10/11/2020

A tragédia dos abacaxis (Conto), de Horacio Quiroga

 

A tragédia dos abacaxis

Tradução de Iba Mendes (2020)

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Quando Glieb Grüner, botânico da Estação Experimental de Loreto, em Misiones, deixou o instituto, pus-me diante de um lote de quinze ou vinte plantinhas, cada qual em seu respectivo vaso.

— Confio-lhe estas essências — disse-me — pois ninguém cuidará delas como você. São todas tropicais, ou pouco lhes falta. Você se encontra num ambiente dois graus mais quente que o nosso, e com um pouco de cuidado nas noites frias terá melhor êxito do que até aqui conseguimos. — Será uma pena — acrescentou sacudindo a cabeça — que se perca estes abacaxis de Pernambuco, que são minhas esperanças.

— Que se venha a perder? — objetei. — Pelo frio? Não vão congelar.

— Sim, eles congelarão — repetiu.

— Não vão congelar — insisti.

Grüner sorriu sacudindo outra vez a cabeça.

— Você sabe tão bem quanto eu — disse — que este é um país tropical e que dificilmente enfrentaremos geadas, mas também não ignora que o inverno desta Estação em nada deixa a desejar daquele do sul da província de Buenos Aires. Vocês estão melhor protegidos em San Ignacio. Mas aqui e ali, meus abacaxis se congelarão, não obstante seus cuidados. Quere-os?

— Claro que sim! E como prova do que digo, lhe mandarei os primeiros frutos.

— De nada valerão esses primeiros frutos — riu Grüner. — Quem sabe! — acrescentou estendendo-me a mão. O mundo é pequeno, e de Nahuel Huapi até aqui não é muito longe. Talvez nos veremos em breve.

— Espero que sim! — assenti, apertando sua mão com a amizade e energia necessárias. E colocando os dezoito vasos na carroça, voltei para casa.

A ausência de Glieb Grüner foi muito difícil para mim. Não creio que venha conhecer um naturalista com tão vivo entusiasmo quanto o seu. Em honra dele, de Ogloblin e minha própria, eu deveria salvaguardar pelo inestimável legado.

O destino de algumas destas plantas foi totalmente miserável. Outras arrastaram meses e meses uma vida precária, suportando não sei como os as agruras impostas pelas mudanças no solo,  e outras — sobretudo  os calistemos — encontram na aridez de meu pequeno planalto os próprios elementos para uma prosperidade fulgurante, que hoje em dia constituem o orgulho do meu país.

Tudo isto, no entanto, foi uma pequena tarefa comparada com a luta que tive de travar para sustentar, proteger e finalmente exaltar a frágil existência de meus abacaxis.

Na verdade, embora dotadas apenas de dois ou três filamentos arroxeados, as plantinhas pareciam fortes. Mas tantas e tantas eram as ilusões de Grüner, e tal minha satisfação  ante uma felicidade por fim alcançada!

Toda minha vida sonhei em possuir abacaxis tropicais, sem núcleo fibroso nem aridez excessiva. Os frutos da região, não obstante muito cheirosos, estão longe de apresentar as qualidades requeridas. Nunca, até então, havia possuído um abacaxi de Pernambuco, fruta esta tida como maravilhosa pelos viajantes de Sergipe, que conservaram seus rebentos como ouro em folha, hoje em minha posse.

A escolha da terra para a plantação definitiva exigiu-me algum tempo. Por fim optei por colocá-los ao lado do bananal, no início de uma linha de poços preparados antecipadamente com muito cuidado. Um plantador jamais deve ser apanhado de surpresa. É bem verdade que estavam um pouco expostos em  vento sul. Porém eu saberia reparar o inconveniente.

Não foi tão fácil salvá-los, no entanto. Aparentemente era necessário apenas cobrir com palhas, telas ou qualquer produto semelhante, tão logo se iniciasse as geadas. Porém meus abacaxis requereram outro tipo de tratamento. Organismos tão frágeis assim deveriam receber as carícias do sol sem desperdiçar um único raio. Com efeito, poucas plantas exigem uma média maior de calor para sua perfeita frutificação.

Meditei por longos dias, perdi o sono algumas vezes, buscando entre os recursos da minha imaginação, o melhor meio de abrigá-los.

