Condecorado
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
M. Sacrement,
não tinha desde a infância senão uma ideia na cabeça: ser condecorado. Ainda
pequeno e já carregava cruzes em zinco, da legião de Honra, como as outras
crianças brincam com um quepe, e estendia orgulhosamente na rua a mão a sua
mãe, estufando o estreito peito ornado com a fita vermelha e a estrela de metal.
Depois de uns
pobres estudos, fracassou no bacharelato e, não sabendo o que fazer, casou-se
com uma linda moça porque esta tinha fortuna.
Viveram em
Paris como vivem os burgueses ricos, indo ao seu mundo sem se misturarem ao
mundo, orgulhosos do conhecimento de um deputado que podia chegar a ser ministro,
e amigos de dois chefes de divisão. Mas o pensamento, entrado nos primeiros
dias de sua vida na cabeça de M. Sacrement, não mais o abandonou, e ele sofria
sem cessar, por não ter o direito de ostentar na sua lapela, uma pequena fita
de cor. As pessoas condecoradas que encontrava no boulevard feriam-no no
coração. Olhava-as de lado, com um despeito desesperado. Às vezes, por longas
tardes, desocupado, punha-se a contá-las. E dizia consigo: "Vejamos
quantos encontrarei da Magdalena à rua Dronot". E ia lentamente,
inspecionando as lapelas, o olhar exercitado, a distinguir de longe o pequeno
ponto vermelho. Quando chegava fim do passeio espantava-se sempre do número:
"Oito oficiais e dezessete cavalheiros. Tantos assim! É estúpido
prodigalizar as cruzes de tal modo. Vejamos se encontrarei igual número na
volta".
E voltava a
passos lentos, aborrecendo-se quando a multidão apressada dos pedestres podia
perturbar suas pesquisas, deixar-lhe escapar algum condecorado.
Conhecia os
quarteirões onde se via maior quantidade. Abundavam no Palais-Royal. A avenida
da Ópera não valia a rua de la Paix; o lado direito do boulevard era melhor
frequentado do que o esquerdo.
Pareciam
também preferir certos cafés, certos teatros. Cada vez que M. Sacrement
percebia um grupo de senhores de idade, de cabelos brancos, parados no meio do
passeio e perturbando a circulação, ele dizia para os seus botões: "Eis
alguns oficiais da Legião de Honra!" E tinha desejo de os saudar.
Os oficiais,
(muitas vezes notara) apresentam um outro aspecto, diferente dos simples
cavaleiros. Sente-se bem que possuem oficialmente uma consideração mais alta,
uma importância maior.
Outras
ocasiões também, M. Sacrement sentia uma raiva possuí-lo, um furor contra todos
os indivíduos condecorados; e experimentava contra " eles um ódio de
socialista. Então, entrando em casa, excitado pelo encontro tantas cruzes, como
um pobre faminto depois de ter passado diante de grandes armazéns de
comestíveis, exclamava com uma voz forte: "Quando afinal nos
desembaraçarão de tão imundo Governo?"
Sua mulher,
espantada, perguntava:
— Que tens tu
hoje?
E ele
respondia:
"Tenho
que estou, indignado com as injustiças que vejo cometerem por toda parte. Ah!
os comunistas tinham razão!"
Mas, tornava a
sair depois do jantar e ia considerar as vitrines de condecorações. Examinava
todos aqueles emblemas de formas diversas, de cores variadas. Queria
possuí-los, todos, e numa cerimônia pública, em uma imensa sala cheia de gente,
cheia de povo maravilhado, marchar à frente de um cortejo, o peito rebrilhante,
constelado de medalhas alinhadas, umas seguindo as outras, acompanhando a direção
das costelas, e passar gravemente, o clac
debaixo do braço, luzente como um astro, no meio de um murmúrio admirativo e
respeitoso.
Não tinha, ah!
nenhum título a qualquer condecoração.
Disse consigo:
"A Legião de Honra é de fato muito difícil para um homem não ocupa nenhuma
função pública. Se tentasse fazer-me nomear Oficial da Academia?"
