O pequeno
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Enamorara-se de uma vizinha que era pobre, pedira-a em
casamento e tornara-se o seu esposo.
Tinha um comércio de fazendas regularmente próspero, ganhava
bastante e nem por um segundo passou-lhe pela cabeça que a rapariga fosse
movida apenas pelo interesse.
Ela, aliás, o fez feliz. Ele, por sua vez, só via a mulher
neste mundo, só pensava nela, olhava-a incessantemente como um adorador
prosternado. Durante as refeições cometia mil descuidos para não desviar o seu
olhar do rosto querido, derramava vinho no prato e água na toalha; depois, ria
como uma criança, repetindo: — Amo-te
demais, vês, faço asneiras de todo o tamanho!
Ela sorria, com um ar calmo e resignado; depois desviava os
olhos como que incomodada pela adoração do seu marido, e procurava mudar de
conversa, falar de qualquer coisa; mas o esposo tomava-lhe a mão por cima da
mesa e guardava-a entre as suas, murmurando:
— Minha Joana, minha querida Joana!
Ela, por fim, impacientava-se e respondia-lhe:
— Fica quieto, come e
deixa-me comer.
Ele suspirava desanimado, tomava um pedaço de pão e mastigava-o
lentamente.
Durante cinco anos não tiveram filhos. Um belo dia, porém, ela
ficou grávida. Foi um delírio de felicidade. O marido não a deixava mais,
estava sempre ao seu lado, tanto que a sua velha criada que o vira nascer e
dava ordens no lar, punha-o fora de casa às vezes e fechava a porta para
obrigá-lo a tomar ar.
Travara relações profundamente amistosas com um rapaz que
conhecia a sua mulher desde criança e era subchefe de uma repartição da
Prefeitura. O senhor Duretour jantava três vezes por semana em casa de Lemonnier;
trazia flores para a sua mulher, de vez em quando um camarote para o teatro e
muitas vezes, na sobremesa, o simplório do Lemonnier, enternecido, virando-se
para a esposa, dizia:
— Com uma companheira como tu e um amigo como ele, a gente
pode considerar-se venturosa sobre a terra.
Ela morreu de parto; ele escapou por um triz de morrer de
dor. A presença da pobre criancinha, porém, deu lhe ânimo.
Amou-a apaixonada e dolorosamente, de um amor doentio no qual
sobrepujava a recordação da morta e sobrevivia alguma coisa da adoração pela
esposa desaparecida. Era a carne da sua esposa, a continuação de seu ser, como
a sua quintessência. Essa criança era a sua vida passada num outro corpo; ela
desaparecera para que ela existisse. E o pai beijava-a com furor. Fora ele o
causador de sua morte — ele, o pequeno — roubara aquela existência adorada, alimentara-se
dela, sugara sua parte de vida. E Lemonnier punha o pequeno no berço e sentava-se
ao lado para contemplá-lo. Ficava aí horas e horas, olhando-o, pensando em mil coisas
tristes, em mil suaves recordações. Depois, como a criança adormecesse, curvava-se
sobre o seu rosto e deixava cair copiosas lágrimas entre as rendas.
***
O pequeno desenvolveu-se. O pai não podia passar uma hora sem
o ver, era quem o guiava, quem o levava a passeio, o vestia, o lavava, o fazia
comer.
O seu amigo Duretour parecia igualmente querer bem ao menino
e osculava-o com veemência, com frenesis de ternura que só os parentes têm.
Fazia-o saltar nos seus braços, fazia-o montar a cavalo sobre uma das suas
pernas, levantava a sua saiazinha e beijava-lhe as pernas gordinhas e rosadas.
Lemonnier, encantado, repetia:
— Que mimo! que mimo!
Duretour apertava o pequeno contra o peito, fazendo-lhe cócegas
com o bigode.
Só a Celeste, a velha criada, é que parecia não gostar do
pequeno. Zangava-se com as suas travessuras e ficava exasperada com a meiguice
dos homens, exclamando:
— É possível criar uma
criança assim! Vocês hão de fazer dele um belo mono!
O tempo correu e João completou nove anos. Sabia apenas ler,
tal era a facilidade com que só deixavam fazer o que queria. Tinha vontades
tenazes, resistências obstinadas, cóleras violentas. O pai cedia sempre,
concedia tudo. Duretour comprava e trazia incessantemente os brinquedos cobiçados
pelo pequeno e alimentava-o de doces e gulodices.
Celeste dava o desespero e gritava:
— É uma vergonha, é
uma vergonha! Você faz a infelicidade desta criança, percebe! Mas isto há de
acabar, sim, há de acabar, garanto-lhe eu! Há de ver e não tarda!
Lemonnier respondia sorrindo:
— Que queres, minha
filha, amo-o demais, não sei resistir. Acabarás por te habituar!
***
João estava adoentado. O médico constatou que estava anêmico,
receitou ferro, carne pouca assada e sopas gordurosas.
Ora, o pequeno só gostava de doces e recusava qualquer outro
alimento e o pai, desesperado, enchia-o de tortas de creme e outras guloseimas.
Uma tarde, na ocasião em que Lemonnier sentava-se à mesa com
o João, Celeste trouxe a sopeira com um ar de autoridade que não lhe era
habitual. Descobriu a bruscamente e mergulhou a concha no meio e declarou:
— Está aqui um caldo
como ainda não fiz. E preciso que desta vez o pequeno o tome!
