Fui a uma
aldeia, pendurada de uns rochedos de Barroso. Bragadas era o seu nome. Chamavam-me
ali as trutas do rio Beça, as maiores trutas dos córregos riquíssimos de Portugal.
Distanciei-me
duas léguas de casa, e fui surpreendido pela noite, debruçado por sobre uma
fraga, com o anzol numa levada, onde vi uma truta velha, de cabelos brancos,
como lá dizem.
Desta macróbia
se dizia que tinha impunemente engolido anzóis! O peixe era um Mitrídates da
sua classe.
Assustado da
noite, e transviado do caminho, fui dar àquela aldeia, e perguntei a um pastor
se lá havia padre. Casa de padre é sempre albergaria certa de forasteiros, mesa
farta, e cama limpa. Não havia padre em Bragadas.
— Quem me dará
agasalho nesta povoação? — perguntei ao pegureiro informador.
— Quem quer
lhe dá agasalho.
— Mas onde hei
de ir bater?
— Vá vossemecê
por esse quinchoso abaixo; lá ao fundo carregue à sua esquerda, e salte um
portelo que não tem que errar. Vossemecê vai rebentar mesmo à porta do tio João
Barroso.
— Rebentar?! —
articulei eu, assustado da profecia.
— Sim, à porta
do tio João Barroso, que é o lavrador maior da freguesia.
Rebentar,
felizmente, era sinônimo de sair ou chegar.
Rebentei,
pois, à porta... À porta? Hei de eu
chamar porta a isto?
Era o lavor
mais primoroso que meus olhos tinham visto. Um luar brilhantíssimo alumiava a
vulto aqueles rendilhados, festões, laçarias, refendimentos, figuras e relevos
do mais luxuoso cinzel. Era alteroso o portão. As ombreiras eram colunas
recebendo nos capitéis uma cúpula triangular recamada de florões, com grande
folhagem, donde surdiam anjos dedilhando cítaras, e outras figuras
emblemáticas, que eu não enxerguei se eram faunos ou santos.
Neste espasmo
estava eu, quando de uma barroca próxima me saiu um lavrador com uma gabada de
canas-milhas, sobraçada, e sacola ao ombro.
— Guarde-o Deus!
— me disse ele.
— Muito
boas-noites — respondi, descobrindo-me.
— Quem busca?
— Ia bater
nesta porta, para pedir ao dono da casa o favor de me dar agasalho.
— Levante o
gramelho, e entre. O dono da casa sou eu. Vossemecê é caçador?
— De cana, que come mais do que ganha, diz
lá o ditado.
— É de longe?
— Sou da Ribeira.
— Longe
veio!... Mas vossemecê está muito seco.
— Estou seco?!
— Sim; diz lá
o outro: não se pescam trutas a bragas
enxutas... Não o vejo molhado!
Tínhamos
entrado na cozinha.
— Sente-se — continuou
o lavrador -, esteja a seu gosto. Se quer tirar os sapatos, arranjam-se-lhe uns
socos. Ponha-se em mangas de camisa, à vontade; aqui não há políticas.
Agradeci o
suplício dos tamancos, e mantive a decência da jaqueta.
— Vossemecê
parece que estava a gostar das figurinhas do portão? — disse o senhor Barroso.
— Estava a
admirar.
— As figuras
são os doze apóstolos e os anjos. Aquilo está bem feito de uma vez, heim?
— Nunca vi
coisa melhor! Mas...
Sustive-me. Eu
ia perguntar ao hospedeiro, dono daquele magnífico portal, como era que a
fachada do edifício escondia uns quase pardieiros, uma cozinha térrea, e uns
sobrados com umas janelas de pedra bruta, e portadas de madeira nem sequer
desbastada pelo capilho! Pareceu-me indelicada a pergunta, e esperei
explicações.
— Mas é que
estava somente começada a obra... — acudiu o lavrador adivinhando a pausa. — Assim
ficará até ao fim do mundo, que o portão só pode cair quando o mundo tiver sua fim.
— Pois é pena!
— disse eu. — Uma obra daquelas não devia estar sumida nestas serras. Eu vim de
Lisboa, há sete anos, não me lembro de lá ter visto arquitetura mais majestosa.
— De lá vieram
seis obreiros, e dois anos trabalharam nessas pedras... Era eu da sua idade
pouco mais ou menos. Há cinquenta e seis anos que a obra parou.
— Mal haja
quem a fez parar! — interveio uma velha, que devia ser a consorte do senhor João.
— Amém! — disseram dez ou mais familiares,
que por ali estavam deitados ou sentados sobre os escanos e bancos.
— Tantos
demônios lhe chorrisquem a alma, como de... — acrescentou um ancião de aspecto
encorreado, e cãs estopentadas.
— Cale-se lá,
tio José! — disse o velho. — Deus lá sabe o que faz... — Toca a comer o caldo —
ajuntou o sobrinho do praguejador, declinando do assunto, que me estava
incitando a curiosidade, muito mais do que a ceia o apetite.
