Coração de mulher
Que amor sentia pela divinal formosura
de Isabel o malfadado Carlos! Oh! ele amara muito seu pai e sua mãe; a morte
arrebatou-os e ele quase enlouquecera.
Pois bem! Esse amor comparado com o que
ora sentia era insignificante.
Poeta de altas concepções, sonhara uma
virgem bela como as mais belas e capaz de amá-lo com esse amor veemente e sem
limites, tão comum nos romances.
Todas as aparências induziram-no a crer
que em Isabel encontraria o seu ideal.
E pois amou-a.
O seu amor porém não era desses calmos,
meigos, refletidos, que com mais segurança nos pode conduzir à felicidade.
Não: era louco como o tufão, furioso
como o mar em noite de tempestade, constante como a rotação da terra, sincero
como as juras da virgem cândida e pura, ardente como o seio dum vulcão.
Entretanto ainda não tivera um só
indicio de que Isabel consagrava-lhe afeição!
Pelo contrário, quanto mais dominava-o
a paixão, quanto mais exaltado mostrava-se, mais evitava-o ela, com mais
indiferença o tratava.
Suplicas, poesias, lágrimas, ameaças,
nada conseguiu abalar o coração de Isabel.
O coração, disse eu; enganei-me: quem
tal pratica não tem. O que existe em seu lugar é uma pendula gelada, na
enérgica frase de Machado de Assis.
Um ano passou o misero poeta
inutilmente nesta lida insana.
Macilento, lívido e esquálido, o
desgraçado tornara-se a sombra do que fora; os amigos que, após curta ausência,
viam-no, com muito custo o reconheciam.
O infeliz moço caminhava rapidamente
para o tumulo. Não era preciso ser médico para o reconhecer.
Um dia Aurélio Lopes- o seu mais íntimo
amigo- resolveu penetrar o mistério que envolvia a existência do malfadado.
— Dize-me uma coisa, Carlos. Por que
razão tu, que nunca tiveste segredo para mim, me ocultas agora a causa do teu
sofrimento? Se continuas a conservar-te mudo como até aqui, sem ouvir uma voz
consoladora e amiga, breve deixarás este mundo.
— Quem dera...
— Não saio daqui enquanto não me
disseres o que te aflige. Acaso já te esqueceste que sempre te fui útil e que
muitas vezes servi-te de anjo tutelar?
— Oh! não; eu sou grato.
— Em nome desses favores, eu te ordeno
que me abras o teu coração.
— Pois bem; eu te obedeço. Oxalá dessa
confidencia resultasse-me algum benefício.
— Vamos lá. Quem sabe?
— Conheces a Isabel, aquela sereia que
habita na rua de...
— Conheço-a como ás palmas de minhas
mãos.
— É ela a causadora de minha morte.
— Explica-te.
— Amando-a com um amor infinito como o
oceano, sou entretanto desprezado por ela, que qual estatua de carne, é
insensível a este sentimento, que me abrasa o peito, que me há de levar à
sepultura.
— Ouve: eu já não te disse que
conheço-a como palmas de minhas mãos?
— Dissestes.
— Pois então, atende-me. Essa mulher (e
crê que todas as outras) enquanto se vir admirada e solicitada, te desprezará;
mas logo que, por seu turno, se julgar com razão desprezada, é capaz de
rojar-se a teus pés. Finge odiá-la e verás se não digo a verdade.
— Pois sim.
— Vive para a vingança.
— Aceito.
***
O moral exerce imensa influência sobre
o físico.
Quando imaginamos estar doentes ou
sofrer, por fim adoecemos e padecemos na realidade.
Quando sentimos males físicos ou morais
que queremos que eles sejam falsos, muitas vezes vemo-los desaparecer.
Por
isso não estranharão os leitores que um mês depois do que acima relatamos, de
novo lhes apresentemos Carlos sob outro aspecto.
O conselho de Aurélio fez-lhe mossa:
viver para vingar-se tornou-se a sua ideia fixa e dominante.
À força de fingir-se alegre e folgazão,
tornou-se o com veras.
À força de querer engordar e ser
bonito, viu realizado o seu desejo.
À força de fingir que amava a uma
formosa moça, com cuja família dava-se, somente para desfeitear a Israel,
amou-a do mesmo modo que a esta.
Mais feliz porém foi então, pois viu-se
correspondido pela enlevadora Gabriela, com amor igual ao seu.
Em pouco tempo divulgou-se o boato de
que próximo estava o dia do casamento de Carlos com Gabriela.
É impossível adivinhar o grau de
desilusão, de desespero de Isabel, quando teve ciência de tal sucesso.
