5/17/2020

José Albano - Poesia Épica (Seleção)


POESIA ÉPICA___________________



COMEÇO DO TRIUNFO

Era no tempo, quando a terra perde
O alvo manto de neve e a doce Flora
Adorna o bosque e esmalta o campo verde.

Nos ares se ouve a música sonora
De Progênie que lá vai, lânguida e lenta,
Tornando aonde Filomela mora.

Eis sobre o manso e livre de tormenta
Assento das nereidas saudosas
Um triunfo aos meus olhos se apresenta.

Coberto só de lírios e de rosas,
Aurifulgente carro vem trazido
Por mil pombinhas meigas e amorosas.

Nele com o ledo e trêfego Cupido,
Está Vênus; serena e sorridente
A cujo raro encanto andei rendido.

E o seu olhar se alonga no ambiente,
Como uma clara estrela matutina
Começa a cintilar suavemente.

E o seu sorriso voa na campina
Como um jasmim que docemente caia,
Quando Favônio a leve rama inclina.

E entre ondas de perfume que se espraia,
Vêm as Graças gentis em brando adejo:
Eufrosina e Tália com Agláia.

E as horas imortais admiro e vejo
Diceia, Eunômia e Irene com a formosa
Musa que ainda acende o meu desejo.

Esta é quem só d'amores vive e goza,
Esta é quem faz que eu só d'Amores cante
Em melodia doce e dolorosa.

***

FALA DA MUSA

Caro amador, nunca houve quem te visse,
Senão tratando só do afeto puro
Que amor manda que sempre se cobice.

O mesmo bem procuras que procuro,
E em pago do teu longo sofrimento
Aqui verás pintado o teu futuro.

Ouve-me, nunca viverás isento
D'arte ou d'engenho e sempre terás na alma
Da poesia o brando sentimento.

Terás a doce avena que te acalma,
E a belicosa tuba que te anima,
Para que alcances sempiterna palma.

E voando no espaço, lá de cima
Espalharás em sonoroso canto
O que nunca se disse em verso ou rima.

Nunca te faltará do monte santo
A proteção benigna e benfazeja
Das nove musas a quem amas tento;

Que eu te prometo que o Parnaso seja
Em teu favor e desta vida escura
Evites a vulgar e vil peleja.

Sentes comigo a mesma desventura
E o mesmo gozo e, cheia de gemidos,
Na mesma língua a tua voz murmura.

Ah! nunca de mim sejam esquecidos
Os acentos da música celeste
Que vencem e arrebatam os sentidos.

E como sempre assim cantar quiseste,
Em sons ou d'amargura ou d'alegria,
Farei que o teu amor se manifeste.

E erguerás nesta vida fugidia
Um monumento como outrora os houve,
Contra que o duro tempo em vão porfia.

E embora a gente humana te não louve,
Hás de viver contente, conhecendo
Que Polínia te inspira e Apolo te ouve.

***

APARIÇÃO DE AFRODITE

Já se escutam sussurros e clamores
Contra, os de Luso, a tal empresa afeitos,
Quando aparece a deusa dos amores
Que traz em laços corações e peitos;
E, olhando aqueles dons encantadores,
Os numes imortais ficam sujeitos
E o próprio Zeus se espanta e maravilha
Da formosura que lhe mostra a filha.

Como abelhas em voo diligente
Saem da colmeia, cheia d'áureos favos,
De madrugada, quando no oriente
E os derrama os seus cabelos flavos:
Pousam aqui e ali suavemente
Em brancas rosas e vermelhos cravos:
Desta arte beijos vão subindo entorno
Ao colo ebúrneo, palpitante e morno.

E como pombos, revoando à tarde,
Quando a noite começa e o dia finda,
Descem com a luz do último raio que arde,
Pela celeste altura etérea e linda;
E o doce ninho que os proteja e guarde,
Este acha logo e aquele busca ainda:
Assim de toda parte ao seio brando
Suspiros amorosos vão chegando.

