12/18/2020

Resenha de “Marcoré”, de Antônio Olavo Pereira

 

Resenha - “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira (José Olympio Editora – 13ª Edição)

Por: Paulo Marçaiol
Blog: esperandopaulo

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“Minha terra tem um viver miúdo, semelha o curral de Sabino. O gado se movimenta pelas pastagens em grupos distintos, come, trabalha, muge, ama. Os bezerros correm, saltam as moitas. Os bois velhos são afastados, vão para o cutelo”.

Um principal traço distintivo deste romance do escritor paulista Antônio Olavo Pereira é a ausência de heróis, a quase inexistência de grandes conflitos dramáticos que desencadeiam tragédias humanas. Pelo contrário, a história vai se passando com a descrição da experiência cotidiana de homens e mulheres de uma cidade do interior paulista em meados do século XX. Uma criança que nasce, um casamento que se desfaz, um coronel que morre de velhice, um padre que cuida de suas ovelhas, tudo se passando como se se sucedem as estações, ou o “gado miúdo de Sabino”.

Isso não significa que a leitura da história em algum momento descambe no tédio. Pelo contrário! Segundo o posfácio de Antônio Houaiss:

“Obra essencialmente anti-heroica, vinculada com o cotidiano em fidedigna coerência, consegue, não obstante, manter um nível de excepcional interesse em todas as suas páginas – pela sabedoria com que são conotados os acidentes do efêmero, nos planos de vida que se cruzam dentro da trama”.

A história é narrada em primeira pessoa por Mariano, um oficial maior que trabalha no cartório de seu sogro numa provinciana cidade do interior paulista. Quando do início na narrativa, Mariano tem 40 anos, está há 10 anos casado com Sílvia e, após uma longa espera e expectativa, descobrem finalmente a gravidez.

Os primeiros instantes do livro remetem à noção de paternidade. Desde a gravidez, ser pai já significa ser forçado a modificar hábitos enraizados. Silvia nega o sexo ao seu marido, já na gestação. Após o nascimento de Marco Aurélio, vulgo Marcoré, Sílvia confessa a Mariano que ao longo das dificuldades do parto, fez uma promessa religiosa em que abriria mão da relação carnal em definitivo, desde que a criança nascesse e crescesse com saúde. A esposa consente mesmo que Mariano mantenha mesmo relação extra conjugal: sua preocupação e sua dedicação é exclusiva para Marcoré.

Sobre a notícia de que Sílvia renunciava em definitivo à relação carnal, comenta Mariano:

“Já senhora de si e vendo-me rendido, mudou de assunto com habilidade. Eu continuava atordoado, mas já consciente de que passáramos a representar dois corpos perfeitamente distintos, tanto quanto possível sintetizados na criança de cílios longos que dormia ao lado de nossa cama. Tinha a sensação de que uma cunha se introduzira entre nós, de que uma fenda se produzira em nossa intimidade”.

É interessante notar que o nascimento da criança cria de fato uma fenda, primeiro separando os pais, depois colocado em oposição Mariano e sua sogra, D. Ema, e por fim cindindo Marcoré e seu pai. Todo o núcleo familiar que reside sobre o mesmo teto, Mariano, Sílvia, D. Ema, o sogro Seu Camilo passam a viver em função de Marcoré, de sua felicidade e de sua alegria. Este engajamento é tragicamente o ponto de partida da dissolução da família, acarretando num final em que a solidão e a tristeza parece ser o horizonte comum da vida todos.

Depois da morte dos parentes e do abandono pelo filho, que se muda para São Paulo, o narrador em seus instantes finais suscita sentimentos de solidão que não envolvem revolta, mas o cansaço físico e espiritual oriundos da velhice, bem como o reconhecimento da fatalidade do drama vivido:

“A noite avança, há uma paz profunda na casa deserta. Não mais que lembranças de seus mortos lhe povoam o silêncio de trevas. Todos os ruídos de vida que me chegam são insólito, vêm da cidade que se prepara para receber o Ano Novo.

Nenhum sentimento de revolta ou inconformidade. Tenho o coração calmo, embora fatigado por toda uma existência de equívocos. Nenhuma constrição também, pois me recuso a aceitar o papel que me foi atribuído por meu filho. No balanço geral, cuido só ter havido vítimas, sem discriminação possível dos culpados”.

Para Houaiss, o estilo da linguagem do livro é conciso, “preciso, enxuto, correto e sábio”. Antônio Cândido menciona “ainda a perfeição da língua e da composição, sem uma falha, sem o menor deslize, de um gosto apurado e, ao mesmo tempo, de uma total eficácia”. A obra igualmente recebeu elogios de Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e José Lins do Rego, além de ter o autor recebido o prêmio Coelho Neto pelo romance da Academia Brasileira de Letras. Trata-se de um romance intimista, na melhor tradição dos romances de Graciliano Ramos: a franqueza do narrador e o intimismo com que partilha suas emoções remontam ao Paulo Honório de São Bernardo e ao Luís da Silva de Angústia. 

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