— Pois há de ele casar-se, murmurava
ela passeando febrilmente na sua câmara e eu ficar solteira, vendo-o passar por
mim com outra mulher, quando o seu lugar me estava reservado? Oh! não: hei de
empregar todos os esforços para que esse casamento não se realize; hei de
procurá-lo e recordar-lhe o amor que me consagrou; hei de explicar-lhe do
melhor modo por que não o atendia, inventando razões plausíveis e valiosas; hei
de enfim oferecer-lhe a minha mão. Ai! desgraçada a lembrança de fingir
desprezá-lo: se eu soubesse que ele era tão volúvel por certo que render-me-ia
logo aos seus pedidos.
Muito tempo ficou assim monologando,
até que, para distrair-se, chegou à janela.
Coincidência fatal! À pequena distância
vinha Carlos, conversando com Aurélio e rindo ás gargalhadas.
— Carlos, disse ela, vem cá.
— Senhora?
— Desejo falar-lhe em particular.
— Com muito gosto a ouvirei, contanto
que não me tome muito tempo: tenho que tratar agora de negócios relativos ao
meu casamento.
— Sempre é certo?
— Sim, senhora.
— Então esqueceu-se de mim?
— É verdade, por sua culpa.
— Mas se soubesse os motivos ponderosos
que me obrigaram a simular o que não sentia...
— Perdão, minha senhora, não quero
ouvi-los: é tarde, é muito tarde. Agora já devo-me à outra, que me adora e à
qual de nenhum modo quero desgostar. Console-se como eu me consolei: enquanto
há vida há esperança... Adeus; se algum dissabor sofrer com isso, queixe-se de
si.
E retirou-se bruscamente, acompanhado
do seu amigo, antes que deixasse a vítima de si própria ver-lhe nos olhos duas
lágrimas de piedade.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
— Então, Carlos, o que dizes a isso?
perguntava Aurélio daí a pouco. Não me agradeces o conselho com que te salvei?
— Eu não, balbuciou Carlos comovido;
mudemos de conversa.
“Tereza”, de Fernandes Pinheiro Júnior
***
Não sob o céu brasílico, nesta natureza
louçã, que tantas e tão variegadas galas ostenta, porém sim nas adustas plagas
africanas, viu a luz do dia Tereza.
A terra do Saara, esse imenso oceano de
areia, onde não raras vezes sepultam-se as errantes caravanas; onde só de longe
em longe encontram-se os oásis criados pela providência para refrigério dos
viandantes; a terra dos leões, dos tigres, dos elefantes, dos camelos, das
hienas, das panteras e dos chacais, foi o seu berço.
Aí passou a infância na companhia de
seus pais, dois pobres pretos ignorantes, mas que a adoravam com todo o ardor
de suas almas selvagens.
Livre e inocente, viu deslizarem-se os
seus primeiros anos.
Quem diria que ali, num clima abrasador, ela desfrutava uma felicidade, que nunca mais gozaria, e num povo bárbaro, entre animais ferozes, ela era mais feliz do que o seria no seio dum povo civilizado, que professa a religião do Crucificado, toda de amor, toda doçura, toda caridade? Mas assim estava escrito no livro do destino e tinha de realizar-se.
***
Maldita seja a escravidão!
Instituição reconhecedora do direito da
força, consagradora do abuso, instituição eminentemente irreligiosa e imoral,
imprime ela um negro labéu naqueles que a defendem. Com que direito um homem
apossa-se doutro, igual a ele em tudo, exceto na cor, e diz-se seu possuidor,
como se ele fora uma coisa, um objeto puramente material?
Não descendemos todos de um mesmo pai e
de uma mesma mãe?
Oh! é triste a existência do misero
cativo, se é que ele existe. Não pode pensar, não pode gozar, não pode
queixar-se, não pode até adoecer: não é senhor em suma da sua vontade.
Haverá coisa pior?
Se o seu coração nutre amor a alguém,
se quer divertir-se, se precisa descanso, tudo lhe é vedado.
O escravo é apenas uma máquina de
trabalho; ou antes, é como o burro, que vive somente para trabalhar e sofrer
maus tratos.
Sabem os leitores o valor da liberdade,
desse celeste bem que nos permite fazermos o que desejamos, que é a fonte de
todas as venturas?
Se sabem, basta dizer-lhes que o escravo não tem liberdade para definir a sua sorte; se não... inútil é continuarmos.
***
“Naquele engano d’alma ledo e
cego,
Que a fortuna não deixa durar muito.”
