor pecaminoso ao
padre, e com mais ou menos variantes, contaremos uma que teve como teatro o
velho arraial do Infeccionado, em Minas Gerais.
É uma história singela mas emocionante, que não deixa de ter um grande
fundo de verdade, bem visível a qualquer inteligência.
***
João era um caipira honesto, muito trabalhador e comedido. Nunca o viram
escorado ao balcão de venda, fugia das lôbregas mesas do marimbo e do pacau e
evitava os cateretês da vizinhança.
Homem de foice, machado e enxada, na extensão mais ampla da frase, o
pequeno sítio onde vivia, com sua mãe, já velhinha, era cuidado com esmero. E
assim não nadava na abundância mas estava livre de penúria.
O chiqueiro e o poleiro estavam bem guarnecidos e a roça se dilatava em
fartura de toda sorte.
Além disso João era um rapaz forte e sadio, sem pretensão a grandeza e
glória futura, sob o ponto de vista do saber humano, se satisfazendo com os
escassos conhecimentos empíricos adquiridos na labuta da lavoura e da criação
animal doméstica.
Afilhado de estimação de coronel Fonsecão, chefe político respeitado,
que sempre estava com o governo, e, por conseguinte, nunca declinando a vara do
poder local, nas quadras de recrutamento, que são as mais escabrosas pro
matuto, nunca se metiam com ele, e assim João deslizava placidamente na
corrente da existência sem sofrer os esbarros ou os enovelantes redemoinhos.
***
Colocado em tão favoráveis condições, nosso caipira podia ser um homem
feliz. Mas João era moço, contava 23 anos apenas, e uma circunstância impedia
que sua ventura fosse completa.
Não é preciso dizer ao leitor que, quando se está nessa idade, toda
ardência e desejos vivos, qualquer homem é um Colombo a ansiar os mundos novos
do amor, sonhando dia e noite com os horizontes fagueiros da ternura feminina.
E na perseguição a essa quimera, muitas vezes se veste a alma de espinho ou ao
menos se perturba nossa placidez de espírito.
Assim que fez 23 anos teve que se submeter a essa lei natural. Então
começou a se sentir isolado e muitas vezes se esquecia, debruçado no cabo da
enxada ou com o machado seguro à entalha cavada na fronde do jequitibá, e ali
se perdia em vaga cisma, seguindo com o pensamento uma visão agradável, que se
aprazia em o visitar em tal hora. E depois de a ver desaparecer, continuava o
trabalho, mas um tanto esmorecido, como que se lhe faltasse o alento essencial
a sua atividade.
É que João se sentia homem, forte pra vida e pro amor, disposto à rudeza
do trabalho material e apto pra suportar os encargos da família, essa trouxa
pesada, como alguns dizem. Então por que não procurava uma companheira, bonita,
como sonhava seu coração, boa como mereciam seu caráter e qualidades? Não o
tinha Antonico, um criançola, que nem apresentava barba? Não se casara Juca,
seu irmão colaço e filho de coronel Fonsecão? E até Anselmo, um pobre-diabo sem
eira nem beira, não se atrevera a pedir em casamento a filha de Xico Andorinha?
Então por que não se casava? Estava na idade, e tinha, graças-a-deus,
com que dar de comer à mulher e filhos. Suas terras eram próprias, uma boa casinha,
toda coberta de bicuíba e bem entaipada, lavoura convenientemente tratada e
rendosa, criação de terreiro abundante, e dois cavalos de sela no pasto.
Depois de matutar alguns meses essas ideias, nosso excelente João chegou
à conclusão de que o casamento era pra si coisa facílima de cometer, e ao mesmo
tempo inevitável. Resolveu, pois, o realizar, quanto antes, e, depois, que Deus
o ajudasse! Se os homens não se casassem o que seria do mundo?
***
Quanto à escolha da mulher, era com que João não podia se embaraçar.
Pois com quem se casaria senão com Ritinha, a filha de mestre Manuel Teodoro, o
marceneiro do Infeccionado? Não estava moça feita e bonita, como nenhuma outra
em todo o arraial e lavouras da vizinhança? Não podia ser com outra, estava
claro.
