Medeiros
e Albuquerque, ícone da inteligência brasileira
Ainda tenho quente, palpitando na
cordoalha íntima do meu coração, na viva saudade oriunda da gratidão e do
respeito, o amigo e mestre que tanto amei e por quem sempre nutri profundíssima
admiração.
Medeiros e Albuquerque foi homem raro;
inteligentíssimo, arguto, lógico, transparente, culto, trabalhador, leal e
desassombrado. Ainda são poucos os adjetivos que lhe coroam a personalidade,
tal a abundância de luz que jorrava e que podia sempre emanar daquele espírito
privilegiado, um dos maiores talentos da latinidade americana.
O seu convívio obrigava-nos a
admirá-lo em progressão crescente, pois jamais foi trivial na palavra falada ou
escrita, em assuntos leves ou em questões graves, porque sempre se mostrou
atraente e original, sempre erudito e fecundo. O nosso saudoso companheiro
possuía a alma de menestrel e o nervo de grande operário.
No pensamento, no sentimento e na ação
era assinaladamente o mesmo homem, cheio de talento e coragem, amigo dedicado e
companheiro fiel, advogado invulnerável e promotor perigoso, e habitualmente de
armas na mão, ora com a pena, ora com a palavra fúlgida, sabia lutar e lutava
até o fim, não se deixando vencer. A última palavra lhe pertencia, tal o
fôlego, o raciocínio, a fluência do estilo, o brilho da inspiração, o encanto
das irreverências, tais os jorrões da dialética indomável, o denodo em agredir
e a destreza em defender-se.
Tenho conhecido, senhores, alguns
homens de gênio, muitos homens de talento, porém nenhum até agora me deu a
impressão de tão pronta inteligência e de tão rara curiosidade perscrutadora
como Medeiros e Albuquerque.
Bom, presto, desprendido e amoroso,
tirou sempre da vida a melhor essência, com impulsões aos trabalhos exaustivos e
aclives para a boêmia jovial e franca.
Cultivei-lhe a amizade com especial
carinho, porque era mais de trinta anos de convívio, nele só encontrei o amigo
desinteressado e nobre.
Nesse voto de saudade quero-vos uma
revelação: Medeiros e Albuquerque cultivava a medicina apaixonadamente e muitos
dos seus escritos foram dedicados à neurologia e à psiquiatria.
Quando começaram a aparecer os
murmúrios e os ecos longínquos da doutrina psicossexualista de Freud, Medeiros e
Albuquerque foi o primeiro a ditar à Sociedade Brasileira de Neurologia,
Psiquiatria e Medicina Legal, em 1900, a melhor súmula e a mais clara síntese
acerca da doutrina do sábio vienense.
Comparou o consciente, o subconsciente
e o inconsciente a prédio de dois andares com um porão. O andar superior é o consciente,
onde à luz clara o eu se exprime pela lógica, pela vontade, pela força criadora
da inteligência. No primeiro andar, que representa o subconsciente, as ideias
estão em penumbra e nele residem o sentimento, a fantasia, as emoções e a fé.
No porão, tão bem comparado por Medeiros ao inconsciente, se acham os papéis
velhos da existência, o registro esquecido, os episódios obscuros do sentimento
em que estão soterradas as emoções da infância e os instintos atávicos,
semimortos, olvidados pela censura ou censor, durante a formação da
personalidade, especialmente na segunda infância, ótimo comenos para a
exaltação da libido.
Essa imagem é admirável de
ensinamentos e claridade; todo o mundo logo compreende o principal enunciado de
Freud com a metáfora de Medeiros e Albuquerque.
A face acentuadamente médica da sua
personalidade mais se denunciou pela cultura científica e pela prática do
hipnotismo. Curioso, cultíssimo, sagaz e brilhante, o nosso pranteado
companheiro escreveu um livro acerca da matéria o qual obteve justo renome e
êxito felicíssimo de livraria, pois várias edições se sucederam. Praticava
frequentemente o hipnotismo e obtinha curas com as quais se entusiasmava e que
lhe aumentavam a crença.
Nunca fui adepto do método da sugestão
hipnótica, apesar de não lhe negar vantagens terapêuticas em casos especiais. O
hipnotismo caiu da moda, diante de outros processos psicoterápicos; porém o
entusiasmo de Medeiros era justificado, teórica e praticamente, pela pasmosa
erudição e pelos êxitos felizes que conquistava na casuística clínica.
Talvez poucos médicos conhecessem tão
de pronto como ele as novidades científicas que surdiam. Livros, revistas,
aparelhos, tudo enfim que se referia à medicina mandava buscar e com isso
gastava larga soma, muita vez acima das suas posses, para satisfazer a avidez
do espírito.
Quando morreu o seu filho Paulo, no
sexto ano médico, o alfanje da fatalidade retalhou-lhe indelevelmente o
coração. Medeiros ficou meio ébrio, afogado na dor. Finara-se-lhe parte da
carne e da alma, fração resplandecente do seu amor, porque assistiu à extinção
de uma das suas melhores ânsias, que era ver o filho formado em medicina.