Mas não sabia
como fazê-lo. Falou a sua mulher, que ficou estupefata.
— Oficial da
Academia? Que é que fizeste para merecê-lo?
Ele zangou-se:
— Mas
compreende bem o que quero dizer! Procuro justamente o que preciso fazer. Tu és
estúpida algumas vezes.
Ela sorriu:
—
Perfeitamente, tens razão. Mas eu hão o sei também!
Ele tinha uma
ideia. Se falasse ao deputado Rosselin, podia dar-me um excelente conselho! Eu,
tu compreendes, não tenho coragem de abordar esta questão diretamente com ele. É
muito delicado, muito difícil; partindo de ti, a coisa torna-se muito natural.
Mme. Sacrement
fez o que ele pedia. M. Rosselin prometeu falar ao ministro. Então, Sacrement o
apertou. O deputado acabou por lhe responder que ele precisava fazer um
requerimento e enumerar os seus títulos.
Seus títulos?
Eis aí. Ele não tinha um sequer — de bacharel.
Atirou-se,
entretanto, ao trabalho, e começou uma brochura tratando: "Do direito do
povo à instrução." Não pôde acabá-la por penúria de ideias.
Procurou
assuntos mais fáceis, e abordou diversos, sucessivamente. Foi a princípio:
"A instrução das crianças pelos olhos".
Queria que se
estabelecesse nos bairros pobres, uma espécie de chás gratuitos para as
crianças. Os pais aí as conduziriam desde muito novas, e lá se lhes dariam, por
meio de uma lanterna mágica, noções de todos os conhecimentos humanos. Seriam
verdadeiros cursos. O olhar instruiria o cérebro, e as imagens ficariam
gravadas na memória, por assim dizer, visível à ciência.
Que coisa mais
simples do que ensinar assim a história universal, a geografia, a história
natural, a botânica, a zoologia, a anatomia, etc.!
Fez imprimir
essa memória e enviou um exemplar a cada deputado, dez a cada ministro,
cinquenta ao presidente da República, dez igualmente a cada um dos jornais
parisienses, cinco aos jornais da província.
Depois,
abordou a questão das bibliotecas das ruas, lembrando que o Estado fizesse
passear pelas vias públicas pequenos carros cheios de livros, iguais aos carros
dos vendedores de laranjas.
Cada habitante
teria direito a dez volumes por mês, em locação, apenas por um centavo de
aluguel.
— O povo —
dizia ele não se mexe senão para os prazeres. Desde que o povo não procura a
instrução, é preciso que a instrução vá até ele...
Nenhum ruído
se fez em torno desses ensaios. Entretanto, ele fez o seu requerimento.
Responderam-lhe que se tomaria nota e que se havia de instruir o processo.
Julgou-se seguro do sucesso; esperou. Nada veio. Então, decidiu-se a dar os
passos pessoalmente.
Solicitou uma audiência
do Ministro da Instrução Pública, e foi recebido por um auxiliar do gabinete,
muito moço e já grave, importante mesmo, e que tocava como num piano uma série
de pequenos botões brancos para chamar os porteiros e os contínuos da antecâmara,
assim como os empregados subalternos.
Afirmou ao
solicitante que o seu caso estava em bom caminho, e aconselhou-o a continuar os
seus notáveis trabalhos.
M. Sacrement
atirou-se à obra.
M. Rosselin, o
deputado, parecia agora interessar-se muito pelo seu sucesso, e dava-lhe mesmo
uma imensidade de conselhos excelentes. Era, aliás, condecorado, sem que se
soubessem os motivos que lhe tinham valido aquela distinção.
Indicou a
Sacrement novos estudos a empreender, apresentou-o em sociedades sábias que se
ocupavam de pontos de ciência particularmente obscuros, na intenção de alcançar
as honrarias. Apadrinhou-o mesmo junto ao Ministro.
