No prefácio das Poesias Escolhidas de Eugênio de Castro, publicadas em 1902,
tentara eu já caracterizar o seu simbolismo.
Reconhecendo depois que não lho definira tão completamente como queria, logo me
propus fazê-lo na primeira oportunidade. Encontro-a agora, ao vir prefaciar-lhe
a nova edição do segundo dos dois livros em que ficou documentada a sua
primeira fase de simbolista.
Assinala-se, o seu simbolismo como notável exemplo de
conciliação entre uma caprichosa fantasia individual, aliada a agudos sentidos
de impressionista direto, e uma franca aptidão para a representação da vida em
criações de significação genérica, para a transposição da realidade — íntima ou
exterior — em valores de gama ideal, para a visão do particular em ampliativas
projeções de generalidade.
Concilia realmente os dois mais
salientes traços do espírito e da arte deste Poeta: a tendência a encarnar e a
traduzir em figuras e imagens do universal humano e físico as suas ideias,
sentimentos e impressões, e o segredo de — não se perdendo nelas,
transparecendo sempre, como realidade concreta, viva, através dessas
personificações abstratas — as não sacrificar também a si próprio; porque se,
com efeito, consegue moldá-las a ponto de lhes converter o significado geral num
meio de individual revelação (e nisto consiste, em grande parte, o simbolismo)
tais figuras mantêm-se-lhe numa autônoma objetividade, subsistem por si mesmas,
continuarão a representar — além de quanto exprimam ou deixem entrever do
artista — modos de ver e sentir de ordem impessoal, ilimitada, humana.
Isto, consequentemente, fora das
enleantes condições do espaço e do tempo — a despeito dum ou doutro propositado
detalhe onde o tom local e a nota histórica entrarão afinal mais como subsídio
de pitoresco e como elemento de decoração prestigiosa do que como próximo e
necessário fator, visto tratar-se de representações e figuras, de aspectos e
cenários as mais das vezes animados e revestidos de pura idealidade, de
simplificada vida compreensiva, e portanto desligados e independentes de todas
as sólidas restrições geográficas, de todas as miúdas particularidades da
cronologia.
Tal forma de simbolismo — como todas as maneiras de conceber Arte e Poesia —
correlaciona-se, porém, com uma acentuada qualidade ou natureza de imaginação,
deriva dela; e, assim, será pela segunda que teremos de explicar o primeiro.
Ora, quem percorra as obras de Eugênio de Castro não levará muito tempo a
notar-lhe essa natureza de imaginação que tudo efetivamente converte, de
preferência, em motivo de Beleza — tomada a palavra como indicando certos
totais de invenção, unificadores de dispersos aspectos físicos e humanos pela
eliminação das diferenças e resultante integração das semelhanças.
Não tardará em registar que as suas
visões se corporizam, na verdade, da harmonia com tal disposição e natureza de
representação mental: sob formas e cores e segundo condições de concepção e de
realização cuja impressão e efeito de conjunto correspondem aos produzidos por
toda essa Arte redutora dos ângulos do real em curvas de imagens sínteses, por
toda essa Arte de composição,
plástica ou verbal, recebida na dupla tradição pagã — antiga e renascente —, já pois identificada com a
alma ocidental, já tornada para nós a mais legítima medida e aferidor dos
valores estéticos. Não tardará em reconhecer que ele é, manifestamente, acima
de tudo criador de Beleza — admitido o termo no sentido de qualquer coisa
comparável à normal, englobante feição de feições dum busto típico da Espécie visto como oposto ao
modelado flagrante de determinada
criatura viva; no sentido de Arte de estilo
como antagônica com a Arte de caráter.
Mas logo reconhecerá também que é essa
qualidade de imaginação que — por implicar-lhe a visão das coisas em valores de
tal categoria de Beleza, isto é pela própria natureza genérica das suas
concepções — lhe dá aquele poder de as suscitar e contemplar como libertas de
si mesmo, como exteriores.
Reconhecerá que a ela deve o Poeta,
realmente, a apontada faculdade de objetivação,
sem prejuízo seu — do esteta e do homem
— transparecíveis a miúdo, a cada traço, traídos sempre na sensível vida duma
linguagem literária e artística tão adequada a dotar de consistência plástica e
de graça rítmica essas criações genéricas, a dar-lhes e fixar-lhes existência
mítica — devido à íntima ligação originária entre toda a forma de concepção e
certo modo de exprimir e compor — como a ferir notas impressivamente pessoais,
e a tocar pontos de particularismo.
