CAPÍTULO 1: SEGREDOS DE UM CORAÇÃO
Lá, ao longe, num sítio que a vista descortina, mas cuja distancia não pode medir, soerguia-se pálida, merencória e radiante de beleza, a rainha noturna da etérea imensidão. Era o dia de plenilúnio.
A vasta baía do Guanabara, prateada pelos seus raios, apresentava aos olhos da bela e pitoresca Niterói um espetáculo arrebatador, digno de ser admirado pelo mundo inteiro.
Sobre ela prolongava-se o firmamento límpido, sem uma nuvem, no vivo azul do qual, de longe em longe, cintilava apenas uma estrelinha.
A viração suave agitava ligeiramente os ramos das árvores, após um dia em excesso calmoso.
A deliciosa fragrância das flores, que adornavam os jardins niteroienses, embalsamavam o puro ambiente.
Noite mais linda e voluptuosa é impossível que tenha havido em qualquer parte do globo terráqueo.
***
De uma casa da rua da Praia, cujo jardim estava na frente, entreabrira-se havia pouco uma janela e um vulto nela se debruçara.
À claridade do luar, bem se podia distinguir uma sedutora fisionomia feminil, o semblante angélico de uma virgem, que não teria mais de dezoito anos.
Descorada e macilenta, a moça se reclinara ao peitoril e, depois de ter observado por instantes a rainha das noites, fixou a sua vista na rua e ficou queda e silenciosa.
Tão imóvel conservou-se e por tanto tempo, que dir-se-ia uma estátua, porém a estátua da beleza.
A Vênus pagã, se existisse e a encontrasse de frente, velaria o seu rosto, dominada pelo pejo de ver uma mortal excedê-la em formosura.
De súbito a jovem estremeceu.
Ouvindo passos, apurara a vista e viu passar junto ao gradil do jardim, com passos lentos, uma família composta de um homem e uma senhora idosos, adiante dos quais caminhava, dando o braço a um mancebo, uma linda e gentil deidade que quase igualava-se à sua observadora.
Vi-os; e sua fronte pendeu sobre a mão e frases ininteligíveis exalou-se o seu peito.
Não era mister possuir-se a faculdade de adivinhar para saber que a moça sofria. Por fim os seus lábios cessaram de palpitar apenas e moveram-se como as pétalas da rosa, agitadas pela brisa.
Tornou-se então
possível ouvir o que dizia ela.
Deixava destilar os segredos do seu ingênuo e infeliz coração.
***
“São eles.
“Eles – os felizes da minha felicidade, que ousam passar por mim para meu maior martírio.
“Oh! eu sofro muito!
“Amo-o; e sou desprezada, por outra a quem não sou inferior.
“A minha consciência diz-me que os meus dotes intelectuais excedem o nível dos seus.
“Todos acham-me bela; até as minhas próprias companheiras!
“Quais os motivos da sua ingratidão?
“Oh! eu sofro muito!
“E no entanto amo-o com aquele amor puro e veemente que consagro a Deus e a meus pais.
“E no entanto apossa-se de mim a febre do desespero no dia em que não o vejo.
“E no entanto dera a minha vida para salvar a dele.”
Aqui sentidos soluços embargaram a voz da moça.
***
Após alguns instantes continuou:
“Eu deliro.
“O que me impede que o esqueça e o despreze também?
“Acaso merece ele o meu amor?
“Por que hei de carpir a minha... ventura?
“Ventura, sim; que o homem que aflige uma mulher inocente é uma fera, é uma víbora.
“Maldição para ele.
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“Ai! que digo?
“O meu coração, estorcendo-se em convulsões de agonia, rebela-se contra os decretos da razão.
“É-me impossível olvidá-lo.
“Leve-me embora o seu desprezo à sepultura; sempre consagrar-lhe-ei estima, sempre por ele pedirei a Deus.
“No céu mesmo, a sua lembrança e a da adoração que lhe tributo continuará a dominar-me.