Se estimavam desde meninos e quando brincavam o "tempo-será" e
o "chicote-queimado", já se sentiam vivamente mutuamente atraídos.
Fora sua companheira predileta nas folias infantis, o seria igualmente na fase
da responsabilidade.
No último São João tiraram sortes e estas lhe prognosticaram seu enlace.
De seu amor estava certo. Não havia, pois, que hesitar. Seria Ritinha sua
mulher. E tendo assentado nesse projeto, a pediu em casamento, sendo recebido
jubilosamente, tanto pela moça quanto pelo velho Manuel Teodoro.
Se marcou o noivado ao dia de Reis, e logo nas duas casas se começou a
trabalhar ativamente nos preparativos pra importante solenidade, pois, embora
pobre, João desejava que a festa se fizesse com a decência compatível com o
crédito que gozava.
***
Faltavam apenas algumas semanas pro dia de Reis, pelo qual nosso caipira
suspirava, contando dia após dia, quando um acontecimento determinou alteração
completa no teor das coisas estabelecidas.
Morrera o velho vigário do Infeccionado, bom homem, geralmente estimado
na freguesia e íntimo amigo de Manuel Teodoro, pai de Ritinha. Era Manuel
Teodoro quem armava a igreja, nos dias festivos, e Ritinha quem cuidava da
lavagem e engomação das toalhas do altar e das sobrepelizes, serviço com o qual
granjeava uns cobrinhos, tudo isso por intervenção do velho vigário, que as más
línguas do lugar achavam um tanto parecido com a filha de Manuel Teodoro, pondo
assim em grave risco a reputação da esposa do marceneiro, a veneranda dona
Tomázia, morta havia tempo.
Pra substituir o falecido na vicariato do Infeccionado, nomeara o bispo
padre Salústio, que, quinze dias depois do funeral de seu antecessor chegou à
freguesia. Era moço, ainda com o cheiro de seminário, mineiro de nascimento e
de família opulenta do Grão-Mogol. Tinha feições regulares, pele macia e muito
branca, olhos negros e cheios de vivacidade, bela estatura e maneiras afáveis.
Pela influência que gozava sua família junto ao bispado, se isentara da
condição pouco invejável de coadjutor. E mal recebera ordem conquistara a
vicariato do Infeccionado, aliás bastante rendosa.
A mudança de vigário no velho arraial do Infeccionado pode parecer
insignificante ao leitor. No entanto é sobre si que se estabelece o enredo
desta narrativa singela, e por isso tem alta importância neste momento.
Foi padre Salústio, ou antes, foram seus olhos petulantes, os lábios bem
desenhados na face, as mãos finas e pequenas, e todas as outras graças físicas,
que criaram o pequeno romance do qual nos ocupamos, aliás verídica história,
autenticada pelo testemunho insuspeito do ancião que ma referiu, João André,
antigo tropeiro das estradas mineiras, do tempo ainda em que se batia carga em
Magé e no porto da Estrela, outrora importantes centros comerciais, hoje
tristes e desoladas taperas.
Mas passemos a diante.
***
Três dias depois que padre Salústio se estabelecera no Infeccionado,
recebeu a visita da graciosa Ritinha, filha do velho marceneiro Manuel Teodoro
e noiva de nosso amigo João.
Ritinha era moça realmente formosa, e isto nos faz crer que, embora
escasso de instrução, não era despido de gosto o afilhado de coronel Fonsecão.
De estatura regular, era enxuta de carne e de formas corretas, seio farto sem
excesso, cintura delgada, anca fornida, braços bem dispostos, mãos e pés
pequenos. Os olhos eram pardos, poucos brilhantes mas doces, os lábios cheios,
o nariz bem feito, os dentes brancos e pequenos, a pele látea e tudo isso se
encaixilhando num oval suave, coroado por uma soberba cabeleira acastanhada,
abundante, em fios tênues, de delicadeza e brilho de seda frouxa.
