Garçom, um chope...
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Por que entrara eu naquela cervejaria? Nem sei. Fazia frio. Uma chuva fina, uma poeira d'água embaçava os bicos de gás de uma bruma transparente, fazia brilhar as calçadas e aclarava a lama úmida e os pés dos transeuntes.
Eu não tinha destino.
Caminhava um pouco depois do jantar. Passei pelo "Credit Lyonnais", a
Rua Viviene e outras ruas ainda. De repente vi uma grande cervejaria quase
cheia. Entrei, sem saber por que; não tinha fome.
De relance procurei
um lugar onde pudesse estar mais a vontade e ia sentar-me ao lado de um homem
que parecia velho e que fumava um cachimbo barato, de barro, negro como carvão.
Seis ou oito rodelas de louça, indicavam o numero de chopes que já tinha absorvido.
Não reparei mais no meu vizinho.
Percebi facilmente
que era um chopista, um desses frequentadores de cervejarias que chegam de
manhã, quando a casa se abre, e só saem à noite quando a casa se fecha. Estava
sujo, calvo, dessa calvície do meio da cabeça, enquanto longos cabelos
gordurosos, em torno da cabeça, cabiam sobre a gola da sua sobrecasaca. A sua
roupa, muito larga, parecia ter sido feita, no tempo em que ele tinha barriga.
Percebia-se que as calças não se ajustavam muito bem àquelas pernas e que esse
homem não podia dar dez passos sem ter de endireitar aquela roupa, que tão mal
se ajustava ao seu corpo. Teria colete? Só em pensar naqueles sapatos e no que
eles escondiam, eu ficara aterrorizado. Os punhos estavam completamente negros
nas bordas e as unhas estavam também no mesmo estado dos punhos.
Assim que me sentei
ao lado dele, o meu estranho vizinho, perguntou-me tranquilamente: "Como
vais?"
Virei-me para ele de
repente e encarei-o: "Não me conheces?"
— Não!
— Des Barrets.
Fiquei admiradíssimo.
Era o Conde Jean des Barrets, meu antigo companheiro de colégio.
Apertei-lhe a mão sem
saber o que dizer. Enfim, balbuciei: "E tu vais bem?"
Respondeu
tranquilamente: "Eu Vou indo como posso".
Calou-se. Eu quis ser
amável, procurei uma frase "E... que fazes?"
Replicou
resignadamente: "O que vês..."
Eu me senti corar.
Insisti. "Mas... todos os dias?"
Soprando espessas
baforadas de fumaça, respondeu: "Todos os dias é a mesma coisa".
Depois batendo na
mesa com uma moeda, que segurava, gritou:
"Garçom, dois
chopes".
Lá dentro uma voz
repetiu: "Dois chopes para o quatro". Uma voz mais distante ainda,
gritou um "pronto" agudo e incisivo.
Depois um homem de
avental branco apareceu, trazendo dois chopes, de que, na pressa, deixava cair
gotas amarelas sobre o chão coberto de areia.
Des Barrets virou de
um trago o seu chope, colocou o copo sobre a mesa enquanto aspirava a espuma
que lhe ficara no bigode.
Depois perguntou:
"Que há de novo?"
Na verdade, eu nada
sabia de novo para lhe contar. Balbuciei: "Mas... nada, meu caro. Sou
negociante".
Com a sua voz sempre
igual, indagou: "E isto te agrada?"
— Não: mas que
queres? É preciso fazer alguma coisa.
—Para quê?
— Para ter uma
ocupação.
—E de que serve isso?
Eu cá não faço nada, como vês, nada, nada. Quando não se tem dinheiro,
compreendo que se trabalhe. Mas quando se tem do que viver, é inútil. Para que
trabalhar? Trabalhas para ti ou para os outros? Se trabalhas para ti, é porque
isto te agrada, então muito bem. Se trabalhas para os outros, és um tolo.
Depois, descansando o
cachimbo sobre o mármore da mesa, pediu novamente:
— Garçom, um
chope!...
E continuou:
— Falar dá-me sede.
Não tenho hábito de falar. Sim, eu não faço nada; deixo-me ir indo...
envelheço. Quando morrer não deixarei saudades. Não levarei outra recordação
senão a desta cervejaria. Nem mulher, nem filhos. nem inquietações, nem
desgraças. Assim é melhor.
