Napoleão numa aventura na Córsega
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
A narração seguinte é de todo autêntica. Seus detalhes me
foram fornecidos diretamente pelo único homem que pode colhê-los na própria
fonte e cujo testemunho dirigiu o inquérito feito em 1853 sobre aqueles fatos
para assegurar a execução do testamento do Imperador em Santa Helena.
Com efeito, três dias antes de morrer, Napoleão acrescentou
ao seu testamento um codicilo com estas disposições:
"Lego 20 mil francos ao morador de Bocognano que me
arrancou às mãos dos bandidos que me queriam assassinar.
10 mil francos ao Sr. Vizzavona, o único dessa família que
foi meu partidário.
100 mil francos ao Sr. Jerônimo Levi. 100 mil francos ao Sr.
Costa de Bastelica.
20 mil francos ao padre Reccho.
Foi sem dúvida velha recordação da sua mocidade que, nos seus
últimos momentos, veio ao seu espírito: a longínqua visão perseguiu-o quando resolveu
deixar esses supremos dons ao devotado partidário cujo crime lhe escapava à memória
enfraquecida e aos amigos que o ajudaram em momento terrível.
Luz XVI acabava de morrer. A Córsega era então governada pelo
general Paoli, homem enérgico e violento, realista devotado, que odiava a Revolução,
ao passo que Bonaparte, jovem oficial de artilharia, então de licença em Ajaccio,
punha em jogo sua influência, e a da sua família, em favor das idéias novas.
Entre o jovem Bonaparte e o general havia velha animosidade,
nascida quando Paoli, tendo recebido ordem de conquistar a ilha de Madalena, confiou
essa missão ao coronel Cesari, recomendando-lhe, ao que se diz, fizesse
malograr-se a empresa. Nomeado lugar-tenente-coronel da guarda nacional do
regimento comandado pelo coronel Queuza, Napoleão tomou parte na expedição e
ergueu-se violentamente contra o modo porque fora conduzida, acusando
abertamente os chefes de a haverem perdido propositalmente.
Pouco tempo depois, comissários da República, entre eles
Saliceti, foram enviados a Bastia. Sabedor da sua chegada, quis Napoleão reunir-se
a eles e, para empreender essa viagem, fez vir de Bocognano seu homem de
confiança, um dos seus partidários mais fiéis, Santo Bonelli, chamado Riccio,
que 'lhe serviria de guia.
Partiram ambos a cavalo, dirigindo-se a Corte, onde se achava
Paoli, a quem Bonaparte queria visitar de passagem. Diga-se que, ignorando ainda
a participação do seu chefe na trama urdida contra a França, ele até o defendia
contra as murmurações; a hostilidade crescente entre ambos não havia ainda
explodido.
O jovem Napoleão desceu do cavalo no pátio da casa de Paoli
e, confiando o animal a Santo-Riccio, foi em procura do general. Ao subir as
escadas, uma pessoa a quem se dirigiu informou-lhe que tinha havido ali um
conselho dos principais chefes corsos, todos inimigos das idéias republicanas.
Procurava Napoleão investigar quando um dos conspiradores saiu da casa.
Indo ao seu encontro, perguntou-lhe: "Então?". O
outro, julgando-o um aliado. respondeu-lhe: "Resolvido! Vamos proclamar a
independência e separarmo-nos da França, com o auxílio da Inglaterra".
Indignado, Napoleão exaltou-se e gritou: "Isso é uma
traição, uma infâmia!" Atraídos pelo ruído, apareceram uns parentes
afastados da família Bonaparte, que compreenderam o perigo em que se lançava o
jovem oficial, porque Paoli era homem para se desembaraçar dele para sempre.
Cercaram-no, pois, e fizeram-no descer e montar de novo a cavalo.
Chegados Napoleão e o guia à entrada da vila de Bocognano,
separaram-se, combinando encontro no dia seguinte, na junção das duas estradas.
Napoleão dirigiu se à aldeia, de Pagiola, a pedir hospitalidade ao seu
partidário e parente Felix Tusoli.
Entrementes, Paoli soubera da visita do jovem Bonaparte, bem
como das palavras violentas por ele proferidas ao descobrir a conspirata e
encarregou Mário Peraldi de persegui-lo e impedir, a todo custo, sua chegada a Ajaccio
ou a Bastia.
Peraldi chegou a Bocognano horas antes ele Bonaparte e foi à
casa dos Morelli, família poderosa de partidários do general Paoli. Souberam estes
que o jovem oficial chegara à vila e passaria a noite em casa de Tusoli. O
chefe dos Morelli, homem enérgico e temível, sabedor dás ordens de Paoli,
prometeu ao seu enviado que Napoleão não havia de escapar.