Estava Tereza, quando um dia, dia
cruel, pois exerceu uma funesta influência em toda a sua vida, um fato
inesperado, mas muito comum nesses vergonhosos tempos em que começa esta
pequena história (1848), veio pôr um termo à sua felicidade e à dos seus.
Chegara a noite.
Dominava então a estação chuvosa, rara
na África, pois quase sempre reina a seca ardente. A chuva, que caía em
catadupas, coava pelas palhas que serviam de teto às mesquinhas palhoças dos
míseros africanos, e um terrível furacão parecia querer destruir estes fracos
abrigos às intempéries do tempo.
Embalada numa rede de grosseiro pano
pelos seus carinhosos pais, acabara Tereza de adormecer, quando súbito
desperta, assustada por aflitivos gritos e pelo estrépito de uma luta.
Ergue-se e vê seus pais lançados ao
chão e sendo amarrados por seis homens brancos, que zombavam de seus clamores e
de suas lágrimas.
Um grito de terror escapou-se-lhe do
peito.
Foi a sua perdição.
Um dos homens lançou-se sobre a rede,
agarrou-a e, visto ter ela desmaiado, amarou-a sem dificuldade.
Logo que virão seguras as suas presas,
carregaram-nas os algozes para bordo dum navio traficante, que estava fundeado
a pequena distância da aldeia em que teve lugar esta cena indigna.
Por toda a parte onde passavam, ouviam
os pais de Tereza e ela, gritos, ais e lamentações.
Toda a aldeia era igualmente vítima da
crueldade que os aniquilaria.
Muito pode a cobiça.
***
Passou-se um ano.
O navio em que embarcaram esses
desgraçados tinha chegado ao seu destino.
Durante a viagem, os pretos
desesperados pela fome e por verem-se reclusos no porão dum navio, onde não
havia luz, resolveram sublevar-se, a fim de recuperar a liberdade.
A sua ignorância não os deixou refletir
que deviam achar-se no alto mar, que nada entendiam da navegação e que,
vencedores ou vencidos, era a mesma a sorte que os aguardava-a morte.
Embora! Antes morrer livre do que
existir escravo!
E pois rebelaram-se.
Quando o encarregado de fornecer-lhes o
alimento, abriu a boca da escotilha para dá-lo, no quinto ou sexto dia da
viagem, um negro possante saltou sobre ele, agarrou-o e caíram juntos no fundo
do navio.
Aproveitando-se rapidamente deste
incidente, todos os seus companheiros começaram a subir para a coberta do
navio, antes de darem tempo a qualquer resistência.
Em breve acharam-se todos em cima.
Negros e negras, moleques e negrinhas, formavam um todo medonho, compacto,
terrível.
O furor estava desenhado em todas estas
noturnas fisionomias.
Entretanto o comandante chamara às
armas toda a tripulação do seu navio, e; aparecendo de súbito seguido dela,
armada de espingardas e machados, intimava aos míseros africanos que de novo
voltassem para o lugar donde tinham saído.
Longe de obedecerem-lhe, eles começaram
exterminá-los, apontaram-lhes as espingardas.
“A nada disto os brutos se moveram.”
Pudera não! Se eles ignoravam a
serventia da arma de fogo...
Afinal, fazendo grande vozeira,
arremessaram-se ameaçadores sobre os seus algozes.
Um repentino clarão tinha iluminado
todo o navio e soara um estampido horrível.
Mortos e feridos caíram alguns; à maior
parte porém derribara o susto.
Tinham sido as espingardas
descarregadas e de novo se estavam carregando.
Já humildes e de mãos postas, os negros
pediam perdão, choravam, prometiam obedecer a tudo, mas não foram atendidos:
uma segunda descarga ceifou mais algumas vidas, que jaziam prostradas!
Vergonha, crueldade sem nome!
Certos de que os míseros africanos não
mais resistiam, ordenou-lhes o seu principal verdugo que de novo descessem ao
porão.
Era de comover o coração mais
empedernido a vista daquele bando de criaturas seminuas e negras, caminhavam
voluntariamente para o seu suplicio.
Depois de restabelecer a ordem com a
morte de vinte desgraçados com os ferimentos de oito, que, à míngua de
tratamento, pereceram depois, seguiu o navio a sua rota e chegou ao fim sem
nenhuma outra novidade.
E diziam-se cristãos os tripulantes
desse navio! Que escárnio!
Verdadeiros monstros, tigres sanguissedentos, carniceiras hienas, eis o que eles eram.
***
Entre as vítimas dessa atrocidade,
achava-se o pai de Tereza. Uma bala arrebentara-lhe o crânio e prostrara-o sem
vida.
