O parricida
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
O advogado pleiteara, alegando em favor do criminoso a loucura. Como explicar de outro modo aquele crime extraordinário?
Haviam sido
encontrados uma manhã, em um canavial, perto de Chatou, dois cadáveres
enlaçados, marido e mulher, dois mundanos conhecidos, ricos, ambos jovens,
casados, havia apenas um ano, a mulher viúva de havia três anos.
Não se lhes conheciam
inimigos, não tinham sido roubados. Parecia que os tinham atirado da margem
para a ribeira, depois de os haverem ferido, um após outro, com uma comprida
ponta de ferro.
A investigação nada
descobrira. Os barqueiros interrogados nada sabiam; ia-se já abandonar o
processo, quando um jovem marceneiro, de uma aldeia vizinha, chamado Georges
Louis, por alcunha "O Burguês", veio declarar-se culpado.
A todos os
interrogatórios, ele apenas respondia isto:
— Eu conhecia esse
homem havia dois anos e a mulher havia meses. Eles mandavam-me muitas vezes
reparar móveis antigos porque sou hábil nesse gênero de ofício.
E quando lhe
perguntavam:
— Mas por que os
matou?
Respondia
obstinadamente:
— Matei-os por que
quis.
Não se lhe conseguia
arrancar outra coisa.
Este homem era um
filho natural sem dúvida, posto outrora na ama, depois abandonado. Não tinha
outro nome a não ser o de Georges Louis, mas como, à maneira que foi crescendo,
se tornou singularmente inteligente, com gostos e delicadezas nativas que os
seus camaradas não possuíam, alcunharam-no de: "O Burguês;" e não o
tratavam de outro modo. Passava por um operário notavelmente perfeito no ofício
que para si adotara, o de marceneiro. Fazia até mesmo um pouco de escultura em
madeira. Diziam também que era muito exaltado, partidário das doutrinas
comunistas e mesmo niilistas. grande leitor do romances de aventuras, romances
de dramas sanguinolentos, eleitor influente e orador hábil nas reuniões
públicas de operários e de camponeses.
***
O advogado alegara a
loucura.
Como se poderia, com
efeito, admitir que aquele operário houvesse morto os seus melhores fregueses,
fregueses ricos e generosos (como ele próprio reconhecia), que lhe haviam dado
a ganhar, em dois anos, três mil francos pelo trabalho (segundo os seus livros
de escrita davam conta). Uma única explicação se apresentava: a loucura, a
ideia do deslocado social que se vinga em dois burgueses de todos os burgueses,
e o advogado, fazendo uma alusão àquele apelido de "O Burguês", dado
no sítio àquele abandonado, exclamou:
— Não será uma
ironia, e uma ironia capaz de exaltar ainda mais esse rapaz que não tinha pai
nem mãe? É um ardente republicano. Que digo? pertence mesmo a esse partido
político que a República fuzilava e deportava outrora, que ela acolhe hoje de
braços abertos, esse partido para o qual o incêndio é um princípio e a morte um
meio muito simples.
Estas tristes
doutrinas, aclamadas atualmente nas reunbiões públicas, perderam esse homem.
Ele ouviu republicanos, mesmo mulheres, sim, mulheres! pedirem o sangue de
Gambetta, o sangue de Grévy; o seu espírito doente transtornou-se, quis sangue,
sangue de burgueses!
Não é a ele que se
deve condenar, senhores, é a Comuna!
Soaram murmúrios de
aprovação. Via-se bem que a causa estava ganha pelo advogado. O ministério
público não replicou.
Então o presidente
dirigiu ao acusado a pergunta de praxe:
— O réu tem alguma
coisa a alegar em sua defesa?
O homem levantou-se:
Era de estatura
baixa, de um louro cor de linho, os olhos pardos, fixos e claros. Uma voz
forte, franca e sonora daquele frágil rapaz e mudava bruscamente, às primeiras
palavras, a opinião que se fizera a seu respeito.
Falou alto, num tom
declamativo, mas tão nitidamente, que as suas menores palavras se fizeram ouvir
até ao fundo da grande sala:
— Meu presidente,
como não quero ir para uma casa de doidos e até prefiro a guilhotina, vou
contar-lhe tudo.
Eu matei esse homem e
essa mulher porque eram meus pais.
Agora escute-me e
julgue-me.
