Um covarde
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Chamavam-lhe na sociedade o "lindo Signole".
Ele chamava-se o
visconde Gontrarv Joseph de Signoles.
Órfão e senhor de
suficiente fortuna, fazia figura, como é costume dizer-se. Tinha boa presença e
boa apresentação, palavras suficientes para fazer crer que tinha espírito, uma
certa graça natural, um ar de nobreza e de altivez, o bigode soberbo e o olhar
meigo, coisas que agradam muito às mulheres.
Era procurado nas
salas, reclamado pelo olhar das valsistas e inspirava aos homens essa inimizade
sorridente que se tem pelas pessoas de rosto enérgico.
Atribuíam-lhe alguns
amores capazes de dar muito boa ideia de um rapaz. Vivia feliz, tranquilo, no
mais completo bem-estar moral. Sabia-se que jogava magnificamente à espada e
melhor ainda à pistola.
— Quando um dia me
bater, dizia ele, escolherei a pistola. Com esta arma tenho a certeza de matar
o meu adversário.
Ora, uma noite, como
tivesse acompanhado ao teatro duas mulheres novas, esposas de amigos seus,
acompanhadas por estes, ofereceu-lhes, depois do espetáculo, um sorvete na casa
Tortoni. Tinham entrado havia alguns minutos, quando viu que um indivíduo
assentado a uma mesa vizinha fitava com obstinação uma das senhoras. A alvejada
parecia constrangida, inquieta, e baixava a cabeça. Afinal disse ao marido:
— Está ali um homem
que não faz senão olhar para mim. Eu não o conheço; conhece-o?
O marido, que nada
tinha visto, levantou os olhos, mas declarou:
— Não, não conheço.
A esposa tornou, meio
sorridente, meio enfastiada:
— É inconveniente, o
homem! Está a estragar-me o gelado.
O marido encolheu os
ombros:
— Deixa! não faças
caso. Se nos fôssemos a preocupar com todos os insolentes que encontramos,
seria um nunca acabar.
Mas o visconde
levantara-se bruscamente. Não podia admitir que aquele desconhecido estragasse
um gelado que ele havia oferecido. Era a ele que a injúria era dirigida, pois
que era por causa dele e em atenção a ele que os seus amigos tinham entrado
naquele café. O caso, portanto, era com ele e só com ele.
Adiantou-se para o
homem e disse-lhe:
— O senhor tem uma
tal maneira de observar estas senhoras, que eu, com franqueza, não tolero. Fará
favor de cessar essa insistência.
O outro replicou:
— Ora veja se me
desampara a loja, sim?
O visconde declarou
de dentes cerrados:
— Tome cuidado, não
me faça sair de mim.
O outro respondeu
apenas com uma palavra, uma palavra obscena que soou de um a outro extremo do
café e fez como por impulso de uma mola, operar a cada um dos assistentes um
movimento brusco.
Todos os que estavam
de costas se voltaram: todos os outros levantaram a cabeça; três rapazes
giraram sobre os tacões como piões; as duas mulheres do balcão tiveram como um
sobressalto, seguido de uma reviravolta do torso inteiro, como se fossem dois
autômatos obedecendo a uma mesma manivela.
Fez-se um grande
silêncio. Depois, de repente, estourou um ruído seco no ar.
O visconde
esbofeteara o seu adversário. Toda a ente se levantou para interpor-se. Foram
trocados dois cartões.
***
Quando o visconde
entrou em sua casa, pôs-se a marchar, durante alguns minutos, a passos
apressados, através do seu quarto.
Estava muito agitado
para que pudesse refletir fosse no que fosse. Uma única ideia lhe pairava no
espírito: "um duelo", sem que essa ideia Ihe despertasse ainda
qualquer emoção. Tinha feito o que devia fazer. Falariam do caso, dar-lhe-iam
razão, felicitá-lo-iam.
Repetia em voz alta,
falando como se fala nas ocasiões em que se tem muito perturbado o pensamento:
— Que brutamontes o
tal homem!
Depois, assentou-se e
pôs-se a refletir. Era-lhe preciso logo de manhã procurar testemunhas. Quem
escolheria? Procurava no pensamento as pessoas mais célebres e melhor colocadas
do seu conhecimento. Optou enfim pelo marquês de La-Tour Noire e o coronel
Bourdin, um fidalgo e um militar, ficava assim muito bem. Os seus nomes eram
bem conhecidos nos jornais.