Reconhecerá, em suma, além do mais,
que o simbolismo explicável por esta
forma de imaginação e seu revelador envolve e implica, mercê de tal poder de exteriorização (superior, no nosso
Poeta, ao de muitos congêneres) a vantagem de lhe equilibrar a vida interior
nessas mesmas representações projetivas dela, visto torná-lo, de algum modo, de
sujeito em objeto; a vantagem de lhe evitar, daí, o excessivo, mórbido
interesse do eu, e de lhe atenuar, com o tempo, as intemperanças dum egotismo
infantil.
E outra feição se lhe apontará ainda,
que com este poder prende: o seu classicismo.
Sim. Uma vez reconhecidos todos esses
caracteres e aspectos do simbolismo de Eugênio de Castro e da sua forma de
imaginação, achar-se-á, por certo, que lhe apliquei com justiça, no Prefácio
das Poesias Escolhidas, a designação
de clássico — na acepção já então
indicada, numa das largas acepções de designação tão ampla e maleável.
É clássico,
com efeito, por essa faculdade de redução
ao universal, que de certa maneira o distingue doutros espíritos, em cuja
psicologia predominam as emoções e ideias ligadas com estados e modos de ser de
atual afetividade, reveláveis à custa de diretos meios de expressão.
É-o pela Estética correlativa de
semelhante faculdade, pela maneira de compreender, inventar e amar a Beleza:
vendo e sentindo a existência mais sob a espécie de imagens mediatas, de ideias das coisas, do que sob a de
flagrantes notações do mundo exterior e interior; mas salvando as suas visões e
figuras de resultarem meras abstrações suspensas exatamente por lhes poder
impor, devido aos nativos dons de imaginação e forma, a graça viva das criações
belas vindas naquela nossa tradição literária e artística, dessas criações onde
o extensivo, envolvente significado humano
de cada uma, sem as prejudicar como expressões do real, parece, ao revesti-las
de mais latitudinária intenção, ao erigi-las de casos em conceitos,
dotá-las de maior valor representativo, dar-lhes e espalhar delas maior clarão
de verdade.
É-o pelas suas qualidades de gosto, de
razão, de ordenada harmonia, até pela preferência dada às personagens e figuras
nobres e de casta dominadora, ou de raro prestigio estético: quer nos domínios
da pura fantasia, quer nos que podemos chamar pagãos, quer nos de doce e penumbrosa inspiração cristã; porque num
como nos outros revelará sempre aquela faculdade de ideação geral, e usará dos
mesmos processos de realização em Beleza; porque será quando as suas figuras
melhor cumpram a missão de arautos
universais que melhor proclamarão também o modo de ver e sentir do Poeta —
tanto mais simbolizado nelas quanto
tudo concebe e visiona, de preferência, como imagem simbólica.
É clássico,
finalmente, pela efetuada tendência
de objetivação, acima explicada, e de si salutar, isto é — no espírito em que o
divino Goete tomou a palavra quando disse: chamo
clássico o que é são, romântico o que é doentio...
***
É claro que só depois de lidas todas
ou grande parte das obras de Eugênio de Castro se tornará possível por em
relevo e definir as dominantes feições mentais e artísticas do seu simbolismo.
Não lograria eu fazê-lo, de certo, com
a leitura das Horas apenas.
Mas também sem ela o não conseguiria
inteiramente, pois que este pequeno livro marca ao rubro com os Oaristos — rebelado manifesto do Poeta —
as suas primeiras afirmações de simbolista. Representa-lhe parte da fase
inicial, e constitui, por isso, um documento de valor na série das suas obras.
Integra-se nela.
A propósito das Horas e dos Oaristos, no
Prefácio das Poesias Escolhidas,
atribuía eu a orientação estética e a derivada produção simbolista do autor
desses livros: à sua fundamental qualidade de artista, de espírito sedento do novo, seduzível pela graça
decorativa e pelo estranho duma arte diversa e exótica; à sua tendência universalista, e consequente facilidade
na adoção de toda e qualquer inspiração ou tema cosmopolita; e à ação
diretamente exercida nele, tanto a isso disposto, pela inovadora geração
francesa do momento.
Hoje, depois de lhe haver seguido a
evolução através de toda a obra, já tão considerável, teria de modificar aquela
nota — justa sem dúvida em relação ao autor dos Oaristos e das Horas, mas
incompleta em relação ao escritor que dele se continuou e desenvolveu, que
viria a impor-se (com todo o seu exotismo e estranhos caprichos) mercê de mais
larga e cordial concepção da Arte, de mais conciliadores e generosos processos,
sem prejuízo dos seus dons de impressionista vivo e das suas exigências de
Esteta.