Ritinha vinha em nome do pai cumprimentar o senhor vigário, e ao mesmo
tempo lhe fazer entrega dumas tantas toalhas bordadas de altar que ficaram em
seu poder ao falecer o antigo padre.
Padre Salústio agradeceu muito a fineza da jovem, a fez se sentar e
entrou com ela em demorada conversação sobre a família dela e a do rapaz com o
qual se casaria, bem como acerca de outros assuntos mais relativos aos fiéis no
Infeccionado, e padecimentos e morte do padre velho, acabando por lhe pedir que
continuasse com o encargo de lavar e engomar os panos da igreja, pois não
convinha desviar tão preciosos artigos a outras mãos se atendendo à facilidade
com que o geral das lavadeiras lhes davam descaminho.
Desde o primeiro momento Salústio ficou deslumbrado com a beleza da
moça, pois, embora sacerdote e prezo à castidade por juramento solene, era
muito moço e de temperamento bastante vivo, pra não se impressionar com a
plástica soberba que tinha diante de si, mais realçada por uma candura
combinada com languidez que o perderia.
Ritinha se sentia bem conversando com o jovem sacerdote. Não a
importunavam as perguntas um tanto indiscretas e admirava a graça do falar e
dos gestos, a elegância do porte e a doçura do olhar.
Se sentiram, pois, talvez, sem o quererem, reciprocamente inclinados.
Quando padre Salústio ao se despedir lhe apertou demoradamente as mãos e a
envolveu num longo olhar sensual, que parecia a enredar na língua dum fogo
estranho, Ritinha se sentiu enleada, enrubesceu, tremeu e se retirou
apressadamente sem saber o que responder.
***
Durante todo o dia em que teve lugar esta cena Ritinha não arredou padre
Salústio um só momento da imaginação. Rememorava mentalmente uma a uma todas as
palavras, se lembrava com íntimo prazer dos cumprimentos que dirigira a sua
beleza e procurava reviver na memória todos os traços fisionômicos que achava
duma regularidade e delicadeza superiores. Sobretudo causara vivíssima
impressão o sorriso de padre Salústio, tão cheio de encanto e fascínio.
Falou a mestre Manuel Teodoro com muito calor do novo vigário. Na noite,
vindo a visitar João, se sentiu mal sem saber por quê. Como se a presença do
rapaz lhe perturbasse o seguimento duma ideia cara. Em primeira vez achou o
noivo inferior, grosseiro demais no falar e nos modos, anguloso de feições,
desajeitado de formas. Lhe incomodaram as atenções carinhosas do pobre rapaz e
lhe causaram enfado seus projetos. Pra o evitar pretextou uma enxaqueca súbita
e se recolheu logo a seu quarto. Se deitou mas não adormeceu. Só lhe chegou o
sono quando os galos começaram a cantar, pois no cérebro lhe rolavam com
persistência os mesmos pensamentos, pensamentos nos quais padre Salústio, com
seu encantador sorriso, figurava sempre.
***
O novo vigário do Infeccionado se achou também muitas vezes a cismar na
formosa engomadeira de suas sobrepelizes. Lhe achava um tom distinto, maneiras
superiores às das mulheres vulgares, voz singularmente cariciosa e
principalmente bela como uma tentação.
Saído havia pouco do seminário, padre Salústio estava ainda puro de
inclinação amorosa e até então julgava coisa fácil guardar o preceito da
castidade, onde tantos sacerdotes naufragam. Se empossando em seu vicariato,
trazia o propósito de formar uma reputação de homem pio.
Assim traçando a linha de sua conduta futura, padre Salústio não
consultara as exigências imperiosas de sua idade e de seu temperamento ardente
de mineiro. O resultado foi, logo ao começar a carreira eclesiástica, se sentir
fraco pra lutar contra a paixão à mulher, a mais irresistível de todas.
Durante todo dia e noite seguintes a sua entrevista com a filha do
marceneiro, sentia a todo momento se voltar o espírito à gentil criatura que
lhe deixou o aposento embebido com fragrância entontecedora. E ao adormecer
pensava ainda em sua basta cabeleira acastanhada, sedosa e cheia, onde tão
grato lhe seria repousar a fronte a escaldar de desejos lúbricos, embora se
esforçasse pra os afugentar.