Sentiu sede e bebeu,
copo sobre copo d'água; depois continuou a marchar pela casa. Sentiu-se cheio
de energia. Mostrando-se brigão, resolvido a tudo, exigindo condições
rigorosas, perigosas. Reclamando um duelo sério, muito sério, terrível, o seu
adversário recuaria provavelmente e pediria as suas desculpas.
Tornou a pegar no
cartão que tirara da algibeira e atirara para cima da mesa e releu-o, como já o
lera no café, de um só golpe de vista e, no fiacre, à luz de cada bico de gás,
quando voltava para casa. "Georges Lamil, 51, rua Moncey".
Nada mais.
Examinava aquelas
letras que lhe apareciam misteriosas, cheias de um sentido confuso: Georges
Lamil? Quem era aquele homem? Em que se empregava? Por que olhara para aquela
mulher de um modo tal? Não era revoltante que um estranho, um desconhecido
viesse perturbar assim a vida de um homem, tão de repente, só porque lhe
agradara fitar insolentemente o rosto de uma mulher? E o conde repetiu mais uma
vez, em voz alta:
— Que brutamontes!
Depois parou imóvel,
de pé, cismando, com o olhar fixo no cartão de visita.
Despertava nele uma
cólera contra aquele pedaço de papel, uma cólera odienta a que vinha juntar-se
um estranho sentimento de mal-estar. Era estúpido, no fim de contas, aquele
caso! Tomou um canivete que lhe estava à mão, abriu-o e picou com ele, ao meio,
o nome impresso como se apunhalasse alguém.
Pois era preciso
bater-se! Escolheria a espada ou a pistola, porque se considerava como
insultado. Com a espada arriscava-se menos; mas com a pistola tinha a vantagem
de fazer desistir o seu adversário. É muito raro que um duelo a espada seja
mortal, uma prudência recíproca impede os combatentes de se colocarem em guarda
muito próximo um do outro para que a ponta da espada possa entrar
profundamente. Com a pistola arriscava a sua vida seriamente; mas podia sair do
caso airosamente, com todas as honras da situação sem chegar a dar-se um
encontro.
E disse alto:
— É preciso ser
enérgico. Ele terá medo.
O som da sua voz
fê-lo estremecer, e olhou em redor. Sentia-se muito nervoso. Bebeu mais um copo
de água, depois principiou a despir-se para se deitar.
Logo que se achou na
cama, apagou a luz e fechou olhos.
Pensava:
Tenho amanhã todo o
dia para tratar dos meus negócios. Durmamos um pouco, a fim de estarmos calmos.
Estava muito confortavelmente nos seus lençóis, mas não era capaz de adormecer.
Voltava-se e tornava a voltar-se, demorando-se cinco minutos de costas, depois
voltava-se do lado esquerdo, depois do direito, e nada.
Continuava a ter
sede. Levantou-se para beber. Depois tomou-o uma inquietação:
— Acaso terei medo?
Por que seria que o
seu coração se punha a bater loucamente a cada ruído conhecido que soava no
quarto? Quando o relógio ia a tocar, o pequeno rangido da mola fazia-lhe dar um
sobressalto; e era-lhe preciso abrir a boca, para respirar em seguida, durante
alguns segundos, tanta era a opressão que sentia. Pôs-se a raciocinar consigo
mesmo sobre a possibilidade disto:
— Terei medo?
Não, decerto, não
tinha medo, pois que estava resolvido a ir até ao fim, pois que tinha bem
nítida a vontade de bater-se, sem tergiversar. Mas sentia-se tão profundamente
perturbado que perguntava:
— Pode-se acaso ter
medo, malgrado nosso?
E essa dúvida
invadia-o, essa inquietação, esse temor; se uma força mais poderosa do que a
sua vontade, dominadora, irresistível, o domasse, que sucederia? Sim, que
poderia suceder? Com certeza ele iria a terreno, uma vez que assim o queria.
Mas se tremesse? Se desmaiasse? E pensava na situação em que ficaria a sua
reputação, o seu nome.
E empolgou-o de repente
um desejo singular de levantar-se para olhar-se ao espelho. Acendeu a vela.
Quando viu o seu rosto refletido no vidro polido, custou a reconhecer-se,
parecia-lhe que nunca se tinha visto. Os olhos pareceram-lhe enormes; estava
pálido, muito pálido.
