10/11/2020

A Baronesa (Conto), de Guy de Maupassant

 

A Baronesa

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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Lá poderás ver bibelôs interessantes — disse-me o meu amigo Boissené; vem comigo.

Conduziram-me ao primeiro andar de uma bela casa, numa grande rua de Paris. Fomos recebidos por um senhor de muito boa aparência, de modos distintos, que nos fez caminhar de peça em peça, mostrando-nos objetos raros, cujo preço dizia negligentemente. As grandes quantias, dez, vinte, trinta, cinquenta mil francos, saíam de seus lábios com tanta graça e facilidade, que se não podia duvidar que existissem milhões guardados no cofre-forte daquele negociante mundano.

Conhecia-o pela sua fama, havia muito tempo. Muito maneiroso, delicado e inteligente, servia de intermediário em toda a sorte de transações. Relacionado com os mais ricos armadores de Paris e mesmo da Europa e da América, sabendo seus gostos, suas preferências, prevenia-nos por uma palavra ou por telegrama se habitavam longe, desde que descobria um objeto para vender, que lhes pudesse agradar.

Pessoas da melhor sociedade a ele recorriam nas horas de embaraço, fosse para arranjar dinheiro a juros, fosse para pagar dívida, fosse ainda para vender um quadro, uma joia de família, uma tapeçaria, e mesmo até um cavalo ou uma propriedade, nos dias de crise aguda.

Sabia que ele nunca recusava os seus serviços, desde que visse probabilidades de lucro.

Boissené parecia um dos íntimos do curioso negociante. Deviam já ter tratado, juntos, mais de um caso.

Quanto a mim, observava o homem com o maior interesse.

Era alto, magro, calvo, muito elegante. Sua voz doce, insinuante, tinha por encanto particular um quê de sedutor, que emprestava às coisas um valor especial. Quando tinha um bibelô entre os dedos, virava-o, revirava-o, olhava-o com tanta finura, tanta gentileza e elegância, que objeto logo parecia cheio de beleza, transformado pelo seu tato e pelo seu olhar. Avaliava-se imediatamente muito mais caro do que antes de ter passado da vitrine para as suas mãos.

— E o seu Cristo? — disse Boissené, aquele admirável Cristo da Renascença que me mostrou o ano passado?

Ele sorriu e respondeu:

— Foi vendido e de um modo muito interessante. Uma história verdadeiramente parisiense. Quer ouvi-la?

— Sem dúvida.

— Conhece a baronesa Samoris?

— Sim e não. Já a vi uma vez, mas sei de quem se trata.

— Sabe?... na verdade?

— Sim.

— Quer dizer-me o que sabe, a fim de que verifique se não está enganado em algum ponto?

— Perfeitamente. Mme. Samoris é uma mundana que tem uma filha, sem que nunca ninguém lhe tivesse conhecido um maridou. Em todo caso, se não teve um marido, tem amantes muito discretamente, porque é recebida em uma certa sociedade tolerante ou cega. Frequenta as igrejas, recebe os sacramentos com recolhimento, e de modo que todos saibam, e, finalmente, nunca se deixa comprometer. Espera ainda que a sua filha faça um bom casamento. Não é isto?