***
Padre Salústio dera a Ritinha uma sobrepeliz pra passar a ferro, pedindo
urgência, talvez por desejo de a ver mais depressa.
Era provável que a moça assim o compreendesse também, pois logo no outro
dia batia à porta da casa do padre Salústio, levando o paramento,
cuidadosamente dobrado e entrouxado em fina toalha de renda.
Ritinha estava ataviada com mais esmero que no dia antecedente. Se percebia
que tivera a pretensão de fazer sobressair seus atrativos. Porém a fisionomia
conservava sinais indeléveis da agitação que na véspera lhe conturbaram o
espírito.
Padre Salústio sentiu pular o coração no peito quando ela, sempre
donairosa porém pudica, assomou à porta. Correu ao encontro, a chamou a junto a
si, a fez se sentar em um canapé e lhe tomando as mãos entre as suas, com a
fronte quase roçando na sedosa cabeleira acastanhada da moça, um tanto trêmulo,
febril, como ébrio pelo perfume daquela carne fresca, sadia e bela.
Escusamos descer a minudência dos detalhes desse colóquio cujo desenlace
é visível. Ambos moços, ardentes, apaixonados e mutuamente inclinados
irresistivelmente, não era possível que vencessem a atração. Depois de meia
hora de palestra caíram nos braços um do outro. Ele ardente, impetuoso, brutal.
Ela nervosa, envergonhada, chorosa, porém se abandonando sem resistência,
intimamente satisfeita pelo arrojo do companheiro.
Doravante Ritinha se transformou em amante do padre Salústio.
***
Embora recatassem muito as relações amorosas, foram percebidas no fim
dalguns dias pelo sacristão, e esse bom homem, sempre pedindo o mais rigoroso
segredo, as revelou aos amigos. Logo todo o arraial era sabedor do escandaloso
evento.
Já Ritinha notava que as amigas e antigas companheiras de escola pública
e de folguedo começavam à evitar, e que, quando passava na rua, percebia dentro
das lojas risinhos abafados nos caixeiros e cochichos que lhe pareciam se
referir a seu amor com o padre. Mas João continuava alheio aos ditérios do
arraial, e, todo engolfado em sua paixão e na completa ignorância dos fatos,
suspirava continuamente pelo dia venturoso em que veria se estender no leito de
jacarandá-rosa de seu noivado, obra-prima de mestre Manuel Teodoro, o delicioso
corpo de Ritinha, de brancura fascinante de leite e todo rescendente a
água-de-colônia.
Essa situação feliz não tardaria a desaparecer.
***
Numa tarde de sexta-feira, João estava sossegadamente em casa, amilhando
seus dois cavalos de sela, um dos quais, alazão, destinava a montaria de sua
dileta Ritinha, quando apareceu uma preta-velha muito conhecida em todo o
Infeccionado, tia Rosa, que na função de parteira entendida, reunia a de
rezadeira de quebranto, mau-olhado, espinhela caída, cobreiro e outros males.
Tia Rosa se indispusera com Ritinha por esta lhe atribuir o furto dum pano de
altar, e sua ida à casa de João só tinha o fim de esclarecer sobre a conduta
imoral de sua noiva.
João a recebeu como pessoa de casa e depois de trocar algumas frases
banais disse, em tom de troça, ao mesmo tempo que continuava a tirar os
carrapichos da crina do alazão:
— Dentro de um ano, tia Rosa, vancê
tem um servicinho nesta tua casa e algumas patacas a ganhar.
— Antes fosse já. Bem precisada ando dalguns cobres pra pagar uma
promessa de 3 libras de cera que devo a nossa senhora dos Remédios. Mas o tempo
anda tão ruim!, nhô Joãozinho. Então, haverá alguma novidade cá em casa, daqui
a um ano?
— Pois vancê não sabe que estou de casamento ajustado pro dia de Reis?
