
Garcia Redondo,
no seu livro inteiramente esquecido "Através da Europa", conta-nos as
circunstâncias muito originais e pitorescas em que veio travar relações com
Camilo Castelo Branco. Foi isso em 1870. Vinha o escritor, então muito jovem e
estudante em Coimbra, num vagão de segunda classe, com um grupo de colegas, que
como ele haviam feito os exames e iam passar as férias no Porto. No mesmo vagão
encontrava-se também um homem picado de bexigas, com "pince-nez" de
vidros escuros, em companhia de um menino que poderia ter uns doze anos de
idade. Nessa época acabava de ser publicado o romance de Camilo ''Retrato de
Ricardina", do qual o jovem acadêmico levava consigo um exemplar para
concluir a leitura em viagem ou na quinta da sua avó paterna, onde ia repousar.
Logo ao sair
de Coimbra, os companheiros viram o romance e pediram-lhe a opinião sobre a
obra. Com a ousadia dos seus verdes anos, Garcia Redondo desancou desapiedadamente
o autor, citando uma série de defeitos
de que o romance estava inçado. E ia lendo trechos do livro para justificar as
asserções.
Em dado
momento, notou que o homem picado de bexigas havia abandonado o pequeno
companheiro a um canto do vagão e viera sentar-se ao lado dos acadêmicos para
ajudar o jovem nos ataques a Camilo. Logo, familiarmente, envolvendo-se na
conversa, deu toda razão ao crítico. Também havia lido o romance e notado os
mesmos defeitos citados, aos quais acrescentava ainda outros. Na sua opinião, Camilo
estava evidentemente em decadência; já não não era mais o autor do "Amor
de Perdição". Depois que se fizera polemista, descuidara do romance e
tornara-se um verdadeiro industrial das letras.
Ao saltarem
nas Devesas, a fim de tomarem a condução para o Porto, depois de um curioso incidente
com o fisco que Garcia Redondo relata minuciosamente, o homem do "pince-nez"
escuro perguntou ao seu jovem companheiro de viagem:
— E agora vai
para o Porto?
— Ora! como
hei de ir? — A pé? — volveu o rapaz, que consequência do referido incidente
havia ficado sem condução.
— Não, vai no
meu carro, porque tenho aí fora um carro, onde está o meu pequeno. Venha, vamos
juntos.
Garcia Redondo
acedeu ao convite e seguiu com o desconhecido para o Porto. Ali, ante a
insistência dele, teve ainda de aceitar-lhe a hospitalidade. E acompanhava o
homem à respectiva residência, quando este cruzou com alguns conhecidos que lhe
perguntaram:
— Então,
Camilo, já estás de volta?
Garcia Redondo
olhou, aterrado para o companheiro que sorria, cofiando o bigode para
disfarçar. Afinal, já não era possível mais disfarces. Camilo apresentava-o aos
amigos nestes termos:
— Eis aqui o
meu crítico; mais sincero que é, ao mesmo tempo, um rapaz cheio de graça e de
boas ideias.
Garcia Redondo
não sabia como desculpar-se.
— Não me fale
mais nisso — dizia Camilo — fiz uma viagem deliciosa, a melhor que tenho feito
de Coimbra ao Porto e quem me proporcionou o encanto dessa viagem foi o amiguinho.
O que disse do
meu livro é a pura verdade; aquilo é um romance de fancaria, feito a vapor para
satisfazer as exigências de um editor indomável. Na segunda edição, se a tiver,
hei de corrigi-lo. Agora, o que eu preciso conhecer é o seu nome para saber a
quem devo a fineza de algumas observações que me foram muito proveitosas.
O jovem disse
quem era, e com espanto, Camilo exclamou:
— Redondo! mas
você é tão magrinho! Veja como os nomes são paradoxais.
---
Letras e Artes, 24 de abril de 1951.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
(2020)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...