Teria de a modificar ainda no ponto
relativo à ação sobre ele exercida pelos artistas e poetas franceses, porque se
lhe ampliou muito o campo das influencias estranhas ou antes das sugestões a
acolher e aproveitar: sendo para citar talvez, entre todas, a da corrente
pré-rafaelita, por um lado, pelo outro a do neogoethismo, sob certos aspectos.
Teria de a modificar sobretudo no tocante
à tendência universalista; visto que
tal tendência — correlativa duma imaginação capaz de representar a vida em
Beleza e implicando a aptidão à visão e criação exterior (quer pela apropriação
de dadas imagens e figuras à representação de modos de ver e sentir próprios,
quer pelo desdobramento destes em encarnações projetivas deles) — havia de vir
a fazer desse primitivo egotista,
cujo universalismo só traía, por
ventura, mera curiosidade cosmopolita, a par do prurido infantil de a arvorar
em lema literário — o espírito equilibrado de agora, tão notavelmente
favorecido com a alteração operada na dosagem relativa do seu egotismo e do geral interesse objetivo das suas obras, o artista,
enfim, a quem se poderia aplicar o termo de clássico,
segundo a acepção definida.
Nem por isso deixou no entanto aquela
nota de corresponder de certo modo à verdade.
Trata-se, como digo, duma diversa
dosagem relativa, mas não duma substituição de qualidades, duma radical
transformação da personalidade do artista.
No fundo — o Poeta é o mesmo; somente
na posse de mais amplos recursos, com mais larga visão, dominando mais abertos
horizontes.
Já daqui se infere que não passou de
todo o interesse deste pequeno livro, apreciável sobretudo como documento e
indício, afora alguns detalhes de pura Arte.
Reveste mais do que um simples valor
histórico.
Mas, além da importância que possam
ter tido como revelação de tendências naturais do Poeta e de influencias por
ele recebidas, as Horas tornaram-se e
mantêm-se ainda interessantes sob um tríplice ponto de vista: pelas
determinantes e condições do seu aparecimento e efeito; pela sua contribuição
para certas inovações da nossa técnica literária; pelos aspectos especiais que
nesta obra revestem aquelas mencionadas tendências do autor — artista feito de
singularidades suas e exemplar representativo de gerais modos de ver e sentir,
vivo reflexo de vários sinais do tempo.
Devem interessar-nos, as Horas, sob aquele primeiro ponto de
vista — como complemento do revoltado gesto dos Oaristos — porque nos reavivam o caso, repetido mas curioso sempre,
do artista moço que, seduzido pela flor de novidade duma advinda teoria e forma
de Arte, obedece ao natural impulso de a propagar e que, envaidecido da sua
missão de porta-lábaro, lança mão de tudo para desempenhar tal missão,
sublinhando a vermelho cada passagem intencional a fim de a impor e de se impor
vitoriosamente.
Devem interessar-nos porque se, no
caso especial deste artista (à parte a graça preciosa de algumas das suas
páginas) documentam uma excessiva preocupação de originalidade, que o arrasta
por vezes ao grotesco, um intuito fixo de inédito, uma constante premeditação
de exibição pessoal — tudo talvez de envolta com maliciosas ideias de reclame —
vieram também, dadas as condições e qualidades do meio, revelar-nos no autor
notável faro e instinto dos recursos a unir para triunfar em tal meio, a clara
consciência de que só a foguetes de extravagância, a golpes de imprevisto
irritante, ou mesmo a passes de mistificação lograria despertar a dormente
indiferença e prender a atenção inconstante de gente tão capaz de continuar
surda e cega às coisas belas, como de embasbacar — rindo, embora, ou embaçando
— perante os caprichos pirotécnicos de todo o fantasista hábil, em qualquer
campo.
Devem interessar-nos, assim, porque,
explicando-nos em parte o facto de o Poeta ter vencido e podido prosseguir numa gloriosa marcha, firmada a obras
de crescente beleza e encanto, vieram implicitamente acentuar-nos um real
aspecto da nossa psicologia.