Encontrei-o finalmente. Consistia em vários anéis de ferro armados com troncos de bambus. Forrei-os com inúmeras tiras de papel de jornal coladas sob fervura, do que resultou dois grossos cilindros pretos fixados no solo, os quais estranhamente faziam lembrar morteiros de batalhas.

Estes morteiros, perfeitamente aderidos à terra mole, podiam ser hermeticamente  fechados com discos da mesma largura de sua boca.

Compreende-se muito bem sua utilidade. Dia e noite, enquanto a temperatura não ultrapassava um limite perigoso, meus abacaxis ficavam expostos ao ambiente natural; mas ao menor anúncio de geadas, os discos cairiam, prestando imediatamente às plantinhas sua hermética proteção.

Assim sucedeu. Durante todo o mês de maio e junho, os negros morteiros permaneciam descobertos.

Críamos já todos livres das geadas, quando em 18 de julho o tempo tormentoso clareou abruptamente ao pôr-do-sol numa calmaria glacial. Às oito da noite o termômetro registrou cinco graus a um metro do chão. Minhas observações por seis anos consecutivos estabeleceram uma diferença quase matemática de seis graus entre a temperatura ambiente às oito horas da noite e às seis do dia seguinte. Devíamos, pois, ter um grau abaixo de zero neste instante. O que equivale a dizer que teríamos uma ligeira geada.

Não foi assim, entretanto. Contra a minha experiência, a do país, a do barômetro, a temperatura caiu para quatro graus abaixo de zero; digamos seis ou sete sobre o solo.

Isso era demasiado  para uma zona subtropical. Perdi as poinsétias, a monstera, os mamões, a flamboaiã, as mangas, o abacate, e não quero me lembrar mais. As bananeiras congelaram até os pés.

Contudo, lá no meio do bananal aniquilado, meus abacaxis haviam dormido docemente sob a proteção dos negros morteiros.

Tudo naquele contraste climático havia me iludido, como já disse, exceto o instinto de proteger minhas plantas desde que se iniciara o temporal. E ali estavam, úmidas e reluzentes pela rega noturna, os únicos sobreviventes daquele desastre tropical.

Eu devia ter enviado a Grüner um telegrama sem comentários: "Abacaxis salvos". No o fiz. Em contrapartida, os comentários eu os tive de Ogloblin, no dia que atravessávamos o bambuzal a contemplar meus dois pupilos.

— Muito bem! — sorriu satisfeito. — Vejo que nosso amigo tinha razão confiar em você. No mais, creio que este ano devem florescer.

— "Espero que sim!" — exclamei  mais esperançoso do que o mesmo sol de agosto que inflamava o renascimento pujante dos meus abacaxis.

Frutifica esse mesmo ano. Fiz mil votos para que Ogloblin não se equivocasse, como de fato sucedeu.

Em fins de setembro as duas robustas plantas floresceram em magníficas rosetas creme, e dia após dia, mês após mês, seus frutos se desenvolviam sob o ardoroso sol de verão.

Imagine-se os cuidados — paternais e maternais — que tive para com minhas plantas durante todo aquele longo período. Ogloblin o sabe. Ninguém melhor que ele conhece meu estado de espírito quando uma essência, uma única sementinha perdida, passava a ocupar o norte magnético de meu entusiasmo  florestal.

Tudo chega. Maio finalmente chegou. As frutas douradas já começavam a exalar vago perfume. Comecei a cortar os abacaxis, armazenando-os cuidadosamente como se fossem coroas reais.

Aqui começa a tragédia. A pequena apanhou na escola a gripe reinante. Sua mãe caiu enferma. Também eu. Uma e outra se restabeleceram rapidamente; eu demorei mais. Perdi o olfato por longos dias. E o que é pior, perdi totalmente o paladar. Quando chegava à boca tinha a mesma profunda e insossa insipidez, que fazia culminar tudo numa repugnância bucal nauseante.

Em vão minha mulher e minha filha enalteciam o perfume e o sabor dos gloriosos abacaxis. Eu, com o olhar fixo no prato, permanecia sombrio e mudo.

Aqui termina a tragédia. Quem não ama a natureza e suas lutas achará excessiva aquela expressão. Mas para o homem, que durante doze meses de intenso labor, confiou suas esperanças à obtenção de um só broto, uma fruta, uma flor, este homem sabe que com o aniquilamento de um ano de ilusões ao pé de uma pobre plantinha, acaba de cumprir-se uma verdadeira tragédia.

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Ilustração: Miguel Petrone

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