A Baronesa
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Lá poderás ver
bibelôs interessantes — disse-me o meu amigo Boissené; vem comigo.
Conduziram-me
ao primeiro andar de uma bela casa, numa grande rua de Paris. Fomos recebidos por
um senhor de muito boa aparência, de modos distintos, que nos fez caminhar de
peça em peça, mostrando-nos objetos raros, cujo preço dizia negligentemente. As
grandes quantias, dez, vinte, trinta, cinquenta mil francos, saíam de seus lábios
com tanta graça e facilidade, que se não podia duvidar que existissem milhões
guardados no cofre-forte daquele negociante mundano.
Conhecia-o
pela sua fama, havia muito tempo. Muito maneiroso, delicado e inteligente,
servia de intermediário em toda a sorte de transações. Relacionado com os mais ricos
armadores de Paris e mesmo da Europa e da América, sabendo seus gostos, suas preferências,
prevenia-nos por uma palavra ou por telegrama se habitavam longe, desde que
descobria um objeto para vender, que lhes pudesse agradar.
Pessoas da
melhor sociedade a ele recorriam nas horas de embaraço, fosse para arranjar
dinheiro a juros, fosse para pagar dívida, fosse ainda para vender um quadro,
uma joia de família, uma tapeçaria, e mesmo até um cavalo ou uma propriedade, nos
dias de crise aguda.
Sabia que ele
nunca recusava os seus serviços, desde que visse probabilidades de lucro.
Boissené
parecia um dos íntimos do curioso negociante. Deviam já ter tratado, juntos, mais
de um caso.
Quanto a mim,
observava o homem com o maior interesse.
Era alto, magro,
calvo, muito elegante. Sua voz doce, insinuante, tinha por encanto particular
um quê de sedutor, que emprestava às coisas um valor especial. Quando tinha um bibelô
entre os dedos, virava-o, revirava-o, olhava-o com tanta finura, tanta
gentileza e elegância, que objeto logo parecia cheio de beleza, transformado
pelo seu tato e pelo seu olhar. Avaliava-se imediatamente muito mais caro do
que antes de ter passado da vitrine para as suas mãos.
— E o seu Cristo? — disse Boissené, aquele admirável Cristo da Renascença que me mostrou o ano passado?
Ele sorriu e
respondeu:
— Foi vendido e
de um modo muito interessante. Uma história verdadeiramente parisiense. Quer
ouvi-la?
— Sem dúvida.
— Conhece a baronesa
Samoris?
— Sim e não.
Já a vi uma vez, mas sei de quem se trata.
— Sabe?... na
verdade?
— Sim.
— Quer
dizer-me o que sabe, a fim de que verifique se não está enganado em algum
ponto?
— Perfeitamente.
Mme. Samoris é uma mundana que tem uma filha, sem que nunca ninguém lhe tivesse
conhecido um maridou. Em todo caso, se não teve um marido, tem amantes muito
discretamente, porque é recebida em uma certa sociedade tolerante ou cega.
Frequenta as igrejas, recebe os sacramentos com recolhimento, e de modo que
todos saibam, e, finalmente, nunca se deixa comprometer. Espera ainda que a sua
filha faça um bom casamento. Não é isto?
— Sim; mas eu
completo suas informações: é uma mulher que, vivendo à custa de seus amantes,
se faz por eles respeitada, como se com eles não dormisse. É um mérito raro,
porque assim obtém dos homens o que deseja. Aquele que ela escolhe, sem que o
perceba, faz-lhe a corte por muito tempo, deseja-a com receio, solicita-a com
pudor, obtém-na com espanto, e possui-a com consideração. Nunca chega a
perceber que a mantém, tamanha é a arte que ela emprega em tal sentido, e ela
sustenta as suas relações com o amante num tom de reserva, de dignidade e o de
respeito tão admiráveis, que ele, saindo do seu leito, esbofetearia o homem
capaz de suspeitar da virtude de sua amante. E isto com a maior boa fé do
mundo. Tenho prestado
a essa mulher diversas vezes alguns serviços e ela não tem segredos para mim. Ora, nos
primeiros dias de janeiro, veio procurar-me, para me pedir trinta mil francos
emprestados. Bem entendido está que não lhos emprestei, mas como desejava servi-la,
lhe pedi que expusesse completamente a sua situação, a fim de ver o que por ela
poderia fazer. Disse-me as
coisas com tantos cuidados de linguagem, que me não teria mais delicadamente
contado a primeira comunhão de sua filhinha. Compreendi então que os tempos
estavam duros e que se encontrava sem vintém. A crise comercial,
as inquietações políticas que o governo atual parece entreter por comprazer, os
boatos de guerra, o mal-estar geral, tinham tornado o dinheiro difícil, mesmo
entre as mãos dos apaixonados. Além disso, uma mulher assim honesta, não podia
entregar-se a qualquer um. Precisava de um homem da alta sociedade, do mundo
que consolidasse sua reputação, provendo-lhe ao mesmo tempo a bolsa para as
necessidades quotidianas. Um estroina,
mesmo muito rico, iria comprometê-la para sempre, e tornaria problemático o
casamento de sua filha. Não devia pensar em agências galantes, nem em intermediários
desmoralizadores, que poderiam em qualquer tempo livrá-la de embaraços. Ora,
devia sustentar a sua casa no mesmo pé, receber francamente como sempre fizera,
para não perder a esperança de encontrar no número das visitas, o amigo
discreto e digno que esperava e que saberia escolher. Fiz-lhe notar
que os meus trinta mil francos tinham poucas probabilidades de voltar às minhas
mãos, porque, quando os tivesse esgotado de todo, ser-lhe-ia necessário obter,
ao menos sessenta mil, para me poder entregar a metade. Parecia
desolada ouvindo-me, e eu não sabia o que inventar, quando uma ideia, uma ideia
verdadeiramente genial, atravessou-me o espírito. Acabava de comprar
aquele Cristo da Renascença, que tive oportunidade de lhe mostrar, uma obra admirável,
no estilo que tenho, a mais bela que tenho visto. — Minha cara
amiga — disse-lhe vou — mandar levar para a sua casa aquele marfim que ali está.
Inventará uma história tocante, poética, engenhosa, aquilo que quiser, para
explicar o seu desejo de se desfazer daquela obra de arte. Será, bem entendido,
uma lembrança de família, herdada de seu pai. Quanto a mim, enviar-lhe-ei amadores,
levá-los-ei eu mesmo à sua casa. O resto é com a senhora. Dir-lhe-ei as
condições deles por um bilhete, na véspera da visita. Aquele Cristo vale cinquenta
mil francos, mas dá-lo-ei por trinta mil; a diferença pertencer-lhe-á. Ela refletiu
alguns instantes com um ar profundo e respondeu: "Sim, é talvez uma boa
ideia. Agradeço-lhe imensamente". No dia
seguinte, fiz conduzir o meu Cristo para a sua casa, e na mesma noite, enviei-lhe
o barão de Saint-Hôpital. Durante três meses lhe mandei clientes, tudo o que
havia de melhor, de mais altamente colocado nas minhas relações de negócios. Mas não ouvia
mais falar dela.
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