Mandou Jogo distribuir sua gente, fazendo ocupar todas as
estradas e barrar todas as saídas. Bonaparte, acompanhado de Tusoli, saiu em buscas de Santo-Riccio mas
seu hospedeiro, adoentado, deixou-o logo depois.
Logo que o oficial se viu só, um homem apareceu-lhe,
anunciando-lhe que num albergue vizinho, achavam-se alguns partidários do
general que o eperavam, a ele, Napoleão, em Corte. O futuro imperador a eles se
dirigiu e, quando os viu: "Ide procurar vosso chefe, estais a fazer uma
grande e nobre ação!" Nesse momento, porém, os Morelli precipitaram-se sobre
ele e o fizeram prisioneiro.
Santo-Riccio, que o esperava na encruzilhada, soube logo da
prisão e correu à casa de um partidário de Bonaparte, Vizzavona, que ele sabia
capaz, de ajudá-lo. Havia compreendido a extrema gravidade da situação: ou
salvariam o jovem oficial ou ele seria morto dentro de duas horas. Vizzanova, à
força de eloquência e de habilidade, conseguiu dos Morelli permissão para que
Bonaparte fosse à sua casa tomar uma refeição, enquanto eles guardariam a casa.
Para ocultar seus desígnios, os Morelli concordaram e seu
chefe, o único que conhecia a vontade do general Paoli, confiou-lhes a
vigilância do lugar e foi preparar-se para a partida.
Foi essa ausência que alguns minutos mais tarde salvou a vida
do prisioneiro. Santo-Riccio, com coragem e sangue frio, preparava entretanto a
libertação do companheiro. Chamou dois jovens valentes e fiéis como ele e,
ocultando-os atrás do muro dum jardim contíguo à casa de Vizzavona, apresentou-se
tranquilamente aos Morelli, pedindo-lhes permissão para se despedir de
Napoleão. Em presença deste e de Vizzavona, combinou a fuga. Penetraram então
os três na estrebaria e fugiram para a mata. Percebendo-os, os Morelli saíram,
aos gritos, em sua perseguição.
De casa, soube o chefe Morelli do ocorrido e precipitou-se
com cara tão feroz que a esposa, aliada aos Tusoli, lançou-se a seus pés,
pedindo a vida para o jovem oficial. Ele repeliu-a, furioso, e ela, sempre de
joelhos, enlaçou-o fortemente. Batida, derrubada ela acabou arrastando na queda
o marido.
Sem a força e a coragem dessa mulher, era uma vez Napoleão!
Mas os Morelli atingiam os fugitivos. Santo-Riccio,
intrépido, encostando-se a uma árvore, fez-lhes face, gritando aos dois
companheiros de Bonaparte que o levassem. Como este se recusasse a abandoná-lo,
gritou o guia: "Levem-no de qualquer modo! Amarrem-no de pés e mãos se for
preciso!"
Os três foram afinal alcançados e um partidário dos Morelli,
Honorato, pondo o cano do fuzil na testa de Napoleão, gritou-lhe: "Morte
ao traidor à pátria!" Nesse momento, porém, Tusoli, prevenido por um emissário
de Riccio, chegava com seus parentes armados. Vendo o perigo e reconhecendo seu
cunhado no que ameaçava a vida do seu hóspede, gritou-lhe Tusoli, apontando-lhe
a arma:
— Honorato! o caso agora é entre nós!
Surpreso, o outro hesitava em atirar, quando Riccio,
aproveitando a confusão, agarrou Bonaparte, que resistia sempre, carregou-o e,
com os dois outros rapazes meteu-se pela mata.
Através de mil dificuldades chegaram a Ucciani, à caba dos
Pazzoli, partidários de Bonaparte. Daí seguiram para Ajaccio, onde Napoleão se
refugiou em casa do administrador, Jean-Jerôme Lévi, que o escondeu num
armário. Precaução excelente, porque no dia seguinte chegava a polícia e tudo
vasculhava em vão.
Na mesma noite Napoleão embarcava numa gôndola e atravessava
o golfo indo para a casa da família Costa de Bastelica e daí para esconderijo
na mata.
Alguns dias após era proclamada a independência da Córsega. A
casa dos Bonaparte foi incendiada e as três irmãs do fugitivo entregaram-na à
guarda do padre Reccho.
Depois, uma fragata francesa, que recolhia na costa os últimos partidários da França, tomou Napoleão a seu bordo e reconduziu-o à pátria.
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