— Sim; mas eu completo suas informações: é uma mulher que, vivendo à custa de seus amantes, se faz por eles respeitada, como se com eles não dormisse. É um mérito raro, porque assim obtém dos homens o que deseja. Aquele que ela escolhe, sem que o perceba, faz-lhe a corte por muito tempo, deseja-a com receio, solicita-a com pudor, obtém-na com espanto, e possui-a com consideração. Nunca chega a perceber que a mantém, tamanha é a arte que ela emprega em tal sentido, e ela sustenta as suas relações com o amante num tom de reserva, de dignidade e o de respeito tão admiráveis, que ele, saindo do seu leito, esbofetearia o homem capaz de suspeitar da virtude de sua amante. E isto com a maior boa fé do mundo. Tenho prestado a essa mulher diversas vezes alguns serviços e ela não tem segredos para mim. Ora, nos primeiros dias de janeiro, veio procurar-me, para me pedir trinta mil francos emprestados. Bem entendido está que não lhos emprestei, mas como desejava servi-la, lhe pedi que expusesse completamente a sua situação, a fim de ver o que por ela poderia fazer. Disse-me as coisas com tantos cuidados de linguagem, que me não teria mais delicadamente contado a primeira comunhão de sua filhinha. Compreendi então que os tempos estavam duros e que se encontrava sem vintém.  A crise comercial, as inquietações políticas que o governo atual parece entreter por comprazer, os boatos de guerra, o mal-estar geral, tinham tornado o dinheiro difícil, mesmo entre as mãos dos apaixonados. Além disso, uma mulher assim honesta, não podia entregar-se a qualquer um. Precisava de um homem da alta sociedade, do mundo que consolidasse sua reputação, provendo-lhe ao mesmo tempo a bolsa para as necessidades quotidianas. Um estroina, mesmo muito rico, iria comprometê-la para sempre, e tornaria problemático o casamento de sua filha. Não devia pensar em agências galantes, nem em intermediários desmoralizadores, que poderiam em qualquer tempo livrá-la de embaraços. Ora, devia sustentar a sua casa no mesmo pé, receber francamente como sempre fizera, para não perder a esperança de encontrar no número das visitas, o amigo discreto e digno que esperava e que saberia escolher. Fiz-lhe notar que os meus trinta mil francos tinham poucas probabilidades de voltar às minhas mãos, porque, quando os tivesse esgotado de todo, ser-lhe-ia necessário obter, ao menos sessenta mil, para me poder entregar a metade. Parecia desolada ouvindo-me, e eu não sabia o que inventar, quando uma ideia, uma ideia verdadeiramente genial, atravessou-me o espírito.  Acabava de comprar aquele Cristo da Renascença, que tive oportunidade de lhe mostrar, uma obra admirável, no estilo que tenho, a mais bela que tenho visto.  — Minha cara amiga — disse-lhe vou — mandar levar para a sua casa aquele marfim que ali está. Inventará uma história tocante, poética, engenhosa, aquilo que quiser, para explicar o seu desejo de se desfazer daquela obra de arte. Será, bem entendido, uma lembrança de família, herdada de seu pai. Quanto a mim, enviar-lhe-ei amadores, levá-los-ei eu mesmo à sua casa. O resto é com a senhora. Dir-lhe-ei as condições deles por um bilhete, na véspera da visita. Aquele Cristo vale cinquenta mil francos, mas dá-lo-ei por trinta mil; a diferença pertencer-lhe-á. Ela refletiu alguns instantes com um ar profundo e respondeu: "Sim, é talvez uma boa ideia. Agradeço-lhe imensamente". No dia seguinte, fiz conduzir o meu Cristo para a sua casa, e na mesma noite, enviei-lhe o barão de Saint-Hôpital. Durante três meses lhe mandei clientes, tudo o que havia de melhor, de mais altamente colocado nas minhas relações de negócios. Mas não ouvia mais falar dela. Ora, tendo recebido a visita de um estrangeiro que falava muito mal o francês, decidi-me a apresentá-lo pessoalmente na casa de Samoris, para ver o Cristo. Um lacaio todo de preto recebeu-nos e nos fez entrar num lindo salão, sombrio, mobiliado com gosto, onde esperamos alguns minutos. Ela apareceu, estendeu-me a encantadora mão, fez-nos  sentar, e quando lhe expliquei o motivo de minha visita, tocou a campainha. O lacaio apareceu. — Vá ver se Mlle. Isabel pode deixar entrar na sua capela. A própria moça veio responder. Tinha quinze anos, um ar modesto e bondoso, toda a frescura da juventude.  Quis nos conduzir ela mesma à sua capela. Era uma espécie de "boudoir" piedoso, onde brilhava uma lâmpada de prata diante do Cristo, o meu Cristo, deitado sobre um manto de veludo negro. A "mise-en-scéne" era encantadora e muito delicada. A menina fez o sinal da cruz e depois nos disse: — Vejam, senhores. Não é lindo? Tomei o objeto, examinei-o e achei-o admirável.  O estrangeiro também assim o achou, mas parecia muito mais preocupado com as duas mulheres do que com o Cristo. Estava-se bem naquele aposento, sentia-se o incenso, as flores e os perfumes. Extremamente agradável. Era verdadeiramente uma residência confortável, que dava desejos de demorar.  Quando tornamos a entrar no salão, abordei com reserva e com delicadeza a questão do preço. Mlle. Samoris pediu, baixando os olhos, cinquenta mil francos. Depois ajuntou: "Se desejar tornar a vê-lo, senhor, não costumo sair antes das três horas; e sou encontrada em casa todos os dias".  Na rua, o estrangeiro pediu-me informações sobre a baronesa, que achara deliciosa. Mas não tornei a ouvir falar nem dele nem dela. Três meses se passaram ainda. Uma manhã, justamente há quinze dias, ela me apareceu em casa à hora do almoço, e colocando uma carteira nas minhas mãos: "Meu caro, o senhor é um anjo. Eis aqui cinquenta mil francos; sou eu quem compra o seu Cristo e pago vinte mil francos a mais do que o preço estabelecido, com a condição de que me enviará sempre... sempre clientes... porque ele está ainda para vender... o meu Cristo...

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