Oh! É me impossível descrever a dor que
sentiram sua mulher e a filha, quando viram-no exalar o último alento.
Não há termo que exprima a intensidade
do desespero dessas desgraçadas criaturas. Eu quisera só que as vissem nesse
momento essas almas ignorantes e cruéis, que julgam que o escravo não tem
sentimento. Sim, eu quisera que as vissem lançarem-se, lacrimosas e exalando
pungentes gemidos, sobre o cadáver gélido do seu parente, abraçá-lo,
beijarem-no e examinarem-lhe o coração incessantemente, como que duvidando da
cessação da sua existência.
A estas mostras de profunda e sincera
dor, veio arrancá-las a ordem de regressarem à sua prisão.
Ai! Se elas soubessem que, para
melhorar a sua sorte, perderiam o seu único amigo, por certo que
conservar-se-iam alegres no infortúnio. Quanto mais se soubessem que,
perdendo-o, continuariam a sofrer...
É esta a sorte da humanidade: sempre desejosa de alcançar mais do que possui, ainda quando o não necessite, faz mil esforços para melhorar e as mais das vezes encontra o veneno onde esperava o néctar, depara com o desespero onde via a esperança, acha o pranto onde sonhava o gozo, cai fulminada pela morte onde cuidava lobrigar a vida.
***
Vinte e dois anos são passados depois
destes tristíssimos fatos que temos narrado até aqui. Que rapariga é aquela,
ainda moça, simpática, vigorosa, que com passo lesto, caminha para uma praia
deserta?
Sabê-lo-emos em breve.
Chegando à praia, subiu um rochedo que
havia, e com bastante dificuldade.
De repente deu um grito. De medo por
certo não era ele, pois quem vai a uma praia abandonada alta noite, não receia
nela encontrar quem quer que seja, porque para bom fim não vai. Ao sinal que
deu da sua presença, um vulto, que estava assentado no alto do rochedo,
voltou-se rapidamente e perguntou com voz rouca e vibrante:
— Quem és tu?
— Minha mãe! Exclamou a recém-chegada,
que sem dúvida conheceu quem já ali estava, e atirou-se-lhe nos braços com um
ardor inexplicável.
Esta também reconheceu-a logo, pois foi
pronta em retribuir-lhe a efusão de alegria e murmurou com voz sufocada:
— Tereza... minha filha!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
— Decorreram-se alguns momentos
difíceis de descrever-se.
De parte a parte trocaram-se mostras de
ternura e recíprocas perguntas, tão seguidas que todas ficaram sem resposta.
Por fim, restabelecida a calma,
perguntou a mãe de Tereza:
— Que te trouxe aqui, minha filha?
— O desejo de pôr termo a meus dias.
— Por quê, Tereza?
— Porque, estando prestes a ser mãe,
não quero dar à luz um desgraçado, não quero que meu filho seja escravo. Ai! Se
soubesse quanto tenho sofrido...
— É verdade, minha filha: conta-me a
tua história, que depois contar-te-ei a minha. Começa já, que estou impaciente
por saber o que te aconteceu desde o fatal momento em que nos separamos.
— Pois bem, minha mãe: ouça.
E ali, sobre um rochedo, numa praia deserta, ouvindo o gemer das ondas açoitadas por um vento frio e tempestuoso, unidas por amical amplexo, a miúdo derramando amargas lágrimas pela recordação de passadas desgraças, as duas filhas da desditosa e inóspita África, desprezando os relâmpagos que sem cessar sulcavam o espaço e os trovões que ribombavam de quando em quando, sem sentirem a chuva que a grandes borbotões cabia das nuvens prenhes d’água, fizeram uma a outra, cada qual por sua vez, a narração dos seus infortúnios.
***
Eis em resumo o que lhes sucedera desde
o momento em que as deixamos.
Logo que chegaram ao seu destino foi
todo o carregamento do navio, inclusive elas, vendido a um negociante
milionário, cuja fortuna, como muitas que por ali existem ainda hoje, tinha
procedido da sujeição ao cativeiro de milhares de criaturas.
Este, por seu turno, vendeu-as, porém
cada uma a um senhor diferente.
Debalde empregaram elas a suplica e o
pranto para serem vendidas juntamente.
Debalde!
Nenhum dos seus compradores quis ficar
com ambas e os seu possuidor não tinha coração. Como o conquistador, que só
detém-se quando é derrotado ou quando morre; como a sanguessuga, que só repleta
de sangue, abandona a vítima; a sede de ouro dominava-o em todos os atos de sua
vida; nada fazia de que não lhe resultasse algum proveito: era um verdadeiro
homem de metal, na fase do mavioso cisne Casimiro de Abreu.