Passado, mas não adormecido o doloroso advento, obrigou o filho mais moço a
abandonar o curso de direito e seguir a medicina, porque esta carreira lhe
constituíra o prazer do espírito e da inquietude filosófica.
Possuía e cultivava grandes e sinceras
amizades entre os professores da Faculdade de Medicina, e conservava-as com
especial carinho.
As nossas palestras íntimas versavam
amiúde acerca dos temas da minha profissão ora meramente especulativos, ora
clínicos. Aparelhos elétricos, esfigmomanômetros, estetoscópios, vários
instrumentos técnicos da propedêutica médica possuía para manejo pessoal.
Estou certo, senhores, que o cristal
do seu pensamento seria gema preciosíssima se em qualquer Universidade do país
dissertasse como professor.
Repito: jamais vi homem mais
inteligente no trato das coisas humanas. Sempre do pensamento lhe nasciam manhãs
claras e da sua cultura evolavam-se destilações e essências magníficas e
oportunas.
Porém, a grande página da sua vida
estava no amor, grande luz, grande formosura, grande força que o conduzia para
o entusiasmo da existência, para o trabalho, iterativo, sempre sorridente, destemido
e leal, agnóstico e franco atirador; amigo dedicado e adversário feroz;
construtor e iconoclasta, renovador insolente e dulcíssimo companheiro. Avesso
às simulações, expunha a alma aos transeuntes, para que o conhecessem bem,
porque gostava de pensar alto, de sentir abertamente; o amor era-lhe a
suavíssima obsessão da vida, e a mulher aparecia-lhe como a maior expressão da
energia universal, a realidade do seu sonho.
Ah!
Frappes-toi le coeur, c'est là qu'est lê génie, disse-o
Alfred Musset.
Creio bem que o gênio fulgurante de
Medeiros e Albuquerque partiu-lhe do coração amoroso, e fido e humaníssimo.
Cor
hominis disponit viam suam. Nenhuma frase é mais aplicável à existência
desse homem superior. Cor cordium,
deveria eu chamar-lhe, porque o eixo da vida do meu querido amigo estava no
amor, a força eletiva da humanidade, o calor das almas, a luz dos crentes, o
deus dos sonhadores, o guia dos agnósticos, o apuro das civilizações, a
inquietude da mocidade, a dor luminosa dos poetas, a tortura dos gênios, o
dinamismo criador, a rota da solidariedade humana, o estelário de Dante, a vida
e a morte em ritmos oscilantes, ora tempestuosos, ora cheios de calmarias, a
essência das ideias-forças, ou como definiu o próprio Medeiros e Albuquerque
"a base de todas as artes, a arte fundamental".
O conceito acerca do amor era-lhe
personal. Ouçamo-lo nos "Poemas sem versos": "Há quem fale no
amor platônico, no amor puro, no amor imaculado. Mentira. Esses são os
disfarces que o pecado toma. O que há para baixo deles ou é ignorância ou
hipocrisia. O Amor, o Grande Amor, o Verdadeiro Amor, é o delírio da Carne que
palpita, dos lábios que estuam, rubros, sob os beijos ardentes — das mãos
trêmulas, crispadas, que cingem corpos divinos — dos olhos, que nos delíquios
supremos, se cobrem de uma névoa que os cega para tudo que nesses instantes os
rodeia".
Senhores. O amor não é só a epilepsia brevis como definiam os
antigos, mas o conjunto de fenômenos fisiológicos, físicos, sensoriais e psíquicos,
excitações, comoções e sentimentos que resultam da necessidade sexual, como
acentua Sicard de Plauzoles.
Os gregos já haviam simbolizado em Vênus
Afrodite os dois elementos dominantes no amor — Urânia, o amor celeste,
vaporoso, ideal; Pandemos, o amor terreno, sexual, biológico, isto é, sonho e
carne, romantismo e sexualidade, alma e corpo no conjunto humano.
Assim viveu o grande Medeiros e assim
se finou, a odiar os preconceitos e a amar a verdade, nua e crua. As
disposições que escreveu antes de morrer, deram-lhe a forma definitiva do
filósofo estoico. O epicurismo nele era episódico; fora homem do seu tempo,
cordial e sincero como os cavaleiros medievais, indiferente a interesses e
coerente com as suas convicções e atitudes.
Homem excepcional! Figura única no cenário
da inteligência brasileira. Poeta, romancista, político, jornalista, administrador,
erudito, trabalhador, tudo foi nesta terra, e tudo desprezou, para viver dentro
da liberdade do pensamento e nas expansões do sentimento, únicos princípios a
que obedecia como o imperativo categórico da sua personalidade singular.
Bom ou mau, seguramente bom, ele foi único
no Brasil; podemos consagrar-lhe o gênio, porque a ninguém imitou e a ninguém
se rendeu; criou a beleza do pensamento, às vezes irônico e sorridente como um demônio;
às vezes enérgico, desassombrado e construtor como um herói; franco e amoroso
como um justo; luminoso e destruidor como um deus.
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ANTÔNIO AUSTREGÉSILO
ANTÔNIO AUSTREGÉSILO
Revista
Letras Brasileiras, fevereiro de 1944.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes.
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