11/07/2020

Rosa (Conto), de Guy de Maupassant

 


Rosa

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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As duas jovens di-la-íamos enterradas sob uma camada de flores.

Vão sós, no enorme Landau, carregado de ramalhetes como uma enorme cesta de flores. Na banqueta da frente, vão dois cestos de cetim branco, cheios de violetas de Nice, e sobre a pele de urso que lhes cobre os joelhos, um amontoado de rosas, de mimosas, de goivos, de margaridas, de tuberosas e de flores de laranjeira, atadas com fitilhos de seda, parece esmagar os dois corpos delicados, não deixando sair desse leito deslumbrante e perfumado, mais que as espáduas, os braços e um pouco dos corpetes, um dos quais é azul e o outro lilás. O chicote vai forrado de anêmonas, os tirantes dos cavalos acham-se estofados de rainúnculos, os raios das rodas, vestidos de resedá; e, em vez das lanternas, dois ramalhetes redondos, enormes, dão a ideia de ser os olhos extraordinários daquele grande animal redondo e florido.

O Landau percorreu a largo trote a estrada, a Rua d'Antibes, procedido, seguido, acompanhado por uma multidão de outras carruagens engrinaldadas, cheias de mulheres, que desaparecem sob uma onda de violetas. É a festa das flores em Cannes.

Chega-se ao boulevard de la Fonciére, onde a batalha se realiza. A todo o comprimento da imensa avenida, uma dupla fila de equipagens engrinaldadas vai e vem, como uma fita sem fim.

De umas para as outras, são atiradas flores. Estas, passam no ar como balas, vão ferir a frescura dos rostos, volteiam no ar e caem na poeira, de onde um exército de garotos as apanha.

Uma multidão compacta, enfileirada nas calçadas, e sustada pelos guardas a cavalo, que passam brutalmente e empurram os curiosos com os pés, como para não permitirem aos vilões que se misturem com os ricos, olha para a batalha, ruidosa e tranquila.

Das carruagens, chamam-se, reconhecem-se, metralham-se com rosas. Um carro, cheio de lindas mulheres vestidas de escarlate como diabas, atrai e seduz os olhos.

Um cavalheiro que se parece com os retratos de Henrique IV atira com alegre ardor um enorme ramalhete preso a um elástico. À ameaça da pancada, as mulheres tapam os olhos e os homens baixam a cabeça, mas o projétil, gracioso, rápido e dócil, descreve uma curva e volta as mãos do dono, que novamente o atira a outro novo rosto.

As nossas duas jovens atiram à mãos cheias o seu arsenal e recebem uma granizada de raminhos; depois, com perto de uma hora de batalha, já cansadas enfim, ordenam ao cocheiro que siga a estrada do golfo Juan, que margeia o mar.

O sol desaparece por detrás do Esterei, desenhando a negro, sobre um poente de fogo, a silhueta arrendada da comprida montanha. O mar estende-se calmo, azul-claro, até à linha do horizonte, onde se mistura com o céu, e a esquadra, ancorada no meio do golfo, tem o aspecto de um rebanho de animais monstruosos, imóveis sobre a água, animais apocalípticos, couraçados e corcundas, encabelados de mastros frágeis como plumas, e com olhos que se acendem quando chega a noite.

As duas jovens, estendidas sob a pesada pele, olham languidamente. Uma delas diz enfim.

— Como há tardes deliciosas, em que tudo nos parece bom! Não é assim, Margot?

A outra responde:

— Sim, é bom. Mas falta-nos sempre qualquer coisa.

— O que é então? Eu sinto-me inteiramente feliz. Não sinto falta de nada.

— Sim. Tu não pensas nisso. Qualquer que seja o bem estar que nos entorpeça o corpo, desejamos sempre alguma coisa mais... para o coração.

E a outra, sorrindo:

— Um pouco de amor?

— Sim.

Calaram-se, olhando em frente, depois, a que se chamava Margarida, murmurou:

— A vida não me parece suportável, sem isso. Tenho necessidade de ser amada nem que seja por um cão. Nós somos todas assim, de resto, digas tu o que disseres, Simeã.