Ora, um dia,
como acabasse de almoçar em casa de seu amigo (fazia ultimamente as refeições com
frequência na casa de Sacrement) disse-lhe muito baixo, apertando-lhe a mão:
"Venho de obter para você um importante favor. O Comitê dos trabalhos históricos
encarrega-o de uma missão. Trata-se de pesquisas a fazer em diversas bibliotecas
de França."
Sacrement,
desfalecente, nem pôde comer nem beber. Partiu oito dias depois.
Ia de cidade
em cidade, estudava os catálogos, passando revista em águas furtadas entulhadas
de alfarrábios poeirentos, arrostando a ira dos bibliotecários.
Ora, uma
tarde, como se encontrasse em Rouen, quis ir abraçar sua mulher que havia uma
semana não via. Tomou o trem das nove horas, que devia pô-lo em casa à meia
noite.
Tinha a sua
chave. Entrou sem ruído, fremente de prazer, todo feliz de lhe causar aquela
surpresa. Ela fechara-se por dentro, que aborrecimento! Então, gritou através
da porta: "Joana sou eu!"
Ela devia ter
sentido um grande medo, porque ouviu-a saltar da cama, falar sozinha como num sonho...
Depois, correu ao seu gabinete de toilette,
abriu-o e tornou a fechá-lo, atravessou diversas vezes o quarto em uma corrida rápida,
descalça, abalando os móveis, cujos vidros tiniam. E afinal, perguntou: "És
tu mesmo, Alexandre?"
Ele respondeu
"Mas sim, sou eu, abre logo!"
A porta cedeu
e sua mulher se lançou sobre o seu coração balbuciando: "Oh! que terror!
que surpresa que alegria!"
Então começou
a despir-se metodicamente como fazia todas as coisas. Retomou de sobre uma
cadeira o seu casaco que tinha o hábito de pendurar no vestíbulo. Mas,
subitamente, ficou estupefato. A lapela trazia uma fita vermelha!
Balbuciou:
"Este... este... casaco está com uma condecoração!"
Mas, sua
mulher de um salto se atirou sobre ele, e tomando-lhe das mãos o casaco:
"Não... enganas-te... dá-me isto!"
Ele, porém,
segurava-o sempre por uma manga, sem deixar; repetindo numa espécie de exaltação:
"Como?.. por quê?... Explica-me?... A quem pertence?. Não é o meu, visto
que tem a Legião de Honra! Ela esforçava-se por arrancá-lo, perturbada,
titubeando: "Escuta... escuta... dá-me isto... Não te posso dizer... é um
segredo... escuta".
Mas ele se
zangava, tornava-se pálido:
— Quero saber como
este casaco veio parar aqui! Não é meu!
Então ela lhe
gritou no rosto:
— Sim,
cala-te... jura-me... escuta.. pois bem.. é teu, estás condecorado...
Ele teve um
tal abalo de emoção, que deixou o casaco e foi cair numa poltrona.
— Eu estou...
disseste... condecorado!
— Sim, é um
segredo, um grande segredo... Tinha fechado em um armário o casaco glorioso, e
voltava para o seu marido trêmula e pálida. Continuou.:
— Sim, é um
casaco, novo que te mandei fazer. Mas, tinha jurado nada dizer--te. O traje não
será oficial antes de um mês ou seis semanas.
É preciso que
a tua missão fique terminada. Não devias sabê-lo senão em teu regresso. Foi M.
Rosselin quem a obteve, para você...
Sacrement, comovido,balbuciou:
"Rosselin... condecorado. Ele me fez condecorado... a mim... ele... Ah!...
Foi obrigado a
beber um copo de água. Um pequeno papel branco jazia por terra, caído do bolso
do casaco. Sacrement apanhou-o; era um cartão de visita. Leu: "Rosselin,
deputado".
— Tu bem o vês — disse a mulher.
Ele pôs-se a chorar
de alegria.
Oito dias mais depois, o "Oficial" noticiava que M. Sacrement fora nomeado cavalheiro da Legião de Honra por serviços excepcionais.
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