Por: Paulo
Marçaioli
Blog: esperandopaulo
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Resenha do livro “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós
“Aquela conversação enervava Luísa; numa tal
generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num
nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível
quase o julgava já justificado.
Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por
aquele sentimento de uma forte imoralidade geral, onde as resistências, os
orgulhos se amolecem, se enlanguescem, — como os músculos numa estufa
fortemente saturada de exalações mornas.”
“O Primo
Basílio” foi escrito entre Setembro de 1876 e Setembro de 1877. O romance se
situa numa primeira fase mais combativa da literatura de Eça de Queirós.
Tratava-se da afirmação da escola literária realista sobre uma tradição
romântica em Portugal. Do lado Romântico e árcade, Antônio Feliciano de Castilho
(1800-1875) e Almeida Garrett (1799-1854). O romantismo literário envolvendo o
subjetivismo, o sentimentalismo e o apego às tradições. Do lado do realismo
preconizado por Antero de Quental (1842-1891) e Teófilo Braga (1843-1924), a
objetividade, o racionalismo, o cientificismo e a crítica social.
É importante
salientar que o advento do realismo literário em Portugal deu-se de forma
distinta da experiência brasileira.
Não existe
muita dúvida dentro da crítica especializada que o “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” (1881) de Machado de Assis representou o advento do realismo literário
no Brasil. Ocorre que o advento das “Memórias” não foi exatamente uma ruptura
radical em face do romantismo literário, mas o desdobramento, ou um movimento
em continuidade.
Da chamada
3ª Geração Romântica, os temas urbanos, a descrição de tipos e ambientes
burgueses e uma maior adequação da narrativa às questões sociais já estavam de
certa forma presentes nas obras da primeira fase de Machado de Assis. Se
pensarmos num Joaquim Manoel de Macedo cujo “A Moreninha” efetivamente
inaugurou o romance folhetinesco no país, deve-se levar em consideração que o
seu “Vítimas Algozes” de 1869 já antecipa em muitos aspectos do realismo
literário: tratava-se de uma contundente crítica do instituto da escravidão,
ainda que sob o prisma dos interesses dos grandes proprietários que
ocasionalmente não levavam em consideração os malefícios, os vícios e a
violência mais ou menos dissimulados da escravidão junto aos senhores e seus
familiares.
Já em
Portugal o advento do realismo literário deu-se não como um desdobramento do
romantismo mas nos marcos de um movimento de combate às tradições do passado.
Estamos no contexto de meados do século XIX, quando a revolução industrial, o
advento das cidades, o fortalecimento da burguesia e a expansão do proletariado
provocam mudanças significativas na Europa, incluindo o campo da cultura.
Autores como Darwin, Comte, Spencer, Taine e Renan são fontes de influência nas
narrativas dos escritores realistas. Seria importante salientar aqui o atraso
relativo de Portugal no que diz respeito a países como França e Inglaterra. No
campo das ideias este atraso é identificado na literatura realista com um
tradicionalismo clerical, com um bacharelismo sem raízes e vínculos com a
ciência e o conhecimento, com uma sociedade, no geral, corrompida e
supersticiosa.
No caso de
Eça de Queirós, tratava-se de uma verdadeira literatura de combate: no “O Crime
do Padre Amaro” uma satírica e avassaladora crítica ao catolicismo português,
com seus padres metidos em escândalos sexuais e ainda granjeando, com todo o
cinismo do mundo, o respeito e a liderança sobre seus rebanhos. Já no “Primo
Basílio” as armas da crítica se voltam não exatamente para o casamento como
instituição, mas para o casamento no contexto da sociedade atrasada de
Portugal. Numa carta de Eça de Queirós endereçada ao escritor realista Teófilo
Braga (12/03/1878), fica esclarecido que o intuito reformador do autor do “O
Primo Basílio” não se direciona ao ataque às “instituições universais” como o
casamento ou a família, mas à situação especificamente portuguesa:
“Perfeitamente: mas não ataco a família –
ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião
desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro
de bambochata1. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um
pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia
de Lisboa: — a senhora sentimental mal educada, nem espiritual (porque cristianismo
já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é) assada de
romance, lírica, sobre-exitada no temperamento pela ociosidade (...)”.
A crítica
social é voltada em primeiro lugar para o adultério envolvendo não só Luísa,
mas os demais personagens secundários, como o Conselheiro Acácio e até Jorge,
marido de Luíza. A traição generalizada sinaliza a prática constante da
infidelidade conjugal e a falência do casamento; a crítica da ociosidade
burguesa, que ainda mantém resquícios de nobreza na sociedade aristocrata
portuguesa; a crítica da política e dos cargos estatais expressa no personagem
Julião, primeiramente um rancoroso niilista que vê seu trabalho científico não
dar frutos pela falta de contatos oficiosos; e posteriormente um Julião resignado
e sem resquício de rebeldia após ser agraciado com um cargo medíocre para
compensá-lo pela não aprovação no concurso. Todas estas críticas em diferentes
sentidos operam pelo lado do humor e da caricatura.
A caricatura
tem como característica acentuar alguns aspectos da realidade de modo a poder
melhor entende-la, em que pese o risco de se cair para o unilateral e o
parcial. No caso de Eça de Queirós, o intento de combate, a crítica radical da
sociedade portuguesa, sociedade carola e defasada em relação às novas
tendências cientificistas do séc. XIX europeu (darwinismo, determinismo,
positivismo) possibilita uma leitura muito mais interessante da realidade
daquela sociedade do que o projeto romântico, pautado no idealismo e no
sentimentalismo. Em todo o caso, seria em obra mais adiante, como “A Cidade e
as Serras” que a literatura de Eça de Queirós tomaria novo caminho, com a sua
reconciliação junto à velha Portugal, lançando um olhar não tão irônico e
talvez mais compreensivo sobre a sociedade portuguesa.
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1 - Festa marcada por excessos; orgia, pândega, patuscada.
Ilustração: Belmonte.
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1 - Festa marcada por excessos; orgia, pândega, patuscada.
Ilustração: Belmonte.
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