Por: Paulo
Marçaiol
Blog: esperandopaulo
Resenha biográfica de Luiz Gama
“Para
o coração não há códigos; e, se a piedade humana e a caridade cristã se devem
enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos, em verdade vos
digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor
pratica um ato de legítima defesa”.
LUIZ GAMA
Quando Luiz Gama proferiu estas palavras
durante um tribunal do Júri na comarca de Araraquara, as palavras provocaram
tumulto, a ponto de o juiz determinar a suspensão da sessão.
Ex-escravo por 8 anos, alfabetizado aos
17 anos de idade e com conhecimentos jurídicos oriundos de leituras e presença
nas aulas de direito da Faculdade de São Paulo na condição ouvinte, Luiz Gama
notabilizou-se como precursor do movimento abolicionista no Brasil.
Atuava como rábula ou provisionado. No
Brasil do século XIX, o rábula era o advogado sem formação acadêmica em
Direito, que obtinha autorização junto aos órgãos competentes (judiciário ou o
instituto dos advogados), para exercer em primeira instância a postulação em
juízo. Luiz Gama atuava em defesa de escravos acusados de crimes ou cativos que
postulavam judicialmente a alforria mediante pagamento de indenização.
“Perante o Direito, é justificável o crime de
homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”. Esta ideia que
ainda nos dias de hoje suscita uma orientação de radicalidade e intransigência
políticas devia certamente deixar
assombrados os membros das classes proprietárias e escravistas do Brasil
Imperial.
O que vale chamar atenção aqui é que
Luiz Gama desenvolveu sua luta em prol de na abolição da escravatura e pela
república de maneira pioneira, já nos anos de 1850. Nomes como José do
Patrocínio, Castro Alves e Joaquim Nabuco apenas ganhariam projeção 30 anos
depois. O Brasil seria o último país das Américas a abolir a escravidão no ano
de 1888 – nos livros de história ficou dito que a abolição foi uma concessão
generosa da Princesa Isabel, quando é certo que a abolição da escravatura era
uma necessidade frente ao risco de uma insurreição popular que colocasse em
xeque a dominação da classe proprietária de conjunto.
Desde a revolução haitiana em 1791/1804
até a revolta dos malês na Bahia em 1935, já havia sinais de uma situação
explosiva. Ações individuais de escravos assassinando seus donos, destruindo
fazendas e fugindo do cativeiro eram recorrentes nos tribunais.
O medo das elites acerca dos malefícios
da escravidão foi objeto de um livro insuspeito de Joaquim Manuel de Macedo
chamado “Vítimas Algozes”, que
recomendados a leitura. É uma prova inequívoca de que mesmo um monarquista
bastante moderado politicamente já em 1869 defendia ardorosamente a abolição,
não pelas razões humanitárias e igualitaristas de Luiz Gama, mas pelos
inconvenientes da escravidão para a própria classe dominante brasileira.
***
VIDA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Não existem muitos livros e fontes
biográficas de Luiz Gama. Além da pequena biografia de Mouzar Benedito
publicada pela editora Expressão Popular, ficou ao leitor de hoje a carta
escrita pelo próprio Luiz Gama ao jornalista e amigo Lúcio de Mendonça, em 25
de Julho de 1880, dois anos antes de morrer.
Instado pelo amigo, Luiz Gama faz um
breve relato de sua vida na carta.
O documento nos serve de referência
neste artigo.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em
Salvador, Bahia, em 21 de Julho de 1830. Sua mãe era uma negra livre chamada
Luíza Mahin. Consta que Luíza era quitandeira e idealista, tendo não só
participado mas atuado como uma das lideranças da Revolta dos Malês de 1835.
Consta que antes de 1835, a Bahia já havia sido palco de levantes negros em
1807, 1809, 1926 e 1830. A revolta dos Malês foi articulada para estourar em 25
de Janeiro, data do fim do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos. Malê é uma
corruptela de “imale” que na língua ioruba significa muçulmano – os males eram
negros cultos e rebeldes que não aceitavam passivamente a escravidão. Salvador
naquela época tinha 20 mil habitantes e estima-se que da rebelião participavam
entre 600 e 1.500 pessoas, entre escravos com ou sem origem muçulmana, além de
negros libertos. Contudo, antes de a revolta estourar, houve uma delação e no
dia 24 janeiro foi desencadeada a repressão estatal – na luta morreram cerca de
70 negros e 10 soldados.
O pai de Luiz Gama era de origem
portuguesa:
“Meu
pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país
constituem perigo perante a verdade, no
que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia
a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua
infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando seu nome”.
Consta que o pai de Luiz Gama, reduzido à pobreza, vendeu o filho como escravo a bordo do patacho “Saraiva” remetido ao Rio de Janeiro. Como foi dito, nosso advogado era filho de uma negra liberta, o que pela legislação da época, impedia que fosse vendido como escravo. Ainda assim, ficou ilicitamente cativo durante 8 anos. Luiz Gama relata que foi rejeitado por interessados e possíveis compradores pelo fato de ser baiano: influenciados pela revolta de 1835, os proprietários viam os escravos baianos como potencialmente rebeldes e encrenqueiros. Na casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, foi alfabetizado por um hóspede da casa e estudante. Aos 18 anos, fugiu da casa do alferes e foi assentar praça.
Mencionamos que Luiz Gama assistia aulas
de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo, na condição de
ouvinte. A receptividade dos alunos ao negro não foi nada solícita. Segundo
Raul Pompeia, “a generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia
matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o Santo Estêvão, e as
apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado
da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos”.
Do ponto de vista político, além do
abolicionismo, Luiz Gama defendia o republicanismo. Chegou inclusive a
pertencer ao velho Partido Liberal do Império. Participou do primeiro congresso
republicano em São Paulo em 1873, mas não aderiu ao movimento vez que dele
participavam latifundiários paulistas que não eram favoráveis à abolição. O seu
republicanismo dizia respeito antes ao seu igualitarismo e sua inequívoca
consciência de justiça e igualdade social, num momento em que socialismo ainda
não era parte do vocabulário político: o período de atuação de Luiz Gama
coincide com a época da publicação de trabalhos em vida de Marx e Engels,
quando os próprios ainda eram minoritários no movimento europeu e praticamente
desconhecidos no Brasil.
Ainda assim, Luiz Gama já a seu tempo,
foi granjeando o respeito e admiração de muitos: negros libertos, escravos e
mesmo brancos como Raul Pompeia, escritor naturalista e admirador do advogado.
Já por volta de 1880, a saúde debilitada de Luiz Gama, decorrente de uma
diabetes, foi afastando o rábula dos tribunais. Há referências de que ao final
da vida, passou a ter menos esperança na transformação da realidade por meio
dos tribunais e sim por meio da
insurreição. Sua morte em 25 de agosto
de 1882 foi um acontecimento inédito na cidade de São Paulo. Uma multidão toma
conta das ruas no enterro: negros, mulatos e brancos, gente simples,
intelectuais e até senhores da elite paulistana. Sobre este momento do enterro,
narra Raul Pompeia:
“O orador reforçou o gesto e intimou a
multidão a jurar sobre o cadáver que não se deixaria morrer a ideia pela qual
combatera aquele gigante. Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se do
cemitério. As mãos estenderam-se abertas para o cadáver... A multidão jurou”.
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BIBLIOGRAFIA
BENEDITO, Mouzar. “Luiz Gama – O Libertador de Escravos e Sua Mãe Libertária,
Luíza Mahin” – Ed. Expressão Popular – Recortes Perfis – Viva o Povo Brasileiro .
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