Recordação
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Recordais-vos, velhos
amigos, meus irmãos, desses anos de alegria em que a vida não era mais do que
uma aurora triunfal e do que um sorriso? Recordais-vos desses dias de
vagabundagem em redor de Paris, da nossa radiosa pobreza, dos nossos passeios
nos bosques reverdecidos, da nossa embriaguez no ar azul dos cabarés, à margem
do Sena, e das nossas aventuras de amor tão banais e tão deliciosas?
Vou contar uma dessas
aventuras. Data ela de há uns doze anos e já me parece tão antiga, que me
aparece agora como no outro extremo da minha vida, antes da volta do caminho,
essa desagradável volta de caminho donde eu vi de repente todo o fim da viagem.
Tinha eu então vinte
e cinco anos. Acabava de chegar a Paris; era empregado num ministério, e os
domingos apareciam-me como festas extraordinárias, cheias de uma ventura exuberante,
muito embora neles não se passasse nada de extraordinário.
Hoje bem poderiam
chover domingos, que eu lamentaria sempre o tempo passado em que só tinha um
por semana. Como era belo! E tinha só seis francos para gastar!
***
Acordei cedo, nessa
manhã, com essa sensação de liberdade que tão bem conhecem os empregados públicos,
essa sensação de libertação, de repouso, de tranquIlidade, de independência.
Abri a minha janela.
Estava um tempo admirável. O céu, todo azul, estendia-se por sobre a cidade
coalhada de sol e de andorinhas.
Vesti-me a toda a
pressa e parti, tencionando passar o dia pelos campos, a respirar entre a
folhagem, pois que eu sou de origem campônia e fui criado entre a erva e sob as
árvores.
Alcancei o Sena para
tomar o vapor que me levaria a Saint-Cloud. Como eu gostava daquela espera pelo
barco sobre o pontão! Parecia-me que ia partir para o fim do mundo, para países
novos e maravilhosos.
Pessoas endomingadas
estavam já sobre ele, com trajos de passeio, fitas brilhantes e rostos
rechonchudos de cor escarlate. Eu colocava-me à proa, de pé, vendo fugir o cais,
às arvores, as casas, as pontes. E de repente, via o grande viaduto do Point-du-Jour
que barrava o rio. Era o termo de Paris, era o princípio do campo, e o Sena, de
repente, por detrás da dupla linha dos arcos, alargava-se como se lhe tivessem
dado o espaço e a liberdade, tornava se de repente o belo rio pacífico que vai correndo
através das planícies, aos pés das colinas bosqueadas, pelo meio dos campos, à
beira das florestas
Depois de haver
passado entre duas ilhas, o Andorinha
contornou um outeiro em cuja verdura se dissimulavam muitas casinhas brancas.
Uma voz "Bas-Meudon" depois mais longe: anunciou: "Sévres",
e mais longe ainda: "Saint-Cloud".
Desci. E segui a
passos apressados, através da pequena cidade, o caminho que vai ter ao bosque.
Levara comigo um mapa dos arredores de Paris para não me perder pelos caminhos
que atravessam em todos os sentidos aquelas pequenas florestas por onde
passeiam os parisienses.
Logo que me vi à sombra,
estudei o meu itinerário, que me pareceu de resto de uma simplicidade perfeita.
Ia voltar à direita, depois à esquerda, depois à esquerda ainda, e chegaria a Versailles
à noite, onde jantaria.
E pus-me a marchar
lentamente, sob as folhas novas, sorvendo aquele ar saboroso que perfumam os
gomos e as seivas.
Ia a passos curtos,
esquecido das papeladas, da repartição, do chefe, dos colegas, dos maços de documentos,
e pensando em coisas felizes que não poderiam deixar de me acontecer, em todo o
desconhecido velado pelo futuro.
Por vezes,
assentava-me, para olhar ao longo de um talude toda a casta de florinhas de que
há muito tempo não sabia o nome. Reconhecia-as a todas, como se fossem
justamente aquelas que vira outrora na minha terra. Elas eram amarelas, vermelhas,
de cor violeta, finas, delgadas, montadas em altas hastes ou acachapadas na
terra. Insetos de todas as cores e feitios, atarracados, alongados, extraordinários
de construção, monstros assustadores e microscópicos, faziam pacificamente ascensões
em pés de erva que vergava ao seu peso.
Depois, dormi algumas
horas numa vala, e tornei a partir, repousado, fortificado por aquele sono.