— Isso é que não, minha querida. Eu gostaria mais não ser amada por ninguém, que sê-lo por uma pessoa qualquer. Julgas tu que me seria agradável, por exemplo, o ser amada por... por... Ela procurava alguém por quem pudesse ser amada, percorrendo com o olhar a vasta paisagem. Os seus olhos, depois de terem dado volta ao horizonte, caíram sobre os dois botões de metal que luziam nas costas do cocheiro, e ela disse rindo: "pelo meu cocheiro?"

Margarida sorriu furtivamente, e pronunciou em voz baixa:

— Asseguro-te que é muito divertido ser-se amada por um criado. Já me aconteceu isso duas vezes. Eles rebolam sobre nós uns olhos tão paspalhões, que é da gente morrer a rir. Claro está, que a gente se mostra tanto mais severa quanto mais eles se mostram apaixonados, depois, um belo dia, pomo-los no andar da rua, ao primeiro pretexto que eles deem, porque nos tornaríamos ridículas se alguém soubesse que para eles olhávamos.

Simeã escutava, com o olhar fito em frente, depois declarou:

— Não, decididamente, o coração do meu tritanário, não me parece suficiente. Conta-me cá como é que deste porque eles te amavam.

— Dei por isso, como se dá quando se trata dos outros homens, quando eles se tornam estúpidos.

— Mas os outros não me parecem tão estúpidos, quando me amam.

 — Idiotas, minha querida, incapazes de conversarem, de responderem, de compreenderem seja o que for.

— Mas tu, que te interessava o seres amada por um criado? Sentias-te quê... comovida... lisonjeada?

— Comovida não — lisonjeada — sim, um pouco. A gente sente-se sempre lisonjeada com o amor de um homem, seja ele qual for.

— Oh! dize lá, Margot!

— Sim minha querida. Escuta: vou contar-te uma singular aventura, que me sucedeu. Verás como é curioso e confuso o que em nós se passa em tais casos.

Haverá quatro anos, pelo outono, achava-me sem criada de quarto. Tinha experimentado, uma após outra, cinco ou seis, que eram ineptas, quase desesperava de encontrar uma, quando li nos pequenos anúncios de um jornal, que uma rapariga sabendo coser, bordar, pentear, procurava colocação, e que dava as melhores referências. Além disso, falava inglês.

Escrevi para a direção indicada, e, na manhã seguinte, a pessoa em questão, apresentou-se. Era muito alta, delgada, um pouco pálida, com um aspecto triste, e muito tímida.

Tinha belos olhos negros, uma pele encantadora, agradou-me desde logo. Perguntei-lhe pelos seus certificados: deu-me um, em inglês, porque saíra, dizia ela própria, de Lady Rymwel, onde estivera dez anos.

O certificado atestava que a rapariga tinha deixado a casa por sua livre vontade, para vir para França, e que nada havia a dizer do seu comportamento, durante o seu longo tempo de serviço, a não ser um pouco de coquetteria francesa. A maneira corada da frase inglesa, chegou mesmo a fazer-me sorrir, e admiti imediatamente aquela criada de quarto.

Entrou para minha casa nesse mesmo dia, chamava-se Rosa.

Ao fim de um mês, eu adorava-a.

Era um verdadeiro achado, uma pérola, um fenômeno.

Sabia pentear com um gosto infinito; compunha as rendas de um chapéu melhor que as mais hábeis modistas, e sabia até fazer vestidos.

Eu estava estupefata das suas faculdades. Nunca tinha visto uma criada assim.

Ela vestia-me rapidamente, com uma ligeireza de mãos admirável. Nunca sentia os seus dedos sobre a minha pele, e nada me é mais desagradável que o contato de uma mão de criada. Não tardei em tomar hábitos de uma preguiça excessiva, tanto me era agradável o deixar-me vestir dos pés à cabeça, e da camisa às luvas, por aquela moça alta, tímida, sempre um pouco corada, e que não falava nunca. Ao sair do banho, ela friccionava-me e dava-me massagens, enquanto que eu dormitava sobre o meu divã; e considerava-a, juro-te, mais como uma amiga de condição inferior do que como uma simples criada.

