A rosa branca
A viúva do comandante Henriques dizia a toda a gente que, das suas
duas netinhas, dava preferência à primeira; demonstrando pela segunda uma
simpatia medíocre.
Comentava cada um a seu modo aquela excentricidade de velha romântica. O verdadeiro motivo, porém, consistia em ser a neta mais velha extraordinariamente parecida com a família Henriques, enquanto que a mais moça pertencia toda à família do pai, um provinciano feio. Ângela, que era a primeira, recebia continuamente presentes da avó; a outra, a Inês, olhava com melancolia para aquelas doces manifestações de amor, perguntando mentalmente em que desmereceria ela da ternura da mãe de sua mãe?
Acostumaram-se todos com aquela injustiça, menos a pobre Inesinha, que chorava muitas vezes às ocultas, chamando-se desgraçada!...
Com o tempo veio a necessidade de Ângela entrar para um colégio.
A avó lamentou-se, tornando-se ainda mais indiferente para a pobre Inês e atirando-lhe para cima todas as culpas; era ela quem quebrava a louça que se sumia do armário; era ela que fazia enxaquecas à mãe com a bulha dos seus sapatos insuportáveis; era ela quem arrancava as plantas do jardim e quem roubava os doces do guarda-prata; era ela quem batia nos animais, quem riscava os móveis, quem enchia de trapos e de papéis o chão, quem impacientava as criadas e pedia dinheiro às visitas.
Ela era o demônio! E, na sua opinião, seria muito mais sensato mandá-la de preferência para o colégio, como pensionista, e deixar em casa a Ângela, a quem se oferecia para pagar os mestres.
O alvitre não foi bem recebido. E Ângela teve de partir para Itú, lugar escolhido para a sua educação.
Na véspera, à noite, recaindo a conversa sobre assuntos de pressentimentos e de superstições, Ângela teve a fantasia de dizer à avó:
– Olhe, vovó, todas as manhãs há de ver no seu oratório uma rosa branca. Será o meu pensamento que há de vir visitá-la. No dia em que a rosa estiver meio murcha, será um sinal de que eu estou doente; e se ela não aparecer, será porque eu morri!
– Deixa-te de tolices! Não quero que minha filha leve de casa semelhantes ideias! Acreditarás por acaso nisso?
– Não, mamãe... eu estava brincando... Descanse que a rosa branca não há de vir!
Do seu canto, a pobre Inês observou que o olhar da avó se tornara angustioso, turvo como a água onde se refletisse uma nuvem negra. A pobre senhora acreditava em sonhos e em fantasmas; sabia histórias complicadas e extravagantes; coisas extraordinárias que ela queria impor à fé ou à incredulidade dos outros! Já agora, se a rosa branca não surgisse todas as madrugadas aos pés da Virgem das Dores, ela havia de supor que a sua Angelita tinha ido fazer companhia aos querubins.
E enquanto a sua preferida dizia descuidada e risonha: “Eu estava brincando...” a outra lia-lhe no olhar toda a inquietação e tristeza!
A despedida de Ângela foi dolorosa para o coração da avó; a pobre senhora levou o dia inteiro a chorar, encerrada no quarto, e, quando consentiu em ir ao chá, notaram todos a extraordinária alteração da sua fisionomia. Estava impaciente, frenética, olhando de soslaio para a pobre Inês, com quem várias vezes ralhou sob qualquer pretexto:
– Menina, isso são modos? Tire a mão da mesa!
E continuava depois, voltando-se para uma visita:
– Tanto tem a Angelita de ajuizada e de boa, quanto esta tem de insensatez e mau gênio! Pudera! Fazem-lhe todas as vontades! Eu nunca vi!
A mãe acudiu em defesa da filha, e a questão prolongou-se, até que a avó, desesperada, exclamou:
– A outra foi aos onze anos de pensionista para o colégio; pois bem, esta tem nove, e aposto em como nem daqui a três anos irá acompanhar a irmã! Injustiças é que me revoltam.
Inês ouvia humilhada e triste aquela troca de palavras, consolando- -se com a doçura do olhar da mãe, que caía sobre ela como uma bênção.
No seu pequeno quarto, em frente à cama vazia da irmã, Inesinha procurava em vão adormecer. Revolvia-se entre os lençóis, olhava para o teto, onde a luz da lamparina punha sombras, e lembrava-se do olhar da avó, quando a Ângela falara na rosa branca! Ah! por que lhe quereria tanto mal a sua avó? No entanto, procurava fazer-lhe as vontades, e tinha-lhe até muita amizade! Realmente, a Ângela era tão boa! E tão bonita!
Sim, ela também achava natural que a velhinha preferisse a outra... Mas seria razoável que a deprimisse sempre, e assim... diante de gente de fora? Tentava dormir: fechava os olhos e punha-se a rezar: – Ave, Maria, cheia de graça!... E a rosa branca? Ah! se a vovó não a encontra no oratório... é capaz de chorar! Fazei, virgem Maria, com que nasça uma rosa branca a vossos pés!