Uma mulher, tendo
dado à luz um filho, mandou-o para qualquer parte, para uma ama. Ela apenas
soube para que região o seu cúmplice levou o inocente, mas condenado à miséria
eterna, à vergonha de um nascimento ilegítimo, mais do que isso: à morte, pois
que o abandonaram, pois a ama não continuando a receber a mensalidade, podia
como elas fazem muitas vezes, deixá-lo desaparecer, morrer de fome, morrer de
definhamento.
A mulher que me
amamentou foi honesta, mais honesta, mais mulher, maior, mais mãe que a minha
própria mãe. Educou-me. Fez mal, cumprindo esse dever. Vale mais deixar perecer
esses miseráveis deitados às aldeias dos arrabaldes como se deixa uma sujidade
à margem.
Cresci com a
expressão vaga de que tinha em mim a desonra. As outras crianças, um dia,
chamaram-me o "enjeitado". Elas não sabiam o que significava esta
palavra ouvida por uma delas a seus pais. Eu ignorava-o também, mas senti-me.
Eu era, posso-o
dizer, um dos mais inteligentes da escola. Teria sido um homem honesto, meu
presidente, talvez um homem superior, se os meus pais não houvessem cometido o
crime de me abandonar.
Esse crime, foi
contra mim, recaiu sobre mim. Eu fui a vítima, eles os culpados. Eu era sem
defesa, eles foram sem piedade. Deviam amar-me e rejeitaram-me.
Eu, devia-lhes a vida
— mas a vida é acaso uma dádiva? A minha, não era em todo caso, mais que uma
desgraça. Depois do seu vergonhoso abandono só lhes devia a vingança. Eles
cometeram contra mim o ato mais desumano, mais infame, mais monstruoso que se
pode cometer contra um ser. — Um homem injuriado fere; um homem roubado retoma
os seus bens pala força. Um homem enganado, ludibriado, martirizado, mata; um
homem esbofeteado mata; um homem desonrado mata. Eu fui mais roubado, mais
enganado, mais desonrado que todos aqueles de que vós absolveis a cólera.
Vinguei-me, e matei.
Era o meu delírio legítimo. Tirei-lhes a vida feliz, em troca da vida horrível
que me haviam imposto.
O senhor vai falar de
parricídio! Eram meus pais, essas criaturas para quem eu fui um fardo abominável,
um terror, uma nódoa de infâmia; para quem o meu nascimento foi uma calamidade
e a minha vida uma ameaça de vergonha? Eles buscavam um prazer egoísta; tiveram
um filho imprevistamente. Suprimiram esse filho. Chegou-me a vez a mim de fazer
outro tanto a eles.
E contudo, ainda
ultimamente eu estava disposto a amá-los. Há dois anos, como há pouco disse, o
homem, meu pai, entrou em minha casa pela primeira vez. Eu de nada desconfiava.
Encomendou-me dois móveis. Ele havia tomado, soube-o eu mais tarde, esclarecimento
com cura, sob condição de segredo, está claro.
Voltou à minha casa
muitas vezes; dava-me trabalho e pagava-me bem. Por vezes, chegava mesmo a
conversar comigo. Eu sentia afeição por ele.
Nos começos deste ano
levou consigo sua mulher, a minha mãe. Quando ela entrou, tremia por tal forma
que a julguei atacada de uma doença nervosa. Depois pediu uma cadeira e um copo
de água. Não disse palavra; olhou para os meus móveis com um ar tresloucado, e
não respondeu mais que sim e não, a todas as perguntas que lhe eram feitas!
Quando ela partiu eu fiquei um pouco sentido.
Voltou no mês
seguinte. Estava calma, senhora de si. Ficaram, nesse dia, muito tempo a
conversar, e fizeram-me uma grande encomenda.
Tornei a vê-los ainda
três vezes, sem nada adivinhar; mas um dia ela pôs-se a falar-me de minha vida,
da minha infância, dos meus pais. Eu respondi:
"Meus pais,
minha senhora, eram uns miseráveis, pois me abandonaram". Então ela levou
a mão ao coração, e caiu sem sentidos. Eu pensei desde logo: "É minha
mãe!" mas fiz a diligência de nada dar a conhecer. Queria vê-la voltar
ali.