Diante de mim,
abria-se uma aleia encantadora, cuja folhagem um pouco rala deixava chover por
toda a parte sobre o solo gotas de sol que iluminavam as margaridas brancas.
Alongava-se interminavelmente, deserta e calma. Somente um pesado besouro solitário
e sussurrante seguia por ela, parando às vezes para beber numa flor que pendia
ao seu peso, e tornava a partir, quase no mesmo instante, para repousar um tudo
nada, um pouco mais longe. O seu corpo enorme parecia ser feito de veludo
escuro raiado de amarelo, levado por asas transparentes e pequeníssimas.
Mas de repente,
avistei ao fundo da aleia duas criaturas, um homem e uma mulher, que caminhavam
para mim. Aborrecido por ser perturbado no meu passeio tranquilo, ia a
internar-me por entre os soutos, quando me pareceu que me chamavam. A mulher,
com efeito, agitava a sua sombrinha, e o homem, em mangas de camisa, a redingote no braço, elevava o outro em
ar de lástima.
Caminhei para eles.
Eles caminhavam com passo apressado, muito vermelhos ambos, ela a passos miudinhos
e rápidos, ele a longas pernadas. Lia-se-lhes no rosto o mau humor e a fadiga.
A mulher perguntou-me
desde logo:
— O senhor pode dizer-me
onde estamos? o toleirão de meu marido fez-nos perder, pretendendo que conhecia
perfeitamente esta região.
Eu respondi com
segurança:
— Minha senhora, vossa
excelência dirige-se para Saint-Cloud e volta as costas a Versailles!
— Mas é justamente aí
que nós queremos ir jantar.
— Também eu, minha
senhora.
Ela disse por várias
vezes, encolhendo os ombros:
— Deus! meu Deus! meu
Deus! — com esse tom de soberano desprezo que as mulheres têm para exprimir a
sua desesperação. Era muito jovem, bonita, morena, com um ligeiro buçozinho.
Quanto a ele, suava e
limpava a testa. Era com certeza uma familiazinha de burgueses parisienses. O
homem parecia aterrado, derrancado e desolado.
Murmurou:
— Mas, minha boa
amiga... foste tu...
— Fui eu!... Ah!
agora fui eu... Fui eu quem quis partir sem indicações, pretendendo que não se
perderia? Fui eu quem quis tomar à direita, ao alto daquela encosta, afirmando
que conhecia o caminho? Fui eu quem se encarregou de Cachou...
Não acabara ela ainda
de falar, quando o marido, como se estivesse atacado de loucura, soltou um
grito lancinante, que não poderia ser descrito em língua alguma, mas que
pareceria isto: tiiitiiit.
A jovem pareceu não
se admirar, nem se comover e continuou:
— Não, na verdade,
sempre há criaturas muito estúpidas, e que tudo julgam saber. Também fui eu que
o ano passado tomei o comboio de Dieppe, em vez de tomar o do Havre, dize lá,
fui eu? Fui eu quem apostou que o senhor Letourner morava na Rua dos Mártires?...
Fui eu quem não quis acreditar que a Celeste era uma ladra?...
E ela continuava com fúria,
com uma velocidade de língua surpreendente, acumulando as acusações mais
diversas, mais inesperadas e mais opressivas, fornecidas por todas as situações
íntimas da existência comum, repreendendo o marido por todos os atos, todas as
ideias, todas as suas maneiras de proceder, todas as suas tentativas, todos os
seus esforços, a sua vida toda, desde o casamento até àquela hora.
Ele tentava detê-la,
acalmá-la, e gaguejava:
— Mas, minha querida...
é inútil... diante deste senhor... Olha que damos um espetáculo... Isso nada
interessa a este senhor.
E voltava os olhos
magoadamente para os bosques, como se quisesse sondar-lhes a profundeza pacífica
e misteriosa, para atirar-se para o interior deles, fugir, esconder-se a todos
os olhares: e, de tempos a tempos, soltava um novo grito, um tiiitiiit prolongado, sobre-agudo. Tomei
aquele hábito por uma doença nervosa.
A jovem, de repente,
voltou-se para mim, e mudando de tom pronunciou com voz singular:
— Se fosse de sua
vontade, senhor, caminharíamos os três juntos, para não nos perdermos novamente
e não nos expormos a dormir no bosque.
