O pecado da
flor
Conta-se que um piedoso sacristão, homem santo e temente a Deus, morreu subitamente enquanto fazia suas preces matutinas. Sua alma ascendeu num lance de tempo aos céus, onde fora recebida por uma legião de anjos, cujas vestes se assemelhavam às dos mortais, e os quais se mostravam jubilosos com sua chegada, como se tivessem preparado com antecedência uma gloriosa festa em sua homenagem.
O beato, embora confuso, sentiu que de fato fora
arrebatado ao seio de Abraão, e que estava ali para receber o seu tão almejado galardão.
Desde que assumira suas atividades na sacristia da
igreja, entregou-se de corpo e alma ao seu ofício, acreditando que por meio
deste árduo trabalho alcançaria os tesouros celestiais e a consequente vida
eterna.
Inicialmente seus olhos fitavam em êxtase cada
ponto daquele glorioso recinto, como se buscassem encontrar ali o próprio Senhor em pessoa, o
qual, em recompensa pelo seu esforçado labor na terra, deveria recebê-lo com
uma coroa de ouro reluzente na sua santa destra.
Em
seguida fixou seu olhar ao longe e viu um vulto como de uma sombra, o qual parecia acenar-lhe com as mãos, como que o convidando a se aproximar. Os mensageiros de Deus abriram
então passagem e ele avançou apressadamente em trote. Correu sem parar durante um
tempo indeterminado, porém quanto mais progredia em seus passos, mais longe ficava
da estranha miragem, de modo que nunca a alcançava. Exausto, sentou-se numa
pedra, sendo rodeado pela miríade de anjos, que agora declamava, em coro, uma trova
mundana:
Até nas
flores se encontra
A diferença da sorte;
Umas enfeitam a vida
Outras enfeitam a morte.
Tomado de grande espanto com a entoação de um canto profano
por seres tão gloriosos e santos, sentiu sua alma titubear num mar de dúvidas.
O que significaria tudo aquilo? Súbito, ergueu-se num salto e seguiu em grande
velocidade por uma vereda escura que se alongava até um imenso lago, cujas
águas pareciam refletir a cor brilhosa do ouro.
Uma embarcação dourada o aguardava junto a um
imponente farol, o qual tinha como foco luminoso uma enorme tocha acesa que,
além de clarear a vista, também aquecia o corpo, e de tal modo que o suor
descia em bagas por todos os seus poros. Lembrou-se então de uma passagem das
Escrituras, a qual discorre sobre a Nova Jerusalém, cidade celestial adornada
de toda espécie de pedras preciosas. Foi quando cogitou para si a ideia de que poderia
estar em alguma região desta esplendorosa cidade, e que aquele barco seria o
veículo divino que o transportaria à majestosa presença do Senhor.
O barqueiro que o recebeu tinha um semblante austero e
carrancudo, e o barco, que de longe fazia transparecer a mais pura ostentação da
divina luz, era na realidade de aspecto caótico e terrivelmente amedrontador.
Sem dizer uma só palavra, o misterioso homem remou a
toda pressa, enquanto o outro, imerso em absoluta confusão, parecia agora
vacilar quanto ao glorioso destino que lhe aguardava, e permaneceu durante o longo
trajeto introspectivo e todo mergulhado numa melancolia que mais transparecia
dor e desespero.
Quando chegava ao termo da viagem deu por si que
apenas ele seguia no barco, e isso o impressionou sobremaneira. Desceu.
Enquanto seguia por uma montanha íngreme e escura, olhou para trás e viu a
embarcação tomada de imensas labaredas, a que se seguiu um grande estrondo, que
fez espargir pelos ares um cheiro acre de enxofre. Tomado de imenso terror, caiu
de joelhos, ergueu as mãos aos céus e clamou misericórdia para sua miserável alma
pecadora. "O inferno é o meu
destino", pensou. "Mas por quê? O que fizera de errado para merecer
tão terrível castigo?" Não se lembrou de nada. Toda a sua vida não fora
outra coisa senão piedade e dedicação à causa santa do Senhor.
Ao alcançar o cimo da montanha, avistou bem à sua
frente, pairando no ar, uma enorme balança com dois imensos pratos pendentes:
um dourado como ouro, o outro, escuro como o carvão. Agora, tomado de nova esperança,
tinha certeza que no primeiro prato seriam pesadas suas boas ações, suas
esmolas, suas virtudes evangélicas, suas incontáveis penitências, enfim, toda
sua vida de devoção e santidade. Por
isso apenas limitou a olhar para o outro prato com certo desdém, sem ao menos
ponderar se porventura haveria nele algo que pesasse contra si.
Inesperadamente, porém, o prato negro moveu-se de leve,
e aos poucos esse movimento foi aumentando, até que de todo se deslocou para
baixo, fixando-se, por fim, no solo, enquanto no ar mantinha-se suspenso o belo
prato ornado de ouro.
Que pecado tão grande teria cometido ele a ponto de
deslocar completamente para baixo o prato tenebroso?
Neste instante um anjo que esteve algum tempo a mirá-lo
de longe, saltou para perto dele e o ergueu nos ares por sobre a imensa
balança. Dali ele viu atônito uma pequenina rosa vermelha atirada bem no fundo
do prato escuro. Então se lembrou do dia em que, numa bela manhã de domingo, roubara
do quintal vizinho uma exuberante flor.
— O teu grande pecado —
disse resoluto o mensageiro de Deus — não foi
teres roubado a flor, mas não a teres levado às mãos daquela a quem tu amavas
e que ainda hoje sofre de amor por ti.
Dizendo isso, o ser divino bateu fortemente
as asas e, num movimento precipitado, lançou-o com força nas profundezas do
abismo.
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