A Capenguinha
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Depois vi tanta coisa
sinistra, comovedora e terrível, que não compreendo porque não posso passar um
dia, um dia só, sem que o rosto da tia Capenguinha não se delineie diante dos
meus olhos, tal qual a conheci um dia, há muito tempo, quando eu tinha dez ou
doze anos.
Era uma velha
costureira que vinha, uma vez por semana, às terças-feiras, coser a roupa
branca de nossa casa. Morávamos em umas dessas casas de campo, a que chamam "castelos",
e que são simplesmente casas antigas de tetos pontiagudos, da qual dependem
quatro ou cinco feitorias que a circundam.
A Vila, um burgo,
estendia-se numa distância de algumas centenas de metros, em torno da igreja,
uma igreja velha de pedras enegrecidas pelo tempo.
Todas as
terças-feiras, a tia Capenguinha chegava das seis e meia às sete horas e
dirigia-se logo para o seu trabalho.
Era uma mulher alta,
magra, barbada, ou melhor peluda, porque tinha barba em todo o rosto, uma barba
surpreendente, inexplicável, de pelos duros, que pareciam terem sido espalhados
por um louco naquele rosto de militar.
Tinha-os no nariz,
debaixo do nariz, à roda do nariz, no queixo, nas faces; suas sobrancelhas estranhamente
espessas e longas, hirsutas pareciam pedaços de bigodes grudados sobre os
olhos.
Capengava, não já como
quem tem a perna estropiada, mas como um navio preso à boia.
Quando se apoiava à
perna sã, seu corpo grande e ossudo, erguia-se como se quisesse desprender-se
do chão para depois afundar-se num abismo. Seu andar dava ideia de uma
tempestade, tanto ela se agitava; sua cabeça, coberta de uma grande touca
branca, parecia querer atravessar o horizonte, de norte a sul, de sul a norte,
em cada um de seus movimentos.
Eu adorava a tia
Capenguinha. Mal me levantava da cama, ia procurá-la no seu trabalho e
encontrava-a cosendo com os pés sobre um banquinho. Mal entrava obrigava-me a
sentar no banquinho para que eu não me resfriasse naquele grande aposento.
E contava-me histórias,
sempre a coser com seus longos dedos tortos, mas ligeiros. Tinha, a julgar
pelas coisas que me contava e que tanto comoviam o meu coração de criança, uma
grande alma de mulher infeliz. Contava-me fatos da aldeia, a história de uma vaca
que fugira e que fora encontrada depois perto do moinho de Prospero Malet, a
olhar para as asas de madeira; ou a história de um ovo de galinha encontrado no
pequeno sino da igreja, sem que se soubesse quem o pusera lá; ou a história do
cão de João Pilás que fora buscar, a dez léguas da aldeia, as calças do dono,
roubadas por um transeunte, quando enxugavam na frente da casa. Contava-me
estas aventuras ingênuas de tal modo que assumiam no meu espírito proporções de
dramas comoventes, de poemas misteriosos: tanto que os contos engenhosos
inventados por poetas, que minha mãe me contava, à noite, não tinham para mim a
emoção das histórias da pobre mulher.
Ora, um dia, depois
de ter passado toda a manhã com a tia Capenguinha, quando voltei de um passeio
aos arredores, com o criado, quis ir vê-la de novo.
Abrindo a porta do quarto
vi a velha costureira estendida no chão, com a face para cima, os braços
alongados, tendo ainda a agulha em uma das mãos e na outra uma das minhas
camisas. Tiraram-me dali. Pouco depois soube que a tia Capenguinha tinha
morrido.
Não saberei nunca
exprimir a profunda emoção que me abalou o espírito infantil. Desci depressa
para a saleta, escondi-me atrás de uma velha poltrona e ajoelhado, pus-me a
chorar.
Decerto fiquei ali
muito tempo, porque depois veio a noite.
Entrou alguém com uma
lanterna, mas não me viu e ouvi meu pai e minha mãe que vinham cochichar com o
médico. Chamaram-no logo e ele explicou a causa do acidente.
Não compreendi nada.
