Por que inspiram em geral as florestas uma suave
tristeza? Por que se aninha o anjo da melancolia nos seus recessos umbrosos?
Que misterioso condão possuem arvoredos de dulcificar a saudade? Que celeste
orvalho se pendura da ramagem entrelaçada, e se deixa cair gota a gota cerrando
não, mas suavizando as úlceras do coração? Que filtro mágico se encontra entre
carvalhos e cedros, onde se purifica o sentimento, onde a paixão, essa flor
cujas raízes se prendem à terra, e cujo aroma voa aos céus, toda se desfaz em
místicos perfumes, em enlevos de alma, em divinas aspirações?
Eu quero-me com as árvores, ou com o mar. Vagueando
nas alamedas dos castanheiros, sentado nas fragas, onde se quebra a onda, tenho
sempre sentido como que um anjo de Deus, que vem pousar de manso a meu lado,
trazer-me pensamentos do céu e arrobar-me a alma em êxtases inefáveis, que não
me acodem quando os chamo no meio das mais esplendidas paisagens.
A brisa, que agita a copa das árvores frondosas, a
aragem, que se refrigera com as úmidas exalações do oceano, têm-me feito
reclinar a fronte no seu regaço de tristezas, e têm murmurado ao meu ouvido
palavras consoladoras, impregnadas não nas irritantes consolações da terra, mas
nesse alívio inefável do céu, que faz com que nos brotem as lágrimas dos olhos,
e que as deixa depois deslizarem lentamente pelas faces! Prantos de infinda
doçura, pelos quais eu trocaria todas as alegrias do mundo, prantos às vezes
sem motivo, e que outras vezes jorram da urna misteriosa, que trazemos oculta
no coração, furtando-a à curiosidade banal, e que se chama a urna das saudades!
Saudades! não sabe o que é esse doce e amargo
sentimento quem nunca viu a aragem acamar as frondes do imenso arvoredo, nem a
solidão do oceano, sem fim, na sua majestosa, na sua sublime monotonia. Não
sabe o que são saudades quem nunca escutou os concertos, que a viração forma
nos pinheirais, e as melodias que desfere o vento do mar nas ondas, que vão de
serra em serra de água perder-se no horizonte.
Eu também o não sabia! Como que pressentira esse gosto amargo de infelizes no meio dos
alcantilados verdores de Cintra, mas quando eu, criança ainda, procurava a
solidão das alamedas da Penha Verde, a fim de compreender melhor o sentimento
que do coração dos poetas trasbordava para os seus livros, não podia perceber
as vozes misteriosas, que partiam de cada ramo agitado, de cada folha
desprendida, de cada árvore balouçada. Sentia a necessidade vaga de me afastar
do mundo, de me soltar dos laços do presente, e de conversar em espírito com as
gerações extintas. Evocava a grandiosa imagem de D. João de Castro, pensava nas
grandezas de outrora desta nação aviltada, reconstruía na imaginação a cena da
leitura dos Lusíadas, e como que me
parecia sentir por traz de mim o passo vivo, alegre e desembaraçado do moço D.
Sebastião, o pisar leve e astucioso do jesuíta Luís da Câmara, e entrever lá no
fundo da alameda o vulto majestoso e venerando do cantor das nossas glórias, de
Camões!
Nada mais! Os fantasmas, que se me entremostravam,
a não serem estes fantasmas épicos, eram vultos indecisos e encantadores, que
começavam a despontar no horizonte do futuro, iluminados pelo róseo fulgor dos
sonhos dos quinze anos! Á beira da estrada, que pisava alegremente, não se
erguia ainda nem um só túmulo, eram tudo palácios encantados, castelos de
fadas, jardins de Armida, dessa gentil Armida, fascinadora personalização de
tudo quanto nos enfeitiça neste mundo, de tudo quanto nos prende com flóreas
grinaldas, tudo... tudo que é uma coisa só “Amor.”
A saudade, senti-a depois, quando voou para o
Empíreo o anjo protetor da minha
infância! A verdadeira saudade! A que se não alma, nem se procura aliviar, a
que se transforma em culto, a que se não simboliza nessa roxa flor que dura uma
estação, mas sim na flor, que se entretece em grinaldas sobre os túmulos, e que
se chama perpétua.
Levaram-me à província do Minho os acasos da
existência!
Atravessei pela primeira vez o oceano. Debruçado na
amurada do navio, vi as ondas estalarem no costado do barco, e soltarem um
queixume; ouvi o rugir do leão. Acordei alta noite e senti o contínuo marulhar
das ondas; subi ao tombadilho e vi o mar imenso desenrolar-se no seio das
trevas. E em quanto os meus companheiros de viagem se enfadavam da demora dela,
eu ficava horas e horas enlevado a escutar esse cântico eterno, esse hino
intraduzível, e compreendia-o, adivinhava-o, e sentia os olhos turvos de
lágrimas, porque o bramido das ondas, o sussurrar do vento tudo me dizia
“saudade.”
Lia essa mágica palavra escrita em letras de espuma
na superfície imensa do mar, lia-a em letras de fogo gravada no firmamento
azul, e em presença daquela dupla majestade do céu que faiscava mundos, do mar
que palpitava ondas, enlevou-me a tristeza indefinível da abobada estrelada, e
o melancólico lamento desse velho leão acorrentado, que se chama oceano.
E o anjo da saudade pousou junto de mim.