E qual o caminhante no deserto
Que ouve os múrmuros sons dalguma flauta,
Ou qual o pescador que leva perto
Dos cantos da sereia a barca incauta;
Parece o mundo um paraíso aberto
Ao viajor cansado e ao triste nauta:
Desta arte Citereia nos fascina,
Erguendo a voz em súplica divina:

Ó grande padre Zeus, é bem notório
O amor que tenho ao peito lusitano
Que ousadamente dobra o promontório
Sem medo a tempestade, morte ou dano;
E agora quero, em prêmio não inglório
Do seu atrevimento mais que humano,
Levá-los longe da estação severa,
A pátria da perpetua Primavera.

Já fiz surgir uma ilha nunca vista
Em meio do oceano, amena e doce,
Onde o audaz coração, dado a conquista,
Pelos amores conquistado fosse;
E aí, longe de tudo que contrista,
Guiei as invencíveis naus, e trouxe,
Onde se repousassem das fadigas
De mares e de terras inimigas.

Mas, se lhes dei lugar tão benfazejo,
Para que enfim um pouco descansassem,
Mais merecem, segundo entendo e vejo,
E peço que sem guerra avante passem;
Pois agora é o meu único desejo
Que vivam onde eternos gozos nascem,
Em deleitosos sonhos duradouros
Mirtos verdes juntando aos verdes louros.

E a ti, sublime padre Zeus, entrego
O futuro da minha gente amada,
Faze que pelo tormentoso pego
Mansamente navegue a lusa armada.
E, se alguém com furor maligno e cego
Contra os nautas levanta a voz, e brada,
Não lhe creias, pois tudo te assegura
Que é fruto só d'inveja baixa e escura.

***

FALA DE HERMES

Desta arte fala o padre soberano
Que a tudo manda e ordena sabiamente,
Parte-se Poseidon irado e insano,
E a lânguida Afrodite ri contente;
Vai, pois, ilustre capitão, sem dano,
Que Zeus aos Lusos navegar consente
Aonde a Primavera enternecida
Há muito que te chama e te convida.

Vai pelo mar azul à verde terra
Tão fértil, tão fecunda e tão formosa,
Em cujo seio a natureza encerra
Tudo que o coração deseja e goza;
Em cujo bosque, vale, prado e serra
Corre um perfume d'açucena e rosa,
Em cujas grutas frescas e quietas
Hão de morar as musas e os poetas.

Disse e qual andorinha que em procura
Voa d'ameno e deleitoso clima,
Vendo uma branca vela na água pura,
Dos céus desce e lhe vem pousar em cima;
Mas em seguida pela etérea altura
Com asa mais leve a revoar se anima:
Desta arte subiu lépido e ligeiro,
Pelo caminho lácteo o mensageiro.

***

DESCRIÇÃO DA PÁTRIA DA PRIMAVERA

Por um declive saudoso rio
Entre as penhas desliza lentamente,
Formando um lago claro e luzidio
No qual se espelha a selva florescente;
Vê-se ali um vergel verde e sombrio,
Banhado pela límpida corrente,
Onde colher se podem, sem embargos,
Doces laranjas e limões amargos.

E entre mil retorcidas trepadeiras,
Nos duros troncos procurando encosto,
Nascem romãs, à vista prazenteiras,
E roxos figos d'esquisito gosto;
Em cachos tintos pendem das parreiras
Os frutos de que o néctar é composto,
Enquanto as auras plácidas e calmas
Meneiam mole e mansamente as palmas.

De ramo em ramo voam beija-flores,
Abrindo as refulgentes e áureas penas,
Borboletas azuis, multicolores,
Sobem silenciosas e serenas;
Murmura entorno música d'amores
Em continuas e doces cantilenas,
Derramando nos ares o segredo
Da triste rola e do canário ledo.

Passa o pavão cuja beleza suma
Pincel não pinta e pena não descreve,
Ave que sempre acompanhar costuma
A alta esposa de Zeus em voo leve;
E pela água, desfeita em pura espuma,
Nadando o cisne vem, da cor da neve,
Ave sagrada a Citereia, e santa,
Que vive muda e, quando morre, canta.