Esvaziou o copo que
lhe trouxeram, passou a língua pelos lábios e retomou o cachimbo.
Eu ouvia-o admirado.
Perguntei-lhe:
— Mas não eras assim.
— Sempre... Desde o
colégio.
Mas isto não é vida.
Confessa, fazes sempre alguma coisa; tens amigos,
— Não. Levanto-me ao
meio-dia. Venho para aqui, almoço, bebo chopes; espero a noite, janto, bebo
chopes. Depois, assim pela uma hora e meia da madrugada vou deitar-me, porque
isto se fecha. E o que mais me aborrece. Nestes últimos dez anos, passei seis
neste banco, no meu canto; o resto na minha cama, nunca em outro lugar
qualquer. Converso às vezes, com os frequentadores.
—Mas, chegando a
Paris, que foi que fizeste?
— Estudei direito...
no Café de Medicis.
— E depois?
— Depois? Atravessei
o rio e vim dar aqui.
— Por que fizeste
isto?
— Que queres? Não se
pode passar a vida inteira no Quartier
Latin.
Os estudantes fazem
muito barulho. Agora não falo mais. Garçom, um chope.
Pensei que se
divertia à minha casta. Insisti:
— Fala franco.
Tiveste um grande desgosto? Um desespero de amor, sem dúvida? Decerto, és um
homem minado pela desgraça. Que idade tens?
— Trinta e três anos:
mas pareço ter quarenta e cinco, no mínimo.
Olhei-o bem de
frente. Seu rosto enrugado, mal cuidado, parecia o de um velho. Em cima da
cabeça, alguns cabelos longos, desgrenhavam-se sobre uma pele de limpeza
duvidosa. Tinha sobrancelhas enormes, um grande bigode e uma barba espessa.
Tive, não sei por que, a impressão de uma bacia de água pouco limpa, água em
que tivessem sido lavados todos esses pelos. Respondi:
— Na verdade, pareces
muito mais velho. Naturalmente, tiveste grandes desgostos.
Replicou:
— Garanto-te que não.
Estou velho porque não tenho cuidados comigo.
Não há nada que mais
estrague um homem do que a vida do café.
Eu não podia crer:
— Abusaste de mais do
amor. Não se é calvo, como tu, sem que se tenha amado muito.
Sacudiu
tranquilamente a cabeça, semeando sobre as costas pequenas coisas brancas, que
lhe caíam dos últimos cabelos:
— Não; sempre fui
muito comedido.
E levantando os olhos
para o lustre que nos iluminava:
— Se estou calvo, a
culpa é do gás. É um terrível inimigo do cabelo. Garçom, um chope! Não tens
sede?
— Não, obrigado. Na
verdade, tu me interessas. Desde quando tens esta falta de coragem? Isto não é
normal, não é natural. Há de haver nisso alguma coisa.
— Sim, isto data da
minha infância. Recebi um golpe, quando era criança. E fiquei assim para o
resto da vida.
— Que foi?
— Queres saber?
Lembras-te do castelo onde fui educado? Pois lá estiveste cinco ou seis vezes,
durante as férias... Lembras-te desse grande edifício, construído no centro de
um grande parque, com avenidas de árvores abertas para os quatro pontos
cardeais? Lembras-te do meu pai e de minha mãe, ambos muito cerimoniosos,
solenes e severos? Eu adorava a minha mãe, aceitava meu pai e respeitava ambos,
acostumado, aliás, a ver todo o mundo curvado diante deles.
Eles eram, na
província, o Sr. Conde e a Sra. Condessa. E os nossos vizinhos também, os
Tannemare, os Ravelet, os Breneville, mostravam por meus pais uma consideração
superior. Eu tinha então treze anos. Era alegre, satisfeito com tudo, como
acontece nessa idade, cheio da felicidade de viver.
Ora, pelos fins de
setembro, alguns dias antes da minha volta para o colégio, como eu gostava de
fingir de lobo nos tufos de vegetação do parque, correndo por entre ramos e
folhas, percebi atravessando uma avenida, papai e mamãe, que passeavam.
Lembro-me como se fosse hoje.