A ceia era um
caldo de castanhas piladas bem adubadas de toicinho bem assazoado de batatas, a
que lá chamam castanholas.
Demos graças a
Deus, e cada qual foi à sua cama. Para homens cansados do lidar do dia, o sono
reparador traz-lho como doce mimo a natureza benfazeja, e leal ao Criador que
santificou o trabalho.
Estes não
carecem de engalhar o sono com palestras, nem, comida a ceia, ficariam ali para
ouvir propriamente as sete partidas do
conde D. Pedro, ou a história da
imperatriz Porcina.
— Venha daí
vossemecê — me disse o senhor João Barroso, guiando-me, com uma candeia, a um
quarto de cantaria, com firmamento de ripas e telha, intermeado de colmo e
loisa.
— Aqui dormiu
dez anos um grande homem! — disse o lavrador. — Amanhã, se vossemecê não for
cedo, eu lhe direi como foi começada e acabada a obra do portão. Nessa cama é
que dormia o padre que a mandou fazer. Toca a sossegar. Com bem passe a noite.
Apague a candeia antes de pegar a dormir.
Antes de me
deitar nos alvíssimos lençóis, olhei em todo o quarto, e vi a um canto uma rima
de livros. Fui examiná-los e achei breviários, ripanços, um Flos
Sanctorum, uns doze volumes em espanhol de um Saavedra, um Calepino,
a Recreação Filosófica do padre Teodoro
de Almeida, e outros que esqueci, menos as Peregrinações
de Fernão Mendes, que levei comigo, para, como de fato, adormecer na
primeira página, e dois in-fólios com os quais fiz travesseiro. Ao romper da
manhã, acordaram-me as marradas dos bodes, cuja corte era debaixo do meu
quarto; e o balar das ovelhas, que moravam defronte, e o mugir das vacas, que
deviam morar perto, e o chilrar das andorinhas, que tinham seu ninho no friso
da cimalha.
Levantei-me; e
como não visse lavatório, nem água, nem toalha, saí a lavar-me na fonte, que
estava perto, e regressei a limpar-me aos lençóis.
Depois saí a
revistar os pormenores do portal. Em cada folha de festão achei motivo para
assombro. As miudezas fisionômicas dos santos eram maravilhas de engenho e
paciência. O soco das colunas primava em lavores emblemáticos: num era o quadro
grandioso de Jesus ordenando serenidade às ondas encapeladas, quando os
descridos apóstolos se julgavam comidos pelo mar. No outro edificava Moisés,
recebendo as tábuas da lei no monte Sinai, e os israelitas perjuros adorando às
abas da montanha o ídolo incensado por Aarão. Os doze apóstolos estavam ao
longo da padieira enfileirados sob dossel de trepadeiras, tão sutilmente
lavradas que a folhagem parecia transluzir o sol-nascente. O remate da cúpula
era um quadrante de mármore circundado de florões, e descansado sobre as
espáduas de dois querubins, que pareciam pedir ao Sol o raio demarcador das
horas.
— Cá está
vossemecê outra vez! — disse o lavrador, saindo ao terreiro da casa.
— Não me farto
de ver.
— Ora veja, e,
se quer, venha daí, que eu vou levar os bois ao pasto, e lá lhe contarei a
passagem.
— Pois irei de
muito boa vontade.
Tangeu ele o
gado para dentro de uma tapada de restolho; sentou-se num combro, mandou-me sentar
à sua beira, e falou assim...
***
— Muito antes
de eu nascer, um irmão de minha mãe, que Deus haja, ordenou-se, e foi para
esses Brasis, à conta de umas rapaziadas que iam dando com ele nas unhas da
justiça. Chamava-se padre Domingos Carneiro, Deus lhe fale na alma.
Meu amiguinho e senhor, vai o homem para aquelas terras, que, pelos modos, o dinheiro lá é tanto como a praga, e pega o padre a enriquecer, que já media peças de duas caras aos alqueires!
Estava ele lá
havia coisa de vinte anos, quando mandou perguntar a minha mãe se poderia
voltar para a terra. Minha mãe mandou-lhe escrever que viesse, porque a moça já
tinha morrido, e os velhos também.
— Pode-me
contar a história dessa moça? — interrompi eu com a grosseria desculpável à
curiosidade de um futuro cronista de moças.
— Homem! —
respondeu o lavrador meditativo — deixemos em paz quem já lá está.
— Queira
perdoar... eu pensei que...
— Deus lá sabe
o que foi... Como eu lhe ia contando, meu tio padre Domingos, assim que recebeu
a resposta, ensacou a riqueza e veio. Tinha eu sete anos. Ainda o estou a ver!
Era um padre do tamanho daquele sobro! Trazia seis baús que pesavam como
chumbo!