Ora, uma manhã o meu porteiro, pediu com certo mistério para me falar. Fiquei surpreendida e mandei-o entrar. Era um homem muito sério, que fora soldado, uma antiga ordenança de meu marido. Parecia constrangido com o que tinha a dizer.

Enfim, pronunciou tartamudeando:

— Minha senhora, está lá embaixo o comissário da polícia do bairro.

Eu perguntei, bruscamente:

— O que é que ele quer?

— Quer dar uma busca no palácio.

A polícia é útil, decerto, mas eu detesto-a. Acho que não é um mister nobre. Respondi tão irritada como desagradavelmente impressionada.

— E o que motiva essa busca? A que propósito vem ela? Não entrarão cá, pronto.

O porteiro tornou:

— Ele diz que há cá em casa um malfeitor escondido.

Desta vez tive medo, e mandei que dessem entrada ao comissário de polícia, e o trouxessem até aqui para pedir-lhe explicações.

O comissário era um homem bem educado, condecorado com a Legião de Honra. Pediu muitas desculpas por vir incomodar-me, depois afirmou que eu tinha, entre as pessoas que estavam ao meu serviço, um condenado! Senti-me revoltada; respondi-lhe que lhe garantia o comportamento de todos os criados do palácio e passei-os em revista.

— O porteiro, Pedro Courtin, antigo soldado.

— Não é esse.

— O cocheiro, Francisco Peigau, um lavrador champanhês, filho de um caseiro de meu pai.

— Não é esse.

— Um trintanário, também contratado em Champagne, e também filho de lavradores, que eu conhecia, e mais outro trintanário, esse que acaba de ver.

— Também não é esse.

— Então, meu caro senhor, bem vê que está enganado.

— Perdão, minha senhora, mas estou certo de não ter havido engano da minha parte. Como se trata de um criminoso terrível, queira ter a gentileza de fazer comparecer aqui, diante de Vossa Excelência e de mim, todas as pessoas que tem em sua casa.

Eu, a principio resisti, mas depois cedi, e fiz subir toda a minha gente, homens e mulheres.

O comissário da polícia examinou-os de uma olhadela, depois declarou:

— Não estão aqui todos.

— Peço perdão, senhor, mas só falta a minha criada de quarto, uma rapariga que o senhor não poderá confundir com um condenado:

Ele perguntou:

— Posso também vê-la?

— Certamente.

Toquei a campainha e Rosa apareceu imediatamente. Ainda bem ela não tinha entrado e já o comissário fazia um sinal, e dois homens que eu ainda não vira, saíam detrás da porta e se lançavam a ela, agarrando-lhe as mãos e prendendo-as com cordas.

Soltei um grito de raiva, e quis defendê-la. O comissário deteve-me:

— Esta mulher, minha senhora, é um homem que se chama João Nicolau Lecapet, condenado à morte em 1879 por assassinato, precedido de violência contra uma virgem. Foi-lhe comutada a pena em prisão perpétua. Escapou-se há coisa de quatro meses. É desde então que o procuramos.

Eu estava passada, aterrada. Não queria acreditar no que ouvia. O comissário disse-me rindo:

— Só lhe posso dar uma prova. Este homem tem o braço direito tatuado.

Arregaçaram-lhe a manga. Era verdade. O comissário acrescentou, com um certo ar de mau agouro:

— Para outra vez deverá confiar em nossas afirmações.

E levaram a minha criada de quarto!

Muito bem, não sei se acreditarias, mas o que me dominava não era a cólera de ter sido assim ludibriada, enganada, ridicularizada; também não era a vergonha de ter sido assim vestida, despida, tocada e apalpada por aquele homem... mas uma... humilhação profunda... uma humilhação de mulher. Compreendes?

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