Se fosse eu que estivesse no colégio, a vovó estaria contente! Por que será que não gosta de mim? É verdade que eu lhe tenho feito mal, mas sem ser por vontade... entornei-lhe chá quente na mão... quebrei o seu espelho novo; mas o que com certeza ela não me perdoa, é eu ter batido na Ângela! Coitadinha da Ângela! Ela não se queixou... quem teria visto? Mas se eu não lhe batesse, ela matava o gato da vizinha, e depois? Sim! A vovó tem-me raiva desde esse dia... mas eu tenho dado tantos beijos na Ângela! Pobre da minha irmã, que saudade ela hoje terá da sua caminha!
Apesar dos meus beijos, a amizade da vovó não voltou. Mamãe sempre me diz que não julgue eu isso, que a vovó adora-me! Como o saberá? Mas a mamãe não mente; logo que diz, é porque é.
Com as mãozinhas cruzadas sobre o peito, toda envolvida na sua
longa camisa de dormir, Inês lutava com a insônia, e, para afastar os
pensamentos, recomeçava a dizer: Ave,
Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...
No entanto, antevia as mãos trêmulas da avó, procurando em vão a
rosa branca entre as dobras do veludo azul do manto de Nossa Senhora. Depois as
lágrimas caindo-lhe às duas pela face engelhada... E tinha pena, e tornava,
cheia de fé, a suplicar:
A luz da lamparina foi-se tornando pálida à proporção que os vidros da janela se iam iluminando pela claridade exterior. Inês ergueu-se. Nunca tinha visto amanhecer, mas o seu fito era outro; foi cautelosamente a janela, abriu-a e olhou. Nuvens cor de rosa enovelavam-se sob o céu azul; no alto, mostrava-se a lua, estreita como um fio de luz arqueado, e um pouco abaixo entrebrilhava uma grande estrela esbranquiçada e fria. Os pássaros cantavam; havia uma frescura leve toda embalsamada de aromas.
Inês espreitou o oratório.
– Nada! A lâmpada acesa, bruxuleante, difundia a sua tênue chama sobre um ramo de flores artificiais! Voltou à janela do seu quarto, ao rés do chão; vacilou um momento, mas, armando-se de coragem, saltou-a, e correu para um recanto do jardim, onde várias roseiras ostentavam as suas belíssimas flores.
À hora do almoço, a avó apareceu risonha e tranquila, com o olhar abrandado por uma misteriosa doçura d’alma. Passaram-se dias, durante os quais a pobre senhora achou sempre no seu oratório a prometida rosa branca, que era, a seu ver, a visita do pensamento da adorada netinha! Cada vez mais terna para a ausente, tornava-se mais ríspida para a Inês. A pequenita andava agora mais abatida e magra, chegando a inspirar cuidados à família.
A história da rosa era ignorada por todos; a avó guardava o segredo da visita de Ângela, egoisticamente, conservando as rosas, mesmo depois de murchas, num cofrezinho dourado!
Um dia, estavam todos à mesa, quando o jardineiro se foi queixar de que todas as noites ia alguém roubar uma rosa branca a uma das roseiras de mais estimação do jardim!
Da rua não entrava ninguém; aquilo era coisa de gente da casa; pedia providências.
Inês tornou-se rubra; a avó estremeceu, e o dono da casa, um colecionador fanático, prometeu um tiro a quem, sem seu consentimento, lhe arrancasse as rosas do jardim. À noite verificou a existência de um formoso botão. No dia seguinte o botão havia desaparecido!
Aquela persistência exasperou-o. Começaram as indagações. A avó
julgou de seu dever intervir, contando o fato que se passava consigo, e
aconselhando paciência. Era a mão invisível de um ente sobrenatural e piedoso,
que vinha, mensageiro da sua Angelita, trazer-lhe a flor prometida!
As criadas começaram a supor fantasmas, a asseverar que os viam, e de tal forma que a própria Inês entrou de ter medo!
Uma noite deitou-se resolvida a faltar a sua caridosa lembrança; a avó que tivesse paciência e apreensões e lágrimas, – ela não se arriscaria nunca mais para poupar-lhe esses desgostos! E ficou, como na primeira noite, nervosa, imaginando a decepção da velha! Passou por fim ligeiramente pelo sono; acordando, viu tamanha claridade na janela, que supôs ser já dia. Saltou do leito, e, sem meditar, levada pelo hábito, ainda quase a dormir, pulou para o jardim, arrastando na areia a sua camisola branca e magoando no chão os pezinhos descalços.
A lua, em todo o esplendor, espalhava a sua luz aveludada; estava
tudo silencioso, silencioso!
“Salve, Rainha... Mãe de misericórdia... vida e doçura... esperança nossa!”
Não acabou. Transida de medo e de frio, cairia no chão... se dois braços não a amparassem meigamente.
Eram os braços da avó, que a cobria de beijos, repetindo-lhe:
– Como tu és boa, minha adorada Inês! Como tu és boa!
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