Lemonnier abaixou a cabeça, espantado. Viu que a situação
ia-se tornar penosa.
Celeste tomou o prato, encheu-o e colocou-o diante dele.
Lemonnier provou o caldo e asseverou:
— Com efeito, excelente.
Então a criada apoderou-se do prato do pequeno e derramou uma
concha cheia de sopa. Depois, recuou dois passos e esperou.
João cheirou, empurrou o prato e fez uma careta, como quem
está enjoado. Celeste, pálida de raiva, aproximou-se bruscamente e agarrou na
colher, enterrou à força, cheia de sopa, na boca entreaberta da criança.
O pequeno sufocou, tossiu, espirrou, cuspiu e berrando, pegou
num copo e atirou-o sobre Celeste. Esta recebeu-o em cheio no ventre. Então, fora
de si, pôs sob o braço a cabeça do pequeno e começou a despejar-lhe colheradas
de sopa na garganta. Ele as vomitava uma por uma, retorcia-se, sacudia as mãos
no ar, vermelho como se morresse sufocado. O pai no primeiro momento ficou tão
surpreendido que não pôde fazer um só movimento. Depois, de repente, lançou-se
com a raiva de um louco furioso, apertando a garganta da criada e atirou-a contra
o muro. Ofegante de ódio, bramava:
— Põe-te lá fora!...
lá fora!... Bruta!
Celeste, então, empurrou-o e, despenteada, a roupa
amarrotada, os olhos injetados, exclamou:
— Que é isto agora?
Você quer me bater porque dou sopa a esta criança que...
Lemonnier repetia, tremendo da cabeça aos pés.
— Vai te embora! sabe!
bruta! bruta!
A criada, perdendo o tino, avançou para ele e fitando o
insolentemente:
— Então, você julga
que vou me deixar tratar assim! eu! eu! Pois espera lá! E por quem? por este
fedelho que nem é de você! Todos o sabem, com a breca, menos você! Pergunte ao
vendeiro, ao açougueiro, ao padeiro, a todos, a todos!
Ela começava a engasgar-se, sufocada pela raiva; depois
calou-se, olhando-o.
Lemonnier não se movia mais, lívido, os braços inertes.
Passados alguns segundos, balbuciou com voz sumida, trêmulo, na qual palpitava
uma formidável emoção:
— O quê?... o quê?...
o que disseste?
Ela conservava-se calada, apavorada diante da sinistra
expressão do seu rosto. O pobre homem deu ainda um passo, repetindo:
— O quê?... o que
disseste?
— Digo o que sei, o que todos sabem — respondeu a criada.
Lemonnier ergueu as duas mãos e precipitando-se sobre ela com
ímpeto de fera, procurou derrubá-la. Ela era forte e ágil, apesar de velha.
Escorregou-lhe entre os braços e correndo à roda da mesa, de novo raivosa,
gritava:
— Olha para ele, olha,
estúpido que você é! É o rosto do senhor Duretour; olha bem o seu nariz e os
seus olhos, você os tem assim, os olhos, o nariz, e os cabelos são os seus
talvez? Todos sabem... menos você! Olha para ele!...
Celeste abriu a porta e desapareceu.
João, atemorizado, ficara imóvel diante do seu enorme prato
de sopa.
***
No fim de uma hora, ela voltou, devagarzinho, para ver. O
pequeno, depois de ter devorado os doces e a compoteira de creme, comia
tranquilamente um resto de geleia com a colher da sopa.
O pai saíra.
Celeste tomou a criança, beijou-a e a passos abafados levou-o
para o seu quarto e o deitou. Voltou em seguida à sala de jantar, tirou a mesa,
arrumou tudo, muito inquieta.
Na casa não se ouvia ruído algum.
Ela foi grudar o ouvido à porta do patrão. Não havia
movimento. Olhou pelo buraco da fechadura. Estava escrevendo e parecia
tranquilo.
Então foi sentar-se na cozinha, pronta para qualquer
eventualidade, pois desconfiava de qualquer coisa.
Adormeceu na sua cadeira e só acordou ao romper do dia.
Varreu, limpou os trastes, como era de costume e às oito
horas preparou o café de Lemonnier.
Não ousou, porém, levá-lo ao patrão, não sabendo como seria
recebida e esperou que a chamasse. Ele não a chamou. Nove horas, dez horas
soaram.
Celeste, espantada, preparou a bandeja e dirigiu-se para o
quarto de Lemonnier, com o coração aos pulos. Parou diante da porta; escutou.
Reinava o mais profundo silêncio. Bateu na porta, não responderam. Então,
criando coragem, abriu, entrou, depois, soltando um grito terrível, deixou cair
a bandeja.
Lemonnier estava dependurado no meio do quarto, seguro pelo
pescoço numa argola presa ao teto.
Uma cadeira derrubada rolara até a cama.
Celeste, transtornada de pavor, fugiu dando gritos lancinantes. Todos os vizinhos acudiram. O médico verificou que a morte devia
ter-se dado à meia-noite.
Uma carta dirigida ao senhor Duretour foi encontrada sobre a
mesa do suicida. Só continha esta linha:
“Deixo-vos e confio-vos o pequeno.”
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