Abelhas com sussurros sonorosos
Ambrosia nos campos vão colhendo;
No ninho arrulham pombos amorosos,
Suaves beijos dando e recebendo:
Quantas delicias há e quantos gozos
Que em vão com a mente imaginar pretendo
Olhai, do prateado arroio à margem,
Ervas e flores que fragrância espargem.

A rosa ali se vê purpúrea e bela,
Nasce-lhe a cândida açucena ao lado.
A roxa violeta se revela,
E o cravo, d'amadores estimado;
Do alto cai o jasmim qual nívea estrela,
Em redor a bonina esmalta o prado,
Cresce também (notai o estranho efeito)
Junto do malmequer o amor-perfeito.

Perto a camélia ou branca ou rubicunda
Com o rosmaninho e a tulipa viceja
D'olores o alecrim o espaço inunda,
Rescende a madressilva benfazeja;
E, para que com a mágoa se confunda
Algum prazer, é bem razão que esteja
Com o triste goivo o mirto imorredouro,
A hera perpetua e o sempiterno louro.

E com a magnólia e a passionária santa
Floresce a parasita sem aroma,
E o girassol que a vista ao céu levanta
Onde Febo dourado surge e assoma;
E aquela desejada e rara planta
Que adormece a quem dela as folhas coma,
Pintando em sonho um gozo etéreo e ignoto:
Doce e maravilhosa flor do loto.

***

CATÁLOGO DAS MUSAS E DOS POETAS

Aqui a vossa língua bela e branda
Que da latina fonte se deriva,
Há de escutar-se, pois o fado manda
Que novamente aqui floresça e viva;
E quer que a doce música se expanda,
Não alcançando fama fugitiva,
Mas, apesar do tempo que o consome,
Com a vossa língua dure o vosso nome,

E, para que o reclamo se levante,
Entorno murmurando mansamente,
Dalgum ditoso coração amante
Ou magoado coração doente,
Do Olimpo há de enviar o grão tonante
As musas para o novo continente,
Sem cujo auxilio a sonorosa lira
Não canta, não soluça nem suspira.

No Hélicon donde surge a fonte clara
Que do alado corcel a origem teve,
E no Parnaso a cuja linfa rara
A imorredoura inspiração se deve,
O coro das donzelas se prepara
A atravessar o mar sereno em breve
E, se bem o futuro desenrolo,
Há de vir-lhes à frente Febo Apolo.

Bem como pombas assustadas, quando,
Repousando nos ramos duma fronde,
Ouvem o caçador que vem chegando
E atrás dum tronco d'árvore se esconde;
Num só momento vão partindo em bando
Pelos espaços sem saber aonde:
Desta arte, um pouco esquivas e confusas,
Irão à nova terra as nove musas:

Clio que os tempos idos rememora,
Euterpe com o cálamo, Tália
Que ri sempre, Melpómene que chora,
Terpsícore que as leves danças guia;
Erato, dada a Amores, a canora
Polínia, Urânia, dada à astronomia
E Calíope cujo fogo santo
Da tuba retumbante inspira o canto.

Da Grécia hão de trazer a alta doutrina
Da arte imortal, segundo vejo e espero,
Lá donde se ouve a música divina
Do velho pai da poesia, Homero,
E o som que o magno Píndaro me ensina,
E Ésquilo, mestre da Tragédia austero,
E o queixume que espalham sem repouso
Sófocles brando e Eurípides choroso,

Virão à Itália, assento sempiterno
D'engenhos peregrinos, pátria santa,
Onde com o bom Horácio e Ovídio terno
Virgílio sonoroso a voz levanta;
Onde Alighieri pinta, céu e inferno
E Petrarca suspira em mágoa tanta,
Onde canta Ariosto sorridente.
E Tasso geme dolorosamente.

E passarão pela Provença bela,
Terra dos amorosos trovadores,
De cuja suavíssima querela
Voam ainda os sons encantadores;
Ali toda a ciência se revela
Da suprema alegria e dos amores,
Nem se podem sentir outros cuidados,
Senão de corações enamorados.

Verão também Castela onde Cervantes
Tem nos lábios o riso e a dor no peito,
Onde o grão Lope, como nunca dantes,
Traz o fogoso Pégaso sujeito
E Calderón em versos elegantes
À branda influição se mostra afeito,
Bebendo em copa d'ouro a água perene
Das fontes de Castália e d'Hipocrene.