“E quando soar a trombeta do anjo da ressurreição; quando no Josafá se encarnarem todas as almas; confiada na magnanimidade divina, tenho certeza que encontrá-lo-ei.
“E então...”
Não pôde concluir;
parece que mão invisível e bondosa, receando que deles irrompesse alguma
blasfêmia, abotoara os seus lábios.
***
“E ela? prosseguiu a moça com voz sumida.
“Crendo talvez que é a sua pessoa e não a sua fortuna que ele adora, sem dúvida corresponderá ao seu amor.
“Sem dúvida, sabendo que eu o amo, não perderá ocasião de ridicularizar-me, sendo por ele aplaudida e acoroçoada!
“Oh! Vergonha! Miséria!
“Até quando há de o dinheiro ser superior à virtude, ao talento, ás qualidades reais?
“Compadecei-vos de mim, meu Deus.
“Já que é-me impossível conquistar ao menos a sua atenção, já que sou ludibrio dum ingrato, já que a carreira de minha vida está juncada de urzes e espinhos, arrebatai-me deste mundo, eu vô-lo peço por Jesus Cristo.
“Atendei-me, Senhor”.
De novo, sufocada pelas lágrimas reprimidas, calou-se a desditosa.
Seus olhos erravam, brilhantes de um brilho sinistro, do céu para a rua e desta para o jardim.
A cor de seus lábios tinha desmaiado prodigiosamente.
Arquejante levara a mão ao peito, como para comprimir o coração, que parecia-lhe querer arrebentar de dor.
Uma tosse convulsiva apoderou-se dela e embargou-lhe de uma vez a voz.
Só então cessou de delirar e, fechando a janela, recolheu-se ao leito.
Quem seria essa vítima do amor?
É-nos unicamente licito as seguintes ligeiras e incompletas informações.
Chamava-se Madalena.
Não sendo correspondido o seu amor pelo indivíduo a quem tributava-o dum modo descomunal, tanto se afligiu com isso a infeliz, que afinal ficou ética.
Havia já três meses que era presa dessa cruel enfermidade, quando se passou o que vimos de referir.
***
Recolhida ao seu
leito, adormeceu logo e dentro em pouco começou a sonhar.
Viu um anjo esplendoroso e de alvas roupagens sorrindo e chamando-a.
Ergueu-se para acompanhá-lo e de súbito, abrindo-se a terra, foi ela precipitada no espaço.
Nessa ocasião, atemorizada, soltou um ai, que foi como o ponto final do seu sonho.
Era o seu último
suspiro.
CAPÍTULO 2: JUSTIÇA DE DEUS
Doze dias depois daquele em que a desventurada Madalena foi habitar com os anjos, celebrava-se um casamento na igreja de...
Os noivos já são conhecidos dos nossos leitores desde a história anterior.
Eram os dois moços que recordaram à malfadada amante a sua desgraça.
Chamavam-se: ela Aurora e ele – Rafael.
A noiva era filha de um ricaço viúvo, cujas riquezas todos ignoravam donde provinham.
O noivo era um rapaz extravagante que, tendo esbanjado uma imensa fortuna, herdada de seus pais, procurava então reaver a perdida posição por meio de uma aliança dinheirosa.
Quis a fatalidade que Madalena encontrasse-o no seu caminho e disso resultou a sua desventura.
A notícia da morte desta não lhe causou a menor comoção; a perda de uma moça virtuosa e pobre não lhe era de nenhum modo sensível.
O seu deus era o interesse.
***
São passados dois anos.
Recostado ao sofá, acabara Rafael de ler a Pátria, jornal niteroiense, em voz alta, para a sua consorte ouvir.
Nele se anunciava um baile para o dia seguinte.
Aurora, que, sentada numa cadeira de balanço, escutava-o, não pôde dissimular a sua alegria, sabendo essa nova.
— Vamos, exclamou peremptoriamente.
— Hoje não, respondeu o marido.
— Havemos de ir.
— Com o meu consentimento, não.
— Era o que faltava: se não quer ir, fique só.