Devem interessar-nos, sob o segundo
ponto de vista porque, registando — a par de invenções do Poeta — muito
daquelas influencias exóticas nele confluídas e dele irradiadas, contribuíram,
no campo da nossa técnica literária: para o rejuvenescimento de formas estróficas
arcaicas, para a libertação e elastecização da métrica no caminho de mais
variados e ricos efeitos — do verso e da frase — para a adaptação, à
literatura, de novos elementos decorativos, de novos recursos musicais e
rítmicos, de novas imagens picturais.
Devem interessar-nos, sob o terceiro
ponto de vista, porque resumem e precisam realmente algumas das tendências e
aspectos do Poeta — entre outros, três, que ressaltam logo de outras tantas
notas da abertura, dessa sinfonia-programa onde se encontram os fios mestres de
todo o livro.
Complicadas
decorações de legenda velha mantelando o pudor dos episódios simples — escreveu o
Poeta, repetindo-o adiante, como ilustração ao poemeto Dona Briolanja.
E quem, lendo estas palavras, não
descobrirá, afinal, através delas um dos aspectos e tendências do espírito do
autor — não só do autor dos Oaristos e
das Horas, mas do das obras
subsequentes? Não estará nelas afirmado, em grande parte?
Por certo não será indiferente, nem
como artista nem como homem, ao que uma ação ou episódio simples envolva de
impressivo — de trágico, de emocionante.
Mas exigirá sempre que tal episódio ou
ação revistam singular prestígio estético: nas roupagens ou na nudez — quer
delicada quer magnífica das figuras — no cenário ou nos acessórios; que, fora
destas condições — e quando ainda se lhe recomendem pelo seu puro valor de
motivo dramático — a graça ou nobreza das atitudes e movimentos das
personagens, a prosódia e o ritmo de quanto digam e de quanto o Poeta por elas
ou delas diga lhe façam desse episódio ou ação uma obra d'Arte.
Poderá uma ou outra vez inventar e
produzir em condições diferentes; pois nada ao talento é defeso.
Só, porém, estará no seu verdadeiro
terreno quando nele o artista em tudo se imponha ao homem.
Dado o intuito e natureza das Horas, acha-se bem natural que aquele —
o artista — se revelasse aqui em palavras cujo tom e feição nos trazem à ideia filacteras de manuscritos góticos e
iluminuras de evangeliário.
Não seria contudo difícil provar que
esta nota das Horas, havendo
correspondido e correspondendo a certa modalidade do artista, admite muito mais
largo sentido: o da compreensão de qualquer caso da vida como convertível
sempre numa nova forma de Beleza.
Parece-me também que as duas linhas
onde se encontra a segunda das notas a salientar: preces dum herege arrependido, votos castos dum antigo libidinoso,
pesadelos e irreligiosas hesitações dum recente convertido não refletiram
apenas um geral estado de espírito do momento, uma situação psicológica comum a
muitos requintados da simplicidade
para quem os domínios do espiritual místico, dos segredos litúrgicos, dos
mistérios simbólicos se abriam como refúgio das almas e da Arte ante a complexa
brutalidade da existência real e o brutal realismo da literatura corrente — mas
revelavam ainda uma outra natural tendência do Poeta: a tendência à visão e
compreensão antitética das coisas. É
da antítese, da oposição entre
situações ou modos de ser seus, entre aspectos ou qualidades postas em relevo
que melhores efeitos consegue. Demonstrá-lo-iam diversas passagens do Sagramor, e viriam confirmá-lo outras
das suas melhores obras, onde a luta, no fundo, se trava as mais das vezes
entre a Arte e a Vida, e onde o artista — acentue-se — transparece sempre na
solução do conflito, pois sempre a Arte lhe sairá vencedora, quando mais não
seja na forma de o solver.
Leia-se, enfim, esta frase da
abertura:
Tal
a obra que o Poeta concebeu longe dos bárbaros, cujos inscientes apupos, — tal
não é de esperar, — não lograrão desviá-lo do seu nobre e altivo desdém de
nefelibata.
Desconte-se-lhe tudo quanto contém de
envaidecidamente pueril, de impertinentemente desdenhoso, de preciosamente
repuxado; arranque-se-lhe o epíteto nefelibata,
tornado de encomiástico em pejorativo mal o adotaram e popularizaram;
fixem-se-lhe apenas as palavras longe dos
bárbaros, por ele mesmo sublinhadas.
Verificar-se-á que ainda aqui o
prólogo das Horas feriu uma das suas
cordas vivas — refletindo a moral da sua Estética, de então e de hoje, como as
duas precedentes refletiam, uma a sua dominante tendência de artista, a outra a
sua natural maneira de ver e pôr em jogo os dados da obra de Arte.