Ora, já vê que daqui a um ano é provável já haver gente nova que te dará algum
pequeno incômodo.
Tia Rosa sabia sobre o casamento de João mas, fingindo ignorar, fez um
gesto de admiração e exclamou:
— O que é que vancê está me dizendo? Pois isso é sério? Ora, não brinque
com tua preta-velha, nhonhô.
— Estou falando sério, tia Rosa. Me casarei no dia de Reis com Ritinha,
a filha de Manuel Teodoro, do arraial.
— Com Ritinha?, nhô Joãozinho. — Interrogou, simulando o maior espanto.
— Sim, com Ritinha.
— Á! então não sou eu quem há de pegar teu filho, nhô Joãozinho.
— E por quê?, tia Rosa.
— Por quê? Porque eu não sou parteira de mula-sem-cabeça. Credo! Nossa
senhora dos Remédios me livre de tal tentação. Cruzes, canhoto! Vá às areias
gordas! Arruda com pé e tudo!
João ficou atordoado com o destampatório da negra, e se sentando no
cocho em que os cavalos comiam a ração de milho, arregalou muito os olhos e
perguntou, ansioso e indignado:
— Mas então tia Rosa: Ritinha é mula-sem-cabeça?!
Ao fazer essa interrogação os punhos se crisparam como se tivesse ímpeto
de esganar a negra, que, sem se perturbar, se persignou de modo beato, e
exclamou tranquilamente:
— Desde que me secou o umbigo, ouço dizer que mulher que anda com padre
vira mula-sem-cabeça. E não há alguém nesta redondeza que não esteja farto de
ouvir que nhá Ritinha está metida com o vigário novo.
— Com padre Salústio?
— Quem duvida? Seu Juca sacristão viu os dois se abraçarem, e eu mesma
que aqui estou encontrei aquela relaxada saindo da casa do padre Salústio às
22h.
Em seguida a negra discursou longamente sobre o fato, e acabou com estas
terríveis palavras seu feroz mexerico:
— Tua noiva, nhô Joãozinho, é uma burra-de-padre, mula-sem-cabeça. Não
olhes mais aquela descarada, que, mais cedo ou mais tarde será montada pelo
Tinhoso, que lhe rasgará a barriga com uma chinela de fogo, pra castigar seu
pecado.
***
Dizendo isto, a preta se retirou, satisfeita por haver realizado a sua
vingança, ficando o pobre caipira abancado no coche, como que atordoado, e a
repetir com obstinação de idiota estas fantásticas palavras:
— Mula-sem-cabeça! Mula-sem-cabeça!
Fora tão rude o golpe que lhe vibrara a maldita negra, que lhe tirou
momentaneamente a faculdade de raciocinar. Sentia uma zoada no ouvido, tremiam
as pernas, o coração como que não batia no peito.
Ficou nesse estado até cair a noite. Só então se arrancou de tão pesada
atonia e a passos lentos foi ao arraial.
Formara tenção de averiguar aquele negócio que tanto o afligia.
Quem lhe dizia que tudo aquilo não passava de calúnia forjada pela negra
a fim de se vingar de alguma ofensa recebida da moça ou simplesmente por
espírito de maldade? Convinha não emprenhar nos ouvidos. Era crível que o
atraiçoasse, comprometendo de modo tão funesto sua própria felicidade? E logo
com quem? Com um padre?! Não! Convinha ser prudente. Tia Rosa, todos a
conheciam, era uma enredadeira.
Assim raciocinando, chegou junto à casa de Ritinha, quando soavam 9
horas. A casa estava fechada, e nas frestas não se percebia luz dentro. Manuel
Teodoro se deitava cedo, porém Ritinha tinha costume de se conservar acordada
até tarde, costurando ou fazendo renda. Por que não se via luz na casa?
João se abeirou a seu quarto, colou o ouvido à frincha da janela, e
procurou ouvir se ela ressonava. Mas nada! O silêncio era completo. Só o
interrompia o cantar estrídulo dum grilo.