Eu inclinei-me; ela
tomou o meu braço e pôs-se a falar de mil coisas, de si, da sua vida, da sua família,
do seu comércio. Eram luveiros na rua Saint-Lazare.
O marido caminhava ao
lado dela, continuando a deitar olhares de louco para a espessura das árvores,
e gritando tiiitiiit de momento a
momento.
Por fim,
perguntei-lhe:
— Por que grita o
senhor assim?
Ele respondeu com ar
consternado, desesperado:
— É pelo meu pobre
cão, que eu perdi.
— O quê? o senhor
perdeu o seu cão?
— Sim, senhor, tinha
apenas um ano.
Nunca tinha saído da
loja. Quis trazê-lo para passear pelo bosque. Ele nunca tinha visto árvores nem
pedras, nem folhas e ficou como doido. Pôs-se a correr e a latir e desapareceu
na floresta. Sem contar que tem também muito medo do caminho de ferro, o que
deve ter-lhe feito perder a cabeça. Por mais que o chamasse não voltou. Vai morrer
de fome ali entre o arvoredo.
A jovem, sem se
voltar para o marido, articulou:
— Se lhe não
deixasses o cordel já isso não sucederia. Quem é estúpido como tu, não deve ter
cão.
Ele murmurou
timidamente:
— Mas, minha querida
amiga, foste tu.
Ela tomou a palavra;
e, olhando-o nos olhos como se lhos fosse arrancar, recomeçou a deitar-lhe em
rosto repreensões sem número.
Caía a noite. O véu
de bruma que cobre o campo ao crepúsculo, desdobrava-se lentamente; e uma
poesia flutuava, feita dessa sensação de frescor particular e encantador que
enche os bosques à aproximação da noite.
De repente, o rapaz
parou, e apalpando o corpo febrilmente:
— Oh! lá se me foi.
Ela olhou para ele:
— Bem, que mais há?
— Não reparei que
tinha a minha redingote no braço.
— E depois?
— Perdi a carteira...
com todo o dinheiro dentro.
Ela estremeceu de
cólera e sufocou de indignação.
— Não faltava mais
nada. Oh que estúpido! Que estúpido me saíste! Parece impossível que eu haja
casado com um tal idiota! Pois bem, vai procurá-la, e vê se a achas de qualquer
maneira. Eu sigo para Versailles com este senhor. Não tenho vontade nenhuma de
dormir no bosque.
Ele respondeu
mansamente:
— Sim, minha amiga; e
onde os encontrarei?
Tinham-me recomendado
um restaurante. Indiquei-o.
O marido voltou pelos
mesmos passos, e, curvado para a terra, que o seu olhar ansioso perscrutava,
gritava tiiitiiit a todo o momento,
afastando-se.
Levou muito tempo a
desaparecer; a sombra, mais espessa, fazia-o esfumar ao longo da aleia. Dentro
em pouco não se lhe distinguiu mais que a silhueta do corpo; mas continuou o
ouvir-se por muito tempo o seu tiiitiiit
tiiit, tiiit tiiit lamentoso, mais agudo à medida que a noite se tornava
mais escura.
Eu, ia com passo
vivo, um passo feliz, na doçura do crepúsculo, com aquela mulherzinha
desconhecida que se apoiava no meu braço.
Procurava palavras
galantes para lhe dirigir mas não as encontrava; fiquei calado, perturbado,
encantado.
Mas de repente, uma
grande estrada cortou a aleia. À direita num vale, vi nem mais nem menos que
uma cidade.
Em que região estávamos?
Como passasse um
homem interroguei-o. Ele respondeu:
— É Bougival.
Eu fiquei interdito:
— Como assim,
Bougival? Tem a certeza?
— Ora essa. pois se
eu sou de lá!
A mulherzinha ria
como uma louca.
Propus-lhe tomar uma
carruagem para ganharmos Versailles. Ela respondeu:
— Não é preciso. Acho
o caso divertido, e tenho bastante vontade de comer. No fundo, estou bem
tranquila; meu marido estará sempre bem, esteja onde estiver. É um benefício
para mim o estar livre dele durante algumas horas.
Entramos pois num
restaurante, à beira da água, e ousei tomar um gabinete reservado.
Ela alegrou-se com o vinho, posso garantir-lhes que muito razoavelmente, cantou, bebeu champagne, fez todas as loucuras... até mesmo a maior de todas. Foi o meu primeiro adultério.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...