Pois, admitindo que a Arte por tudo
deva interessar-se (salvas sempre as preferências de cada artista) não a
considera daí território a todos aberto, quer para realizarem, quer para
apreciarem ou explicarem.
Aceitará que o seja — mas como um
largo domínio onde todos poderão caber, a título de assunto, e não como um
império onde a todos seja permitido dominar.
Isto, porque os elementos colhidos da
vida só se aglutinam e combinam num vivo composto de Arte mercê precisamente de
peculiares qualidades de elaboração criadora, e dum especial poder de
concentração, que o artista possui e faltam aos outros; sendo ainda condição
indispensável para o êxito da obra e sua independência em frente de quantos o
rodeiem.
A sua simpatia por esta ou por aquela
ideia, o seu interesse por este ou por aquele tipo ou figura, a par a
predileção por estes ou por aqueles aspectos de natureza, não envolvem a
concessão de que qualquer criatura humana — aproveitável para modelo e tema — ou de que qualquer coletividade delas possam intervir na sua
vida e na sua obra a sugerir-lhe pontos de vista, a criticar-lhe processos, a
discutir-lhe intuitos.
Isso é para os raros apenas, para os congêneres, por missão ou identidade d'alma —
conhecidos ou desconhecidos; só para aqueles em quem o Poeta por ventura pensa
quando cria, embora sempre crie, afinal, pela pura necessidade de criar.
Sucederá, sem dúvida, que a coletividade se interesse pela obra de
arte em certas condições e sob certos aspectos.
Mas dar-se-á isto: ou quando ela
confunda a Arte e a Vida — no campo dos primitivos e fundamentais sentimentos
humanos; ou quando, episodicamente, uma passagem da obra de Arte lhe
corresponda a uma situação aguda da existência; ou quando se sirva de formas e
expressões artísticas, como de emblemas significativos e de motos, com
intenções manifestamente estranhas à Arte, quando desta se sirva como dum meio em vista de qualquer fim prático, social, político.
Fora destes três casos, só olhará a
Arte como objeto de mero passatempo, e só dela verá e apreciará o que ela
apresente de exterior, e, por via de regra, de inferior; há de preferir, em
geral, as complicadas exibições do falso gosto às linhas sóbrias e certas do
verdadeiro, o melodramático ao trágico severo, a sentimentalidade ao
sentimento, a eloquência fácil à revelação profunda.
Ora, no primeiro dos três casos
apontados, andará ela fora do campo da Arte exatamente pela confusão dada, que
lhe determinará estados de exultação ou de depressão, quando o efeito próprio
da obra artística é sempre a elevação
da tonalidade psíquica no segundo caso, a impressão da obra de Arte será ainda
apenas reforçativa da real modalidade d'alma correspondente à situação dada, e,
como tal — mais e menos do que artística; no terceiro caso
pode dizer-se que já se não trata de Arte, e sim da sua exploração ou
profanação.
Explicando, portanto, que o nosso
artista tenha da Arte tal concepção e sentimento aristocrático — numa larga
significação do termo — e reconhecendo que a terceira nota por mim transcrita
da abertura das Horas corresponde e
corresponderá sempre a uma das suas feições dominantes — deverei agora acentuar
os efeitos de semelhante sentimento e concepção.
Resultam deles: para a sua Obra — uma
nobre e altiva independência na ideação e nos processos; para o Poeta —
passados, com os verdores da mocidade, os pruridos da extravagância e os
exageros egotistas — o inquebrantável
respeito, de salutar exemplo, por todas as formas do Ideal e da Beleza; para o
Homem — reflexo, neste, do artista — uma constante aspiração de perfeição
pessoal, paralela às exigências do Esteta, uma ambição de elegância moral cada dia realizada com maior evidencia, através
todos os passos da vida.
Tudo isto se colhe do fundo das curtas
frases transcritas, dia a dia confirmadas como dísticos proféticos.
Justifica-se, pois, que eu lhes haja
desdobrado o conteúdo em tão longos períodos.
E também me será por certo relevado
que eu tenha aproveitado o ensejo deste prólogo para tentar definir alguns dos
principais aspectos do Poeta, enquanto lhe não consagro o desenvolvido trabalho
crítico exigido pela sua obra — já tão vasta como bela.
---
MANUEL DA SILVA GAIO
MANUEL DA SILVA GAIO
Coimbra,
28 de junho de 1912.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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