Se retirou da janela contrariado, e continuou a caminhar, sempre
avançando ao arraial.
A casa de padre Salústio ficava logo à entrada do largo da Matriz. Era
um velho casarão assobradado, ainda do tempo colonial, todo de cantaria
grosseira e com largas janelas de caixilhos miúdos.
Já de longe o rapaz percebeu que havia luz num dos aposentos da casa do
padre, que se coava através da vidraça duma das janelas, resguardada
interiormente por uma cortina de cassa branca.
Se aproximou, todo apreensivo, e se postou no centro da rua pra observar
aquela claridade que enchia a alma com um luar sinistro.
Depois dalguns minutos percebeu dentro do aposento dois vultos. Era
evidente que no quarto do padre Salústio estavam duas pessoas. Uma delas seria
Ritinha, sua noiva?, perguntava o coração pressago, quase estourando no peito.
Se resignou a esperar. Duas horas passaram com extraordinária ansiedade,
quando, afinal, sentiu ruído de passos descendo a escada, e logo em seguida
sentiu que tiravam a tranca da porta.
João se coseu a um tapume fronteiro, e aguardou a saída das pessoas, que
desciam a escada.
A porta se abriu a meio e um homem saiu à calçada. O reconheceu logo.
Era padre Salústio. O sacerdote observou atentamente a todos os lados, a fim de
examinar se alguém transitava na rua naquela hora e tendo se certificado de seu
isolamento, fez sair de dentro de casa uma mulher. A colheu nos braços, beijou
prolongado a face e tornou a se recolher, fechando a porta.
A mulher estava de tal forma embrulhada num chalé, que não se percebiam
as feições. Assim que o padre fechou a porta começou a caminhar na rua acima.
Nesse momento o sino da igreja dava 11 horas.
João saiu imediatamente do esconderijo e começou a acompanhar a mulher,
esperando a reconhecer.
A mulher embuçada, no entanto, embora não corresse, caminhava com muita
rapidez. Parecia mais deslizar sobre o terreno que andar, e o moço se esbofava
pra seguir.
Todavia tinha um pressentimento de que era Ritinha, e esperava que a
carreira terminaria ao chegar à casa de Manuel Teodoro.
Efetivamente quando a mulher emparelhou com a casa do marceneiro
estacou, e se voltou, naturalmente procurando ver se alguém a acompanhava. Com
a marcha, seu longo xale descera da cabeça, e João julgou reconhecer a basta
cabeleira acastanhada da querida e pérfida Ritinha. Mas a distância em que
estava não permitiu ainda reconhecer perfeitamente o rosto.
O caipira esperava que a mulher entrasse na casa de Manuel Teodoro. Mas
qual foi seu espanto ao ver que a misteriosa transeunte continuava marchando,
batendo a estrada, cuja areia se prateava ao clarão tranquilo do luar, nesse
momento em pleno zênite!
***
Isso o desconcertou.
— Onde iria essa mulher, Ritinha ou outra qualquer a tal hora numa
estrada tão deserta? Da casa de Manuel Teodoro até o sítio de João não havia
outra casa, e a distância entre as duas era a de 3km. O que iria, pois, fazer
essa mulher, Ritinha ou não, porém moça, porquanto seria impossível que padre
Salústio enlaçasse e beijasse tão amorosamente uma velha, o que essa criatura
buscaria em lugar tão isolado?
Também raciocinava:
— Pra que fosse Ritinha, a conhecera sempre tão medrosa, incapaz até de
entrar num quarto sem luz, como duma hora a outra adquirira tamanha intrepidez?
Na entanto, aquela formosa cabeleira castanha não podia ser de outra. Bem
conhecia todas as moças do Infeccionado.
E a mulher sempre andando! A sombra do corpo, muito esguia e fantástica,
rastejava com o caipira. A areia da estrada rangia sob os rápidos, passos,
enquanto o roceiro se perdia num dédalo intricado de conjeturas que a nada
conduziam, acompanhando quase automaticamente aquele mistério que fugia sob a
forma duma mulher.