Era um dia de muito
vento. Toda a linha das árvores, curvava-se, gemia, parecia soltar gritos,
gritos surdos, profundos, como os que se ouvem nas florestas durante as
tempestades. As folhas arrancadas, já amarelecendo, voavam como pássaros,
turbilhonavam, caíam e depois corriam toda o longo da aleia, como pequenos
animais rápidos.
A noite se
aproximava. Já havia sombras. Essa agitação do vento excitava-me, fazia me
galopar como um louco e uivar para imitar os lobos. Desde que percebi meus
pais, dirigi-me para eles furtivamente, sob os ramos, para surpreendê-los. Mas,
detive-me, tomado de pavor, pouco adiante deles. Meu pai terrivelmente
colérico, gritava:
— Tua mãe é uma
idiota; e, demais não é de tua mãe que se trata; trata-se de ti. Preciso desse
dinheiro; quero que tu assines.
Minha mãe, com voz
firme, respondeu:
— Não assino. Isso é
a fortuna de João. Guardo-a para ele; não quero que a dissipes com raparigas e
criadas, como fizeste com tua herança.
Então meu pai,
trêmulo de raiva, virou-se e agarrando minha mãe pelo pescoço, começou a
dar-lhe, sopapos com toda força, com a outra mão, em pleno rosto.
O chapéu de minha mãe
caiu; seus cabelos despregados, espalharam-se.
Procurava evitar as
pancadas, mas não conseguia. E meu pai, como um louco, batia-lhe, batia-lhe.
Ela caiu, escondendo o rosto com os braços. Ele então virou-a de costas para
bater-lhe ainda mais, abrindo-lhe os braços, com os quais ela tratava de
esconder o rosto.
Quanto a mim, meu
caro, parecia que o mundo ia acabar, que as leis naturais tinham mudado. Sentia
o espanto que se tem diante das coisas sobrenaturais, diante das catástrofes
monstruosas, diante dos desastres irreparáveis. A minha cabeça de criança
fervia. Pus-me a gritar com toda a força, sem saber porque, entregue a um
espanto, a uma dor terrível. Meu pai me ouviu e voltou se; percebeu-me e
levantando-se, dirigiu-se para mim. Pensei que vinha matar-me e fugi como um
animal perseguido, correndo sempre para a frente, no bosque.
Corri durante uma
hora, talvez, duas não sei. A noite descera de todo; caí sobre a grama e ali
fiquei, cheio de medo, abalado por uma desgraça capaz de magoar para sempre um
pobre coração de criança. Tinha fome, tinha sede, talvez. O dia voltou. Não
ousei levantar-me, nem caminhar, nem voltar, nem fugir, temendo encontrar meu
pai que eu não queria ver mais. Eu teria morrido de miséria e de fome, talvez,
ao pé da minha árvore, se o guarda não me tivesse descoberto e não me levasse à
força.
Encontrei meus pais
com a mesma fisionomia usual. Apenas minha mãe me disse: "Que susto me
pregaste; passei a noite em claro". Não respondi, mas pus-me a chorar. Meu
pai não disse uma palavra. Oito dias depois, eu voltava para o colégio. Pois
bem, meu caro, tudo acabará para mim. Eu tinha visto a outra face das coisas, a
face má; depois desse dia, nunca mais vi o lado bom. Que se passou no meu
espírito? Que fenômeno estranho mudou-me as ideias? Não sei. Mas, nunca mais
tive gosto para nada, inveja de nada, amor por ninguém, qualquer desejo,
qualquer esperança, qualquer ambição. Vejo sempre minha mãe, atirada no chão,
enquanto meu pai a espancava. Minha mãe morreu poucos anos depois. Meu pai vive
ainda. Nunca mais o vi. Garçom, um chope!
Trouxeram-lhe o
chope, que ele bebeu de um trago. Mas, retomando o cachimbo, como tremia,
quebrou-o. Então teve um gesto desesperado e exclamou:
— Ora aí está! É uma
verdadeira desgraça. Agora tenho eu de gastar um mês para me acostumar a um
novo.
E atirou, através da
sala, cheia de fumaça e de bebedores, o seu grito normal:
— Garçom, um chope, e um cachimbo novo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...