Depois sentou-se e
aceitou um cálix de licor e um biscoito.
Continuava a falar, e
o que ele disse então ficou-me gravado na alma.
Creio, deste modo,
poder reproduzir suas palavras, quase textualmente:
— Ah! dizia ele,
pobre mulher! Foi a minha primeira cliente.
Quebrou a perna no
dia em que cheguei e não tive tempo nem de lavar as mãos; mal havia descido da
diligência, quando vieram chamar-me com pressa, porque o caso era grave, gravíssimo.
Tinha dezessete anos
e era uma linda rapariga: linda, linda, ninguém diria agora.
Quanto à sua história, ninguém a sabia senão eu e outra pessoa que está longe daqui.
Agora que está morta
posso ser menos discreto.
Naquela época veio
estabelecer-se na Vila um jovem professor, de belo aspecto e de estatura
marcial. Todas as raparigas o requestavam, mas ele fugia-lhes, mesmo porque
respeitava muito o mestre da escola, tio Grabu, que nem sempre estava de bom
humor.
O tio Grabu já tinha
como costureira a bela Hortênsia, agora falecida e que foi batizada por "Capenguinha",
depois do acidente.
O jovem professor
mostrou preferência pela rapariga, que se sentiu, naturalmente, lisonjeada com
a escolha. O fato é que se enamorou dela e obteve uma entrevista, no sobrado da
escola, num dia em que ela estivesse cosendo.
Ela fingiu então que
ia para a casa, mas em vez de descer a escada, foi esconder-se num alpendre ao
fundo, cheio de feno, à espera do amante.
Ele chegou pouco
depois e começavam a conversar, quando a porta se abriu e apareceu o mestre da
escola.
— Que fazes aí,
Sigisberto?
Compreendendo que
tinha sido descoberto, o rapaz respondeu estupidamente:
— Vim descansar um
pouco, Sr. Grabu. O lugar era amplo e escuro. Sigisberto empurrava para o fundo
a rapariga espantada
— Esconde-te. Perco
o meu lugar. Anda, esconde-te.
Grabu ouvindo
cochichar perguntou:
— Não estás só?
— Estou, Sr. Grabu.
— Não estás; ouço-te
falar.
— Juro que estou.
— É o que vamos ver.
E fechando a porta à chave, foi buscar uma vela. O rapaz, um verdadeiro malvado,
parecia ter perdido a cabeça e repetia:
— Mas esconde-te, que ele não te encontre! Estragas a minha carreira. Esconde-te. Ouviu a chave girar de novo na fechadura.
Hortênsia fora para a
pequena janela que dava para a rua; abriu-a rapidamente e depois disse com voz
baixa e resoluta:
— Vem apanhar-me
quando ele tiver ido embora.
E saltou.
Grabu não encontrou ninguém
e retirou-se muito surpreendido.
Um quarto de hora
depois Sigisberto procurava-me e contava-me o que havia acontecido. A rapariga
ficara junto do muro, incapaz de andar, depois daquela queda.
Fui com ele ao lugar.
Chovia a cântaros; trouxe-a para minha casa; tinha a perna direita quebrada em
três lugares e os ossos haviam penetrado na carne. Não se lamentava e repetia
apenas com uma resignação admirável:
— Fui castigada; fui
bem castigada.
Mandei chamar
ajudantes e os parentes da rapariga a que contei uma história de um carro que
passara a disparada e a atirara por terra, estropiando-a. Acreditaram. A polícia,
durante um mês, procurou em vão o autor do infortúnio. Eis aí. Aquela mulher
foi uma heroína, do gênero daquelas que praticam bravuras espetaculares na história.
Aquele foi o seu único
amor. Morreu virgem.
Se eu não tivesse por
ela uma grande admiração, não lhes contaria esta história, que não contei a ninguém
enquanto ela viveu.
O médico calou-se.
Minha mãe chorava,
meu pai disse algumas palavras que não entendi bem.
Fiquei de joelhos atrás
da poltrona, soluçando, depois ouvi passos lentos no corredor e a escada
ranger.
Levavam então o corpo
inanimado da Capenguinha.
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