Enfim chegam ao ninho lusitano,
Ledo berço da triste saudade,
Onde a alma só d'amores sente o dano,
Mas onde tudo a amores persuade;
Onde Camões sublime e soberano
Faz que por toda parte se traslade
O clangor da trombeta nunca ouvido
Ou da avena o dulcíssimo gemido.

Daqui no argênteo carro d'Anfitrite
(Que Poseidon irado já descansa)
Hão de partir, e Éolo assim permite,
Pela vaga do mar cerúlea e mansa;
E sem perigo extremo que se evite,
Irão alegremente, na esperança
De que Zéfiro brando as leve e traga
Ao doce porto e desejada plaga.

Assim como o áureo sol resplandecente,
Quando reina nos céus a noite escura,
Ainda meio oculto, lentamente
Vai derramando os raios pela altura
E em seguida, surgindo de repente,
Enche o espaço de luz serena e pura:
Tal da treva negríssima e sombria
Há de nascer de novo a poesia.

***

FINAL DA ALEGORIA

Tal como quem, nutrindo uma esperança
Em meio desta vida, triste e incerta,
Dorme, iludido na ventura mansa
Que do anelado bem lhe faz oferta;
Nas no momento mesmo em que ele o alcança,
Abrindo os olhos, súbito desperta
E, perdendo o prazer doce e risonho,
Não pôde crer que tudo foi um sonho:

Desta arte Clóris, quando não mais pinta
O que repete a fala tão sonora,
Um não sei que faz que saudades sinta,
Vendo a clara visão voar embora:
E, acabando cansada e meio-extinta,
Suspira sem querer e quase chora,
Porém, olhando logo a Lusa gente,
Vence o desgosto e ri serenamente.

Qual terno beija-flor que deixa o ninho
Com a cara consorte e filho implume,
De rosa em rosa no jardim vizinho
Colhendo o néctar, cheio de perfume;
Aias depois, revoando o passarinho
Aonde todo o amor se lhe resume,
Com os seus em paz repousa benfazeja
E dali nunca mais partir deseja:

Tal a meiga alegria vai fugindo
Da alma cândida, amável e sincera,
Mas logo torna em riso ao rosto lindo
E ao coração que ardentemente a espera;
Puro contentamento está sentindo
A gentil e mimosa Primavera,
Porque da língua lusitana sabe
Não sofrerá que a poesia acabe.

Pois nela manda o céu que, nova e nua,
A formosura helênica admiremos
E o latino vigor se restitua
Segundo a tradição que conhecemos:
Enfim a glória antiga continua
E estes maravilhosos dons supremos
A língua para si recebe e toma
Da bela Atenas e da forte Roma.

Musas, não mais! O último som derramo
E já se apaga a flama em que me alento,
E não vos peço imarcescível ramo
Em prêmio do imortal atrevimento:
Mas dai-me sempre aquilo que mais amo,
Musas, nunca deixeis que viva isento
De branda poesia um peito brando
Que anda os vossos louvores celebrando.

E tu, suave citara canora,
De cujas cordas tiro a melodia,
Ou quando em mim uma saudade mora
Ou quando uma esperança me alivia:
Pende ao meu lado sempre como agora
Em jucundo prazer ou dor sombria,
Para que eu possa leda ou tristemente
Dizer em verso tudo que a alma sente.

E vós que vã cobiça não condena
A uma perpetua, dura e áspera luta,
Vós que a filha de Zeus, Palas Atena,
No templo consagrou da arte impoluta,
Vinde comigo à Arcádia doce e amena
Onde continua música se escuta,
Vinde viver sem mágoas e sem danos,
Claríssimos engenhos soberanos.

E olha, coração meu, vê quanto gozas,
Quando o sublime canto se traslada;
Nascem louros ainda, nascem rosas
Para trazer a fronte coroada;
E, porque Apolo e as Musas amorosas
Tenham sempre na terra uma morada,
Sobre colunas dóricas levanto
Um novo Parthenon eterno e santo.

---
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020) 

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