O exemplo
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
A vivenda estava cercada por um
formoso jardim e tinha currais, quiosques e um passadiço que se comunicava com
os cômodos da casa.
O sr. Larebour era gordo e alegre e
sua mulher franzina e voluntariosa; ela, porém, não pôde dominar o bom humor de
seu marido com seu gênio desordeiro de mulher incontentável. Penteava o cabelo,
lia romances e se bem que aparentasse não os apreciar, muitas vezes a
perturbaram as emoções de suas leituras. Julgavam-na muito apaixonada, mas
nunca fez nada que justificasse essa opinião. Seu esposo dizia de vez em quando
"boa está minha mulher" e o tom de suas palavras dava lugar a
interpretações diversas.
Há tempos que a senhora se mostrava
agressiva com o Sr. Larebour, sempre irritada e violenta, como se uma tristeza
íntima e indizível a torturasse; de que resultou uma desavença contínua.
Dirigiam-se apenas a palavra e a mulher, que se chamava Palmira, incomodava sem
cessar o marido, que se chamava Gustavo, com alusões grosseiras, com repugnâncias
intempestivas e palavras irônicas sem motivo aparente.
O homem encolhia os ombros e todas
as maldades de sua mulher não bastavam para perturbar a sua jovialidade.
Contudo, às vezes perguntava a si mesmo que motivo podia exasperar sua companheira,
porque aquela irritabilidade tinha seguramente alguma causa oculta e difícil de
adivinhar.
Gustavo dizia-lhe com frequência:
— Vamos, explica-me o que te acontece.
Por que te mostras desgostosa comigo? Não dissimules, reprova-me o que tiveres
para me reprovar.
E ela respondia invariavelmente:
— Não tenho nada e se tivesse um
motivo de desgosto deverias adivinhá-lo. Não gosto dos homens obtusos, de tal
modo incapazes de compreender, que precisam, para entender alguma coisa, de uma
explicação minuciosa.
E ele murmurava:
— Já vejo que não queres falar
claramente.
As noites, sobretudo, eram incômodas
para ele, porque ainda dormiam no mesmo leito. Palmira, então, esgotava o
repertório de vexames, deixando para quando se achavam deitados, um junto ao
outro, as zombarias mais vivas e as frases mais fortes. Lamentava-se, principalmente,
ironicamente, da gordura do marido!
— Tanto engordas que pouco a pouco
vais precisando de toda à cama para ti. E teu suor cai pegajoso nos meus ombros,
como se fosse manteiga derretida. Sabes que isto não é muito agradável.
Obrigava-o a levantar-se sob o menor
pretexto, para que fosse buscar um jornal ou a garrafa de água de flores de
laranjeira que Gustavo não encontrava porque Palmira a guardava debaixo de chaves.
E dizia-lhe em tom furioso e sarcástico:
— Devias ter mais cuidado e saber
onde se deixam as coisas.
Quando ele, depois de percorrer a
casa toda durante às vezes uma hora, voltava com as mãos vazias, ela murmurava:
— Vamos, deita-te. Passeios assim
te convêm para ver se emagreces, pois bem os necessitas. Vais te pondo macio
como uma esponja.
Despertava-o frequentemente dizendo
que lhe doía o estômago e fazendo-o dar-lhe fricções com flanela embebida em água
de colônia. Gustavo fazia o possível para curá-la, desconsolado ao vê-la sofrer
e se o fingido acesso durava muito, propunha despertar a criada Consuelo. Ela porém,
enfurecia-se, vociferando:
— Não te lembras senão de tolices.
Para que despertar ninguém? Já não me doe; já podes dormir como um borrego.
E o bom homem perguntava:
— Já não sentes nenhuma dor?
E ela respondia bruscamente:
— Nenhuma; cala-te e deixa-me
dormir. Não me aborreças. És inútil para tudo. Não sabes fazer nada.
Gustavo, desconsolado, insistia:
— Mas, mulher, que queres?
E ela, exaltando-se, gritava:
— Que vou querer de um homem como
tu? Deixa-me dormir em paz.
E voltava-lhe as costas.
Mas uma noite ela o sacudiu tão
violentamente, que Gustavo saltou da cama e se pôs em pé com uma rapidez fora
do comum, balbuciando:
— Que há? Que te aconteceu?
Palmira apertando-lhe dolorosamente
um braço, disse-lhe ao ouvido:
— Alguém anda pela casa.
Habituado aos alarmas frequentes da
mulher, tranquilizou-se logo, perguntando com calma:
— Que dizes? Que suspeitas?
Palmira, trêmula, perturbada, prosseguiu:
— Ouvi andar, não duvides. Alguém
anda por aí.
— Alguém? É tu que pensas. Sem dúvida,
ouviste mal.
— Quem pode andar a estas horas
pela casa?
Ela, estremecida, murmurou.
— Quem, quem? Ladrões, imbecil!
Gustavo fez menção de cobrir-se com
o lençol.
— Sonhaste, certamente; não há ladrões.
Mas Palmira saltou frenética da
cama, dizendo-lhe:
— És tão covarde como incapaz.
Defender-me-ei só. Não me deixo matar só porque és medroso.
E apanhando uma colher de pau,
ficou em atitude de combate junto à porta fechada com tranca.