Outra vez subira eu à velha torre de menagem do
castelo de Guimarães. Por baixo de mim não via senão arvoredo. O sol sumira-se
quase de todo por traz das montanhas do ocidente, dourando ainda apenas uma ou
outra folha dessa imensa abobada verdejante. Levantara-se um vento frio, que me
zunia aos ouvidos. As árvores curvavam-se ao sopro da aragem, e erguiam-se
depois dela passar, para de novo se curvarem. Creiam que não me acudiu ao
espírito nem a imagem de D. Tareja, nem a de Fernão Peres de Trastâmara, nem a
de Afonso Henriques, nem a de Egas Moniz. Nem sequer me indignou o sarapintado
pau de bandeira com que desfiguravam a majestade do velho monumento. Não via
senão aquele imenso arvoredo, não escutava senão o gemer do vento, não pensava
senão nos ausentes, de que me separavam léguas, nos mortos de que me separava o
túmulo.
E senti palpitarem de novo em torno de mim as asas
sombrias do anjo da saudade.
Não vi o Bom
Jesus do Monte, mas adivinhei-o. Pressenti o que seria a floresta sagrada e
famosa do Minho, contemplado os obscuros arvoredos de Guimarães.
O livro, que Camilo Castelo Branco acaba de publicar,
produziu em mim uma suave impressão. Também ele vai procurar saudades às
florestas, também ele gosta de contemplar, por entre as árvores, os túmulos que
orlam a estrada da sua vida.
A floresta do Bom Jesus viu-o passar criança, adolescente,
juvenil, e finalmente homem de idade madura. Ouviu as confidências dos seus
primeiros sonhos, sentiu correr as suas primeiras lágrimas. De cada vez que o
romancista se ia acoitar no verdejante asilo, já tinha mais uma tristeza que
lhe narrar, mais uma coroa fúnebre que pendurar em nova cruz erguida em novo túmulo.
E a floresta, sempre viçosa, acolhia serenamente o
homem, cuja fronte se ia pendendo a mais e a mais; e, ufana da sua eterna
primavera, via desbotarem-se as flores da existência do piedoso romeiro!
Foram estas sucessivas confidências que Camilo Castelo
Branco reuniu no admirável livro que se
intitula No Bom Jesus do Monte, livra
impregnado numa suave melancolia, livro do coração e para o coração, e a que Camilo
Castelo Branco poderia dar o nome de Livro
das saudades.
O sentimento fino, delicado, comovente é a sua feição
principal. Camilo Castelo Branco parece que não escreveu para o público, mas
sim para o umbroso arvoredo seu confidente e consolador. E estou certo que ele
antes queria saber que as carvalheiras e os castanheiros de Braga ouviam a
brisa ler-lhes as páginas soltas desse volume, do que saber que os elegantes de
Lisboa ou do Porto liam distraidamente o livra entre uma tourada e uma ceia.
As narrações, de que ele consta, são feitas com a
mais tocante singeleza. Há uma principalmente, cuja simples leitura nos comove
tanto, como nos comoveu a todos o Último
ato, quando a Soller, aproveitando os derradeiros e esplendidos clarões do
seu talento artístico, e da sua existência, dava um sublime relevo ao papel da heroína
desse drama íntimo.
Esse conto esta inscrito no livro com a data 1854.
É a historia do casamento e da morte de um amigo do
autor, José Augusto Pinto de Magalhães com uma senhora inglesa, Fanny Owen, tipo
celeste, vulto de um anjo, que andou algum tempo exilado nesta triste mansão da
terra.
É pungente aquela narração, e escrita de modo, que
dos olhos mais indiferentes às desgraças alheias brotam necessariamente lágrimas.
Em todo o livro se nota esse ar de tristeza, aqui ou
ali desanuviado por uma ou outra expansão da veia satírica do autor. E que dulcíssimo
estilo! que suave melodia de frase! que tesouro de linguagem, e principalmente... que tesouro de coração!
Tenho já notado nos outros livros, ultimamente publicados
por Camilo Castelo Branco, o suave perfume que está rescendendo o estilo deste
romancista, estilo que foi sempre notável, mas nunca tão feiticeiro como atualmente.
Como se há de isto explicar? A vida de Camilo Castelo branco está seguramente
longe do ocaso, e contudo o seu estilo adquiriu a majestosa serenidade, a
maviosa ternura, a dulcíssima tristeza do crepúsculo! Também já está longe da
aurora, e, quando parecia que devia ter passado para Camilo Castelo branco a
idade dos sonhos, é que ele se torna um rêveur,
um entusiasta, um adorador do bom, do belo e do ideal.
Esse tão suave encanto, essa feiticeira magia brilham
tanto neste último livro, como no Amor de
Salvação, como na Filha do doutor
negro. Mas este livro ainda é mais sentido, e por isso mesmo que não é
romance, e que o autor mostra francamente aos leitores o sacrário do seu coração,
e os faz subirem com ele a corrente da sua vida, por isso mesmo ainda mais interessa,
e maior simpatia adquire.
Simpatia é o termo próprio. Este livro é
principalmente simpático.
Pelo menos para mim, que tantas vezes nele encontrei
o eco dos meus próprios pensamentos, o espelho das miúdas sensações. Em muitas
páginas do No Bom Jesus do Monte revela
Camilo Castelo Branco a predileção apaixonada, que lhe inspirou a Chave do Enigma do Amor e Melancolia de
Castilho. Igual predileção me haviam inspirado essas admiráveis páginas do
nosso primoroso poeta. Mas eu agora levo uma vantagem a Camilo Castelo Branco,
porque posso associar à bela produção do tradutor de Ovídio muitos trechos do
novo livra de Camilo.
MANUEL PINHEIRO CHAGAS
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