Tomei, por minha
parte as minhas informações. Soube que eles eram casados apenas desde o
antecedente mês de julho, tendo a minha mãe enviuvado havia apenas três anos.
Murmurava-se que se haviam amado em vida do outro marido, mas não havia prova
alguma disso. Era eu a prova, a prova que eles haviam em seguida escondido,
esperando vê-la destruída depois.
Esperei. Ela tornou à
minha casa uma tarde sempre acompanhada por meu pai. Naquele dia pareceu-me
muito comovida, não sei por que. Depois, no momento de retirar-se disse-me:
"Eu quero-lhe bem porque me parece um rapaz honesto e trabalhador;
qualquer dia talvez pense em casar-se; gostaria de o ajudar a escolher
livremente a mulher que lhe conviesse. Eu fui casada contra a minha vontade uma
vez, e sei o que se sofre com isso. Atualmente estou rica, sem filhos, livre,
senhora da minha fortuna. Aqui tem o seu dote".
E estendeu-me um
grande envelope lacrado.
Eu olhei-a com
firmeza e depois disse-lhe: "A senhora é minha mãe?"
Ela recuou três
passos e tapou os olhos com as mãos para não me ver. Ele, o homem, meu pai,
amparou-a nos braços e gritou-me: "O senhor está doido?"
Eu respondi:
"Não estou. Bem sei que são os meus pais. Não me enganam assim. Confessem,
que eu guardarei segredo; não lhes quererei mal; ficarei como marceneiro."
Ele recuava para a
saída, continuando a amparar sua mulher que começava a soluçar. Corri a fechar
a porta, meti a chave no bolso e continuei: "Olhe para ela, e negue ainda
que é aquela a minha mãe".
Então a cólera
tomou-o, fez-se muito pálido, espantado ao pensamento de que o escândalo
evitado até ali pudesse fazer-se de repente; que a sua situação, o seu renome,
a sua honra fossem perdidos de uma só vez, e balbuciou:
"Aí tens o que
querias. É este sempre o resultado que obtém os que querem socorrer e auxiliar
esses patifes."
Minha mãe, como
louca, repetia continuamente:
"Vamo-nos,
vamo-nos."
Então, como a porta
estivesse fechada, ele gritou:
"Se não me abre
a porta imediatamente, vou fazê-lo prender por chantagem e violência!"
Eu ficara senhor de
mim; abri a porta e vi-os desaparecer na escuridão da noite.
Então, pareceu-me de
repente que acabava de ficar órfão, de ser abandonado, atirado a uma valeta:
uma espantosa tristeza, misto de cólera, de ódio, de tédio, me invadiu; sentia
como que uma sublevação de todo o meu ser, uma sublevação da justiça, da
probidade, da honra, da afeição repelida; pus-me a correr para os apanhar, ao
longo do Sena, que lhes era preciso seguir para chegarem à estação de Chatou.
Não tardei a chegar
perto deles. A noite descera escura. Eu ia a passos abafados por sobre a relva,
de sorte que eles não me ouviam. Minha mãe continuava chorando. Meu pai dizia:
"É para teu
castigo. Para que quiseste vê-lo? Era uma loucura na nossa posição. Podíamos
fazer-lhe bem, de longe, sem nos mostrarmos. Uma vez que não o podíamos
perfilhar, de que serviam estas visitas perigosas?"
Então, eu atirei-me
para a frente deles suplicante. Balbuciei: "Bem veem que são meus pais. Já
me repeliram uma vez, repelir-me-ão ainda mais?" Então, meu presidente,
ele levantou a mão para mim, juro-o pela minha honra, pela lei, pela República.
Feriu-me, e como eu o agarrasse pelo colete, tirou da algibeira um revólver.
Ceguei-me, e não
soube mais o que fiz. Tinha o meu compasso na algibeira; feri-o até mais não
poder.
Então ela pôs-se a
gritar: "Socorro! assassino!" arrancando-me as barbas. Parece que a
matei também. Podia acaso saber o que fazia naquele momento?
Depois, quando os vi
a ambos por terra, atirei-os ao Sena, sem refletir.
Aqui está como foi.
— Agora, condene-me.
O acusado tornou a sentar-se. Perante aquela revelação, o processo ficou adiado para outra sessão. Esta não tardará a realizar-se. Se nós fôssemos jurados, que faríamos deste parricida?
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