Arrebatado com aquele exemplo de
coragem, o marido levantou-se de novo e compreendendo a astúcia, ficou junto da
mulher.
Esperaram vinte minutos no mais
completo silêncio e na mais triste figura.
Nenhum ruído perturbou a casa neste
tempo, e a mulher encostando-se novamente a ele disse-lhe, com raiva:
— Estou certa de ter ouvido passos.
No dia seguinte, para evitar polêmicas,
Gustavo não fez a menor alusão ao caso.
Mas à noite, a senhora Larebour
despertou o marido com mais violência que na noite anterior e, sufocando-se,
murmurou:
— Gustavo, Gustavo... acabam de abrir a porta do jardim.
Surpreendido com a insistência,
julgou que sua mulher -fosse sonâmbula e quando se resolvia tranquilamente a demonstrar,
pareceu-lhe ouvir também um ligeiro ruído junto aos muros da casa.
Levantou-se, correu à janela e viu,
com efeito, uma sombra que atravessava o jardim.
— Sim, há gente — disse, angustiado;
mas recobrando sua dignidade, sentiu-se arrebatado pela cólera do dono que vê e
exclamou:
— Que me esperem, verão já.
Abriu a secretaria, tirou o revólver
e desceu as escadas rapidamente.
Sua mulher seguia-o, dizendo-lhe:
— Gustavo, Gustavo, não me abandones. Gustavo, não me deixes aqui só, Gustavo...
Ele, porém, não a escutava, dirigindo-se
para o jardim e ela voltou para o quarto, com medo, fechando-se...
Esperou cinco minutos, dez, um
quarto de hora; vítima já de um terror invencível, julgou que o haviam
assassinado. O silêncio enlouquecia-a; preferia ter ouvido seus tiros de revólver,
saber que lutando, ele se defendia...
Tocou a campainha; a criada não atendeu;
desfalecia chamando pela segunda vez. A casa inteira estava surda.
Olhou pelos vidros da janela para fora,
querendo adivinhar o que ocultava a noite escura; mas só distinguiu grandes sombras
negras.
Era meia noite. Fazia já quarenta e
cinco minutos que Gustavo saíra e não voltara... Não o veria mais. Não.
Certamente não veria mais...
Ajoelhou-se lamentando-se. Leves
pancadas na porta fizeram-na levantar-se rapidamente. Gustavo chamava-a.
— Sou eu, Palmira, sou eu, abre.
Abriu e com as mãos na cintura,
bamboleando-se ferozmente e com os olhos ainda cheios de lágrimas, vociferou:
— De onde vens, animal? Deixas-me
morta de medo e, não te preocupas com tua mulher... como se não existisse.
Gustavo tinha fechado a porta e
ria-se, ria-se como um louco, abrindo muito a boca e segurando a barriga com as
mãos...
Palmira, intrigada, calou-se, enquanto
o esposo lhe dizia em gargalhadas:
— Era... era... Consuelo... que
tinha dado... dado uma, uma entrevista... no passadiço... Se soubesses... que
coisas... que coisas eu vi...
Palmira empalideceu. A indignação
sufocou-a...
— Hein? Que dizes... Consuelo? Em
minha, casa?... Em minha.. em minha... casa... em minha... no passadiço? E não
mataste o homem? Tinhas um revólver na mão e não o mataste... e consentiste que
fizessem minha casa... em minha casa?
Não podia mais e teve que se sentar
para não cair.
Gustavo muito contente, tocava
castanholas com os dedos, torcendo-se, relambendo-se e rindo sem cessar.
— Se soubesses... Palmira... se soubesses.
Bruscamente estreitou-a nos braços,
dando-lhe um beijo.
Palmira. repelindo-o indignada, repetia:
— Não quero essa mulher em minha
casa nem um dia mais. Ouves? Nem um dia... nem uma hora... vamos despachá-la já...
já
O Sr. Larebour, agarrando a mulher cintura,
beijava-a no pescoço, com entusiasmo. Palmira calou-se e ele, sem deixar de
acariciá-la, foi conduzindo-a pouco a pouco para cama...
***
Às nove horas, espanta Consuelo de
não ver os patrões que se levantaram sempre muito cedo, bateu-lhes na porta.
Estavam deitados e falavam alegremente.
— Senhora, o café — disse Consuelo,
estranhando o que via,.
A senhora Larebour, inclinando-se
docemente para ela, murmurou:
— Traga-o, filha. Estamos um pouco
fatigados; dormimos mal.
Apenas a rapariga saiu, Gustavo
rindo-se muito e fazendo cócegas em Palmira, insistiu:
— Ah! se tu soubesses... Ah! se tu
soubesses...
Ela pegou-lhe nas mãos...
— Não rias tanto, meu maridinho; acalma-te
um pouco... Basta, basta pode fazer-te mal.
E beijou-lhe nos olhos amorosamente.
Desde aquele dia, a senhora Larebour não se mostrou
mais áspera e nas noites claras algumas vezes o casal ia cautelosamente até ao
passadiço.
Ali passavam em silêncio muito
tempo, juntos, como se através do vidro vissem coisas interessantes e
estranhas.
Aumentaram o ordenado de Consuelo e o Sr. Larebour começou a emagrecer.
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