***
Nisso a criatura chegou a um ponto onde o caminho se bifurcava, formando
o que os caipiras chamam encruzilhada. Era encruzilhada do Ingazeiro, assim
denominada por existir bem na dicotomia uma frondosa leguminosa dessa
variedade.
Esse lugar era preferido pelos tropeiros pra pouso, e, ali se viam
espetadas, no chão, algumas dúzias de varas, nas quais se amarrava a burrada do
lote. Mas quando, ao cair da noite, João lá passou, nenhuma tropa estava
arranchada no pouso da Encruzilhada.
A mulher embuçada estacou ao chegar a esse sítio e se voltou à direção
em que ele vinha. Nosso caipira, como movido por um poder superior, se deteve
igualmente. Nesse instante uma ideia singular atravessou o espírito. Quem sabe
se tia Rosa teria razão e Ritinha, sua futura esposa, viria nessa estrada afora
em cumprimento do sombrio fadário reservado às infelizes que faziam os padres
violar o solene juramento de castidade? O dia, uma sexta-feira, a hora,
meia-noite, tudo lhe acudiu à atribulada imaginação, naquele momento. E o
cabelo, a seu pesar, se eriçara. Teve medo de avançar, de reconhecer aquela
misteriosa mulher em cuja indagação tanto se empenhara.
Ao cabo dalguns minutos a mulher continuou caminhando mas agora
vagarosamente. Se dissipando um tanto o pavor, João prosseguiu na marcha. Dali
a pouco novo sucesso o assombrava. Quando, no anoitecer, passara na
encruzilhada do Ingazeiro, nenhuma tropa ali havia. Mas lá estava uma fila de
cangalhas e um sujeito de pernas cruzadas diante dum pequeno fogo tocava uma
viola muito sebosa e cantava os seguintes versos em toada rústica:
Eu botei meus
cachorros no mato
Para vê se levanta veado
Espingarda de cano quebrado
Eu corri fui cercar no cerrado
Cachorrada latiu, não viu nada
Ó!, minha senhora dona,
No teu mato não tem nada!
E o passo branco avuô
Avuô para as banda de lá
Vai se embora, passo branco
Deixa o caçadô passá
Adeus, morena
Não deixa teu bem pená
João, distraindo a atenção a esse fato de estar ali arranchada aquela
tropa, perdeu de vista a mulher, não sabendo em qual dos galhos da encruzilhada
enveredara. Pra se orientar, ao chegar em frente ao violeiro, disse:
— Boa noite, meu patrício. Vancê me sabe dizer que rumo tomou uma dona
que passou inda há pouco aqui? Seguiu na direita ou na esquerda?
O homem da viola não lhe deu resposta e continuou tocando o rasgado, que
fazia o acompanhamento da sua cantoria. O moço, aborrecido, tornou a formular a
pergunta. Então, o indivíduo, o encarando friamente, deu filma grande e
prolongada risada, que fez estremecer o rapaz, e, torcendo a boca desdentada
num lado, cantou:
Mandei meu menino
depressa
De carreira chamá o doutô
No caminho tinha muita lama
O cavalo atolado ficou
Recoluta no campo tá alerta
Meu menino lá preso ficou!
Ai triste de quem ama
Quem ama padece dô!
E o passo branco avuô
Avuô para as banda de lá
Vai se embora passo branco
Deixa o caçadô passá
Adeus, morena,
Não deixa seu bem pená
Escandalizado pela desatenção do tropeiro, o noivo de Ritinha perguntou
de novo:
— Amigo, toda a pergunta tem resposta. Faças favor de me dizer que rumo
tomou uma moça que passou ainda há pouco aqui.
O sujeito da viola tornou a o encarar friamente, soltou uma gargalhada
mais prolongada que a primeira e em seguida, virando outra vez a boca
desdentada a um lado, cantou com voz aguda:
Triste vida,
tropeiro, coitado!
Vai na venda demora um bocado
Compra à vista, não compra fiado
Chega em casa patrão tá zangado
Periquito não vem no roçado.
Quem fala mal do tropeiro
Merece sê enforcado.