Estúpido em excesso, figurava no
entanto em toda a parte, porque tinha dinheiro, assemelhando-se o pirilampo,
que, sendo um mísero inseto, chama nas trevas atenção sobre si pela sua
sulfurosa luz.
Desde o dia em que foram separadas
nunca mais se viram essas infelizes.
A mãe de Tereza foi vendida a um
péssimo senhor, que continuamente a maltratava com injurias e pancadas.
Depois de ter-lhe servido muitos anos,
afinal vendeu-a ele, por precisar de dinheiro, a um homem velho e piedoso, que
morrera há pouco, deixando-a livre.
Mas de que lhe servia então a
liberdade?
Afastada para sempre, pensava, do único
ente a quem tinha afeição, nenhum desejo tinha de viver.
Contudo, procurou subsistir e alugou-se
numa casa de família, onde os chefes, inimigos irreconciliáveis da malfadada
raça de Cam, continuamente a atormentavam com uma crueldade pasmosa.
Desesperada enfim de obter neste mundo
melhor vida e de encontrar a sua filha querida, ideia que sempre a alentou sob
o jugo do cativeiro, resolveu suicidar-se. Para esse fim tinha-se dirigido
àquele lugar e onde buscava a morte achou a maior ventura que lhe era possível
alcançar.
Por seu lado, Tereza fora vendida a um
fazendeiro, que não era dos melhores senhores, e que comprara-a para o serviço
da roça.
Exposta a todo tempo, manejando pesada
enxada, nunca tivera outro pensamento que não fosse para sua mãe: nunca
passou-se um só dia em que lágrimas saudosas não sulcassem as suas faces,
abrasadas pelo sol.
E muitas vezes, fazendo-a o excesso de
sua dor esquecer do trabalho, era chamado a ele, experimentando a pujança do
musculoso braço do feitor.
Pois se era escrava a mesquinha...
Um dia finalmente, passados longos anos
de um martírio indescritível, abandonou a casa do seu senhor, na qualidade de
fugida.
Este recorreu aos anúncios nos periódicos e em breve foi ela reconduzida a casa, onde declarou não querer conservar-se, prometendo fugir de novo.
Foi por isso transferida a outro
possuidor, que levou-a para a Corte, teatro destes últimos acontecimentos.
Aí, cansada de sofrer e não querendo
aumentar com o seu filho o número dos desgraçados, decidiu também, como a mãe,
pôr fim aos seus dias.
E, singular coincidência! Mãe e filha,
levadas pelo mesmo desejo de fundar os seus males, acharam-se reunidas, por
assim dizer, na borda do tumulo, após longo e penoso apartamento.
Pela primeira vez em sua vida
conheceram essas ignaras criaturas a bondade da Providência, isto é, que havia
um ente superior a todos, arbitro do universo, que delas tinha-se compadecido.
Mas...
***
Por que tanta precipitação em
julgarem-se felizes!
Se sua mãe tinha encontrado o que
buscava, a Tereza não acontecia o mesmo. A sua situação era idêntica à
anterior.
Em breve conheceram a realidade e
meditaram.
— Tereza, disse por fim a velha, eu
estou contente: vi realizados os meus únicos e ardentes desejos. à tua sorte
porém não melhorou e só lhe descubro uma saída: trabalhemos, trabalhemos ambas
com ardor e incessantemente para a libertação de teu filho; invoquemos a
caridade pública, façamos tudo para obter o dinheiro necessário para libertá-lo
na pia. Quanto a ti... confia em Deus e espera.
— Aceito, minha mãe.
E, dando-se as mãos, desceram o
penhasco.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
No dia seguinte era promulgada a sabia,
moral e religiosa lei de 28 de Setembro de 1871, e daí a pouco dias nasceu
livre o filho de Tereza.
Esta, aconselhada por alguém,
dirigiu-se uma noite à rua dos Beneditinos e no outro dia pôde recordar-se, sem
ter quem lho vedasse, do tempo que passara no seu país natal, criança e feliz,
na companhia de seus estremecidos pais.
A maçonaria tinha estendido sobre ela a
sua proteção benéfica e desde esse dia era senhora da sua vontade, tornara-se
de novo um ente racional.
Reconhecida a isso, nunca deixou ela
passar uma noite sem orar por seus benfeitores, em companhia de sua mãe.
Depois recordavam saudosas as cenas que
tinham presenciado em sua pátria e chorando deploravam a morte do esposo e pai,
vítima da cobiça, da infâmia e da falta de religião.
---
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2021)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...