Ficou de pé em frente
do espelho. Deitou a língua de fora como para constatar o estado de saúde em
que se achava, e de repente, este pensamento entrou nele com a presteza de uma
bala:
— Depois de amanhã, a
esta mesma hora, estarei talvez morto.
E o coração
pôs-se-lhe de novo a bater furiosamente. Depois de amanhã, a esta mesma hora,
estarei, talvez morto. Esta pessoa que está na minha frente, este eu que vejo
neste espelho, não o continuarei a ver. Como! pois eu estou aqui, olho-me,
sinto-me viver, e em vinte e quatro horas poderei estar estirado neste leito,
morto, de olhos fechados, frio, inanimado, apagado. Voltou-se para cama e
viu-se distintamente estendido no leito, de costas sobre esses mesmos lençóis
que acabava de deixar. Tinha esse rosto cavado que têm os mortos e essa moleza
das mãos que não mexerão mais.
Então, teve medo do
seu leito e, para não o continuar a ver, passou à sala do fumo. Pegou
maquinalmente numa vela, acendeu-a e continuou a marchar. Agora tinha frio; ia
direito à campainha para chamar o seu criado de quarto; mas, com a mão já no
cordão, deteve-se:
— Este homem vai
perceber que tenho medo.
E não tocou, acendeu
lume. As mãos tremiam-lhe um pouco, num estremecimento nervoso, quando tocavam
nos objetos. A cabeça desvairava-se-lhe; os pensamentos perturbados,
tornavam-se-lhe fugazes, bruscos, dolorosos; uma embriaguez invadia o seu
espírito como se estivesse embriagado.
E perguntava sem
cessar:
— Que irei fazer? Que
há de ser de mim?
Todo o seu corpo
vibrava, percorrido por estremecimentos sacudidos; levantou-se e,
aproximando-se da janela, abriu as cortinas.
Despontava o dia, um
dia de verão. O céu róseo tornava rósea a cidade, róseos os telhados e as
paredes. Uma grande porção de luz estendida, semelhante a uma carícia do sol nascente,
envolvia o mundo que despertava; e, com aquela claridade, uma esperança alegre,
rápida, brutal, invadiu o coração do visconde! Era doido por ter-se assim
deixado empolgar pelo temor, antes de nada se haver decidido, antes até de que
as testemunhas se houvessem avistado com as de Georges Lanil, antes mesmo de
saber se teria ou não de bater-se!
Fez a sua higiene
pessoal, vestiu-se e saiu com passo firme.
***
Repetiu, enquanto
caminhava:
— É preciso que seja
enérgico, muito enérgico. É preciso provar que não tenho medo.
As suas testemunhas,
o marquês e o coronel, puseram-se à sua disposição, e, depois de lhe terem
apertado energicamente as mãos, discutiram as condições.
O coronel perguntou:
— Quer um duelo
sério?
O visconde respondeu:
— Muito sério.
O marquês proferiu:
— Opta pela pistola?
— Sim.
— Deixe conosco o
resto.
O visconde articulou
numa voz seca e sacudida:
— A vinte passos, à
voz de comando, levantando à arma em vez de a baixar. Troca de balas até
ferimento grave.
O coronel declarou em
tom satisfeito:
— São umas condições
excelentes. O senhor é bom atirador, todas as vantagens estão do seu lado.
E partiram. O
visconde tornou a entrar em sua casa para ali os esperar. A sua agitação,
acalmada por um momento, crescia agora de minuto a minuto. Sentia ao longo dos
braços, ao longo das pernas, no peito, uma espécie de frêmito, de vibração
contínua: não podia estar no mesmo lugar, nem assentado, nem de pé. Não tinha
na boca traça de saliva, e fazia a cada instante um movimento ruidoso com a
língua, como para a deslocar do céu da boca.
Quis almoçar, mas não
pôde comer; então veio-lhe a ideia beber para tomar coragem, e foi buscar uma
garrafa de rum da qual bebeu, cálice sobre cálice, seis copos pequenos.
Invadia-o um calor
semelhante a uma queimadura, seguido de repente de um atordoamento a alma. E
pensou:
— Achei o meio. Agora
já isto vai bem. Mas ao fim de uma hora tinha despejado toda a garrafa e a
agitação voltava-lhe intolerável. Sentiu um desejo louco de se rebolar por
terra, de gritar, de morder. E a noite chegava. Um toque de campainha deu-lhe
uma tal sufocação que nem teve força de se levantar para ir receber as
testemunhas.