E o passo branco avuô
Avuô para as banda de lá,
Vai se embora, passo branco,
Deixa o caçadô passá!
Adeus, morena,
Não deixa seu bem pená.
E continuou a rasgar a viola soturnamente, sem prestar atenção ao
caipira. João desconfiou do tipo. Será surdo ou idiota?, pensou. E sem querer
perguntar mais, resolveu seguir no caminho que o conduzia a sua casa.
Contudo, mal andara uns 50 passos, avistou logo a mulher misteriosa.
Estava encostada ao batente duma porteira, desmantelada, e na segunda
vez receou avançar, tomando de súbito horror inexplicável. A mulher, assim que
o viu na estrada, arrancou o xale da cabeça, rasgou as roupas e as lançou fora,
se ostentando completamente nua ao clarão do luar. Reconheceu, então,
perfeitamente Ritinha, com a famosa cabeleira castanha, arrepiada pela aragem que
a espalhava sobre as espáduas brancas, duma alvura de leite.
Ritinha, ou melhor a visão, depois de despida, se lançou ao chão
furiosamente, se rebolcou algum tempo na poeira da estrada, e dali a pouco se
ergueu, mas não já como se deitara em terra. O que apareceu à vista do caipira
apavorado foi um monstro horrendo, um animal com a aparência duma mula mas sem
cabeça, lançando um fogo azulado na cavidade da garganta. A coisa medonha
escoiceou o batente da porteira e disparou estrada afora, com estrídulos relinchos,
bater de ferradura e grande alarido de campainha. O rapaz soltou um grito
enorme, e, correndo, voltou à encruzilhada, a fim de implorar a proteção do
tropeiro. A mula-sem-cabeça, sempre relinchando, escoiceando e tangendo seu
fantástico cincerro, vinha atrás, e quase o alcançou. Durante momentos sentia o
calor da língua de fogo que jorrava da medonha garganta.
Era uma coisa atroz o que o pobre moço sentia. Queria gritar e não
podia. Se arredar do caminho, pra deixar passar o monstro, mas não atinava com
o desvio salvador. E assim continuava correndo na estrada, sentindo sempre
atrás de si a horrenda e fantástica alimária.
Chegou enfim à encruzilhada do Ingazeiro. Ali novo assombro o aguardava.
O singular tropeiro que lhe negara resposta pouco antes estava agora em meio da
estrada, de chicote em punho e chinelas nos pés, cortando jaca de modo diabólico. As chinelas, ao bater uma na
outra, tiravam chispas de fogo. Os dedos castanholavam doidamente. Ria de modo
pavoroso e os olhos pareciam dois tições acesos.
Logo que o roceiro esbarrou nessa figura grotesca e medonha deu um salto
a um lado, e a mula-sem-cabeça passou a diante. Então o tropeiro que cortava jaca na estrada, se encarrapitou
nela, com um salto, dando uma longa chinelada, da tábua do pescoço à garupa. Um
risco de fogo ficou no corpo da burra, que começou a corcovear danadamente e a
desandar coices em todas as direções.
João nada pôde ver. No lugar onde se passava aquela cena tudo era poeira
e fogo. Houve um momento em que o caipira sentiu o estranho animal lhe vibrar
um coice nos peitos.
Imediatamente rolou na estrada, sem sentido.
Alguém que passou no outro dia na manhã, na estrada, encontrou o pobre
rapaz estendido e o conduziu a seu sítio, onde a mãe conseguiu lhe reanimar os
sentidos.
No entanto uma violenta febre cerebral o acometera. Durante um mês o
infeliz esteve às portas da morte e, quando chegou a se levantar do leito
estava completamente doido. A moléstia lhe roubara a razão, tão rudemente
maltratada na encruzilhada do Ingazeiro.
Todavia era um doido inofensivo. Trabalhava regularmente e desempenhava
qualquer comissão incumbida. Mas se uma moça se aproximava o pobre louco
entrava na maior aflição e fugia da criatura, gritando, apavorado:
— A mula-sem-cabeça! A mula-sem-cabeça!
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