— Não fico, porque tu não vás.
— E por que não vou?
— Porque já estou aborrecido de festas e porque não posso com tanta despesa.
— Ora...
— Não posso, sim; a todas as partes tu queres ir: se não fosse eu, não perdias um só baile, um só espetáculo; num dia gastaras o que eu ganho num mês. Teatros, salões, bondes, barcas: eis as únicas coisas em que tu cuidas.
— E de quem é o dinheiro?
— Cala-te, mulher.
— Não calo-me: de quem é o dinheiro?
— O que gasta é adquirido pelo meu trabalho; o que tens ainda está no banco em que puseste: felizmente tenho tido até hoje o bom senso de não tocar no teu dote.
— Mas eu tenho dinheiro e quero ir a toda a parte; quero gozar da vida, quero me divertir.
— Tu não refletes, Aurora: então por termos dinheiro devemos esbanjá-lo, não fazermos nada, só cuidarmos em divertir-nos e adquirirmos hábitos perniciosos? Não podemos ter filhos?
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***
Havia seis meses que era esta a vida dos dois cônjuges.
No princípio, na lua de mel, de boa vontade frequentava Rafael todos os divertimentos e era um escravo submisso das modas, não só para contentar a jovem esposa, como ainda porque era do seu gênio.
Mas tudo muda: o mundo é um vasto cosmorama, onde as vistas sucedem-se constantemente; um imenso teatro, onde os homens, ridículos comediantes, a cada hora apresentam um aspecto diverso.
Passadas as indescritíveis delicias do noivado e os dias de vero prazer que por algum tempo o seguem, arrependeu-se Rafael das loucuras da sua mocidade e do esbanjamento do dinheiro que havia.
Considerou demais que o seu estado era outro e que outro devera ser portanto o seu procedimento.
Cada um em seu lugar, dizia ele.
Desde esse tempo (ano e meio depois do seu casamento) era a sua vida um continuo martírio.
Ora nuvens ligeiras e pardas, ora grossas e negras, toldavam o horizonte da sua felicidade.
Sempre havia desavenças entre os dois.
Por um lado queria ele, obedecendo à razão, reformar o seu modo de viver. Por outro, caprichava ela em haurir, cada vez a mais largos tragos, a taça do prazer.
É esta a causa da desgraça ser o apanágio da maior parte dos matrimônios: a falta de juízo e de condescendência mútua.
E o pior é que quem fica com má fama é o pobre sacramento!
***
Mil vezes o remorso e o arrependimento tinham inexoravelmente pungido o peito de Rafael.
A lembrança de Madalena perseguia-o sempre e fazia-o (tanto pode o infortúnio!) derramar lágrimas de sincero pesar.
A desoras, era o seu sono perturbado: parecia-lhe que a moça esquálida e lívida erguia-se do tumulo para acusá-lo de sua ingratidão para zombar de seu estado.
Começou a emagrecer a olhos vistos, trazia o seu rosto abatido, de seus lábios viu fugir o riso, tornou-se o seu semblante cadavérico.
Os seus próprios companheiros de extravagâncias não conheciam-no mais.
Dir-se-ia que a sepultura em breve abriria a boca para tragá-lo.
Mas quis Deus que, para maior punição sua, assim não sucedesse.
Uma febre tifoide ceifou em poucos dias a vida da sua consorte e, em razão de não ter ela tido filhos, nem feito testamento, passou a maior parte de sua fortuna ás mãos dos parentes.
***
Rafael é um exemplo da justiça de Deus.
Procurando somente o interesse, em vez das boas qualidades e do amor desinteressado, foi sua existência por isso infelicitada e, como complemento da sua má sorte, foi alfim privado do móbil do seu casamento.
Compadeçamo-nos dele, porque assaz purgou o seu erro: desculpem-me as leitoras, nem no inferno pode haver suplicio pior do que uma mulher impertinente.
Sirva entretanto o
pobre moço de exemplo àqueles que, casando-se, só têm por fim adquirir fortuna.
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2021)
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