Nem mesmo ousava
falar-lhes, dizer-lhes "bom dia", pronunciar uma palavra, com o temor
de que elas adivinhassem tudo, à alteração da sua voz.
O coronel disse:
— Está tudo combinado
conforme as condições que propôs. O seu adversário ao principio reclamava os
privilégios de ofendido, mas cedeu quase desde logo e aceitou tudo. As suas
testemunhas são dois militares.
O visconde disse:
— Obrigado.
O marquês tornou:
— Desculpe-nos se
tivermos de entrar e sair muitas vezes, mas temos de nos ocupar ainda de mil
coisas. É preciso arranjar um bom médico, uma vez que o combate só cessará em
caso de ferimento grave, e o senhor sabe que as balas não são uma brincadeira.
É preciso escolher o local, nas proximidades de uma casa, para ali conduzir o
ferido se for necessário, etc., enfim, temos que mexer-nos ainda duas ou três
horas.
O visconde articulou
pela segunda vez:
— Obrigado.
O coronel perguntou:
— Sente-se bem?
Sente-se calmo?
— Sim, muito calmo,
obrigado.
As duas testemunhas
retiraram-se.
***
Quando de novo se
sentiu só, pareceu-lhe que tinha enlouquecido. Logo que o criado acendeu as
luzes, o visconde assentou-se à mesa para escrever algumas cartas. Depois de
haver traçado, ao alto de uma página: "Este é o meu testamento..."
levantou-se de uma sacudidela e afastou-se, sentindo-se incapaz de ligar duas
ideias, de tomar uma resolução, de decidir o quer que fosse.
Ia então bater-se! Já
não podia evitar isso. Que se passava então nele? Ele queria bater-se, tinha
aquela resolução e aquela intenção firmemente arraigadas; e sentia bem, apesar
de todo o esforço do seu espírito e de toda a tensão da sua vontade, que não
poderia nem mesmo conservar a força necessária para ir até ao lugar do
encontro. Procurava figurar no espírito o combate, a sua atitude e a disposição
do seu adversário.
De vez em quando os
dentes entrechocavam-se-lhe na boca, num tricolejar seco. Quis ler e pegou no
código do duelo de Chateauvillard. Depois perguntou a si próprio:
— O meu adversário
terá frequentado o tiro? Será conhecedor? Será classificado? Como sabê-lo?
Lembrou-se do livro
do barão de Vaux sobre o tiro de pistola, e percorreu-o do princípio ao fim.
Georges Lamil não era ali nomeado. Mas, se todavia aquele homem não fosse
atirador, teria afinal aceitado imediatamente aquela arma perigosa e as suas
condições mortais?
Abriu de passagem,
uma caixa de Gastinne Renente que estava sobre um velador, e pegou numa das
pistolas, depois colocou-se em posição de atirar e elevou o braço. Mas tremia
dos pés à cabeça e o cano movia-se em todas as direções.
Então disse:
— É impossível. Não
posso bater-me neste estado. E olhava para o extremo do cano, para aquele
buraquinho escuro e profundo que escarra a morte, e pensava na desonra, nos
cochichos a seu respeito nos circos, nos risos das salas, no desprezo das
mulheres, nas alusões nos jornais, nos insultos que receberia dos poltrões.
Continuava a olhar
para a arma, e, levantando o cão, viu de repente brilhar uma escorva por baixo,
como uma chamazinha vermelha. A pistola ficara carregada, por acaso, por
esquecimento. E ele experimentou com isso uma alegria confusa, inexplicável.
Se não tivesse em
presença do outro o aspecto nobre e calmo que era preciso ter, estava perdido
para sempre. Ficaria desonrado, marcado com o ferrete da infâmia, escorraçado
pelo mundo! E esse aspecto calmo e brigão hnão o poderia ele ter, bem o sabia,
bem o sentia. E no entanto, ele era um bravo, pois que... — O pensamento que
lhe aflorou, nem mesmo chegou a contemplar-se-lhe no espírito; mas, abrindo a
boca o mais que pôde, enterrou bruscamente, até ao fundo das goelas o cano da
pistola, e carregou no gatilho...
Quando o seu criado
de quarto acorreu, atraído pela detonação, encontrou-o morto, de papo para o
ar. Um jato de sangue esparrinhara para o papel branco que estava sobre a mesa
e fazia uma grande mancha vermelha por baixo destas quatro palavras:
"Este é o meu testamento".
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