O
primeiro romance de Camilo
Algumas revelações críticas de
importância fornece o primeiro
romance de Camilo Castelo Branco, Anátema por apresentar, em síntese,
os temas fundamentais e o tratamento temático que caracterizarão,
futuramente, o conjunto de sua obra romântica.
O romance apresenta um tom novelesco,
representado pela somatória dos conflitos
narrados, conflitos estes que se sucedem linearmente,
univocamente. Cada um destes dramas representa um episódio, cinco, ao todo, no
romance: o de Pedro da Veiga e Custódia Osório; o de Micaela; o de Cristóvão da
Veiga; o de Antônia Bacelar; o do Padre Carlos. Os episódios são alinhavados à
custa dos processos formais mais típicos de Camilo (por exemplo: "se está
decidido que os caranguejos não andam para
diante, nem são estacionários, este romance e uma espécie de caranguejo
literário: recua, pelo menos, vinte anos em cada capítulo"); o diário revelador, possibilitando terreno
para um novo conflito (corresponde ao documento,
tão usitado no romance camiliano), e elaborado por uma personagem ligada à
figura cuja vida se desenvolve no escrito; convergência
dramática, a que a solução do "mistério" leva (em nosso caso, a
busca do significado cabalístico do termo "anátema", materializando a
vingança do Padre Carlos), — até alcançar a exata confluência do tempo inicial
do romance com o tempo atual do desenvolvimento da ação, E caminhando para o
epílogo, em que a ironia da fatalidade
se manifesta (Timóteo, inquiridor do algoz de sua mãe e confessor de sua
desonrada Micaela como em Carlota Angela,
Francisco Salter, ou Frei
Francisco, assistindo os algozes
de sua amada).
Em síntese, apoiada nesses recursos de ordem
técnica, a intriga do Anátema abre-se
angulosamente e depois converge, possibilitando o contato dos vários episódios
que constituem a contextura dramática da obra, dando-lhe o tom novelesco que
aduzimos.
Não é de admirar que todo o romance oscile
entre a ironia humorística e a contenção dramática, se se partir do princípio
que a ficção romântica atém-se a duas realidades dicotômicas: a observação do
mundo que rodeia as personagens no momento da ação e a criação de uma intriga
amorosa. No Anátema, o mundo
exterior, a realidade que delimita o cenário
da ação, não aparece com intensidade. Assim, por exemplo, Vila Real — plano de
fundo de um episódio do romance — não é retratada com aqueles ingredientes que
Camilo usou na fase passional de sua
obra de ficção. São apenas algumas notas irônico-humorísticas, digressões em
torno da criação da prosa literária, caricatura de determinadas personagens,
sátira à inverossimilhança de certas situações, referências esparsas ao
Romantismo, ao romanesco, à fradaria. Como se percebe, não são elementos
concretos para o cenário da ação, mas simplesmente inserções digressivas, sugeridas
pelo desenrolar da narrativa, e não comprometidas com a intenção de fixar
quadros sociais de uma época, como acontece em grande número dos romances
passionais de Camilo e nos romances, tanto portugueses, como brasileiros, da
época, preocupados com o retrato da Burguesia.
Estas digressões traduzem a dicotomia tônica
do romance: contenção dramática, emparelhada com a jocosidade, com a ironia,
com o humorismo. Claro está que, nos outros romances camilianos, a observação
da realidade também aparece limitada; mas, surge um cenário verossímil,
enquanto se presta para o desenvolvimento da intriga amorosa. E podemos
perceber quanto está limitada esta observação do mundo exterior, se colocarmos
em paralelo o romance de Júlio Dinis, inquestionavelmente animado por uma
preocupação de fixar a realidade portuguesa de sua época e "momentos"
de ação, o que precede ao gosto pelo desenvolvimento da trama amorosa,
geralmente simplista. É que Camilo (e o Anátema
exemplifica isso com propriedade) quer, antes desenvolver as peripécias da
intriga amorosa, que fazer retrato da Burguesia.
Assim, no Anátema,
o núcleo dos episódios é sempre de natureza amorosa: a própria vingança do
Padre Carlos tem um eixo amoroso, a ligação de Manuel de Távora e Inês. A
vingança está esquematizada na mente do Padre Carlos como repetição da situação
dramático-amorosa vivida por sua mãe, Antônia Bacelar — desonrada por Cristóvão
da Veiga, pai de Inês — e, para isso, age ele até como alcoviteiro.
Infere-se, daí, que o tema fundamental do Anátema é o amor, entendido nos termos
da estética romântica, e já fazendo pressentir os ingredientes fundamentais do
passionalismo que impregnará, futuramente, as principais obras camilianas:
consciência irredutível do fatalismo que cerca este sentimento, a desonra, o
temor da demência, o convento, o suicídio...
Em suma, pela originalidade de algumas
soluções estéticas, pelo prenúncio da direção futura dos romances de Camilo,
cremos merecer o Anátema referência,
pois, parece-nos, transcende ele os simples limites de interesse puramente
histórico de primeiro romance do Autor.
---
NAIEF SÁFADY
Revista do Livro, dezembro de 1956.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
NAIEF SÁFADY
Revista do Livro, dezembro de 1956.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...