Vinha com ele
um mulato já espigadinho, assim como vossemecê, e andava vestido como um
pimpão! Este mulato chama-se Vicente, e já vinha de lá com os latins sabidos
para se ordenar. Assim que chegou, foi para Braga tomar ordens, que custaram
muitos centos de mil réis, porque naquele tempo sangue de preto não recebia
ordens senão a peso de ouro. Agora, pelo que ouço dizer, o estado manda aos
matos buscar pretos para os fazer padres. A religião está por um cabelo! Veio o
padre Vicente para casa, e meu tio queria-lhe como às meninas dos olhos. O que
ele dissesse era o que se fazia. Lá dizia o mulato missa uma vez por outra; mas
minha mãe, que era a verdade em pessoa, estando para morrer me disse que o
padre Vicente algumas vezes, antes de ir celebrar missa, ia à prateleira da
cozinha, e amolava os dentes nos bocados de carne que acertavam de ficar da
ceia! Eu não quero com isto fazer mal à salvação do pecador. Deus lá sabe!...
Ora pois. Meu
tio, assim que chegou, entendeu logo em fazer uma casa.Chamaram-se os pedreiros
melhores destas redondezas, e ele lá lhes fez as suas perguntas, e impontou-os,
dizendo que fossem erguer socalcos, e escreveu para Lisboa a pedir obreiros do
palácio real. Vieram logo seis para mestres da obra, e muitos de outras partes
para oficiais. O tio padre lá disse a sua ideia aos pedreiros e começou pela
porta. Dois anos andaram a picar! Cada uma daquelas engenhocas mais pequenas
que vossemecê ali vê, levava duas semanas a fazer. Há ali pedra que veio lá da
capital, e, posta ali de mão-de-obra, custou para riba de dois mil cruzados. Lá
estão os assentos no caderno: podem-se ver.
Acabou-se a
porta, e alargou-se metade da casa, que pegava à outra por uma varanda. O
palácio havia de romper por ali fora, e depois lá adiante fazer um cotovelo, e
desandar pela outra metade. A pedra estava toda cortada na serra e picada; o
tabuado já estava em rimas; a ferragem já tinha vindo de toda a parte do mundo;
eis senão quando, meu tio morre de um dia pró outro! Assim que os barbeiros lhe
disseram que tratasse da sua alma, meu tio chamou minha mãe e meu pai, e disse
já com a morte na garganta: — É chegada a minha hora. Aí vos ficam muitos mil
cruzados: meu afilhado Vicente vos dirá onde eu tenho enterrado o dinheiro, que
escondi com medo dos ladrões. Recomendo-vos que trateis sempre do padre Vicente
como se ele fosse vosso filho. Se ele quiser voltar ao Brasil, deixai-o ir, que
ele tem de seu com que viver onde quiser. Recomendo-vos que acabeis a casa. O
mestre das obras sabe a minha ideia. Na capela que se há de fazer, mandareis
enterrar os meus ossos e escrever na pedra o meu nome, e a era do meu
nascimento e fim. Mandai dizer por minha alma oitocentas missas de esmola de
cento e vinte. — Pouco mais disse, e fechou os olhos, abraçando-se no padre Vicente,
chamando-lhe filho. Veja vossemecê! Era filho dele, o mulato! Que lhe parece?
— Parece-me
também que seria filho.
— Deus perdoe
a meu tio!... Era de casta! Vamos ao caso. Enterrou-se o defunto, e fez-se-lhe
um enterro de quarenta padres, e armou-se a igreja. Minha mãe pediu dinheiro
para os gastos ao padre Vicente, e ele foi à adega, esteve lá um grande pedaço,
e voltou com seis moedas de ouro em cruz. Logo meu pai farejou que o dinheirame
grosso estava debaixo de alguma cuba: mas não disse nada até ver, e atrigava-se
de falar nisso enquanto o corpo do defunto estivesse quente. Minha mãe bem lhe
dizia: — Toma conta do dinheiro, homem, — E meu pai que era um bom serás, dizia: — Ó mulher, deixa lá
teu sobrinho: ele o trará.
O padre dormia
no sobrado da adega. Uma manhã ao outro dia do enterro, era já tarde e ele não
aparecia. Trepou-se-lhe à porta, e ele nem por burro nem por albarda. — O homem
deu-lhe alguma! — disse meu pai. Deu não deu, pr’aqui pr’ali, arrombe-se não se
arrombe, cerca tem mão, às duas por três vem um ferro de monte, e foi a porta
dentro. Estava vossemecê lá na cama? nem ele. — Querem vocês ver que ele foi à
vila e pernoitou por lá? — disse meu pai; e, nisto, olha, e vê aberto o alçapão
que dá para a adega.
Vai a baixo:
abre a porta; mete-se por trás das cubas e das pipas, e acha-se uma cova à
guisa de caixote com umas tabuinhas por dentro, e uma tampa de loiça ali para
um lado. Meu pai deu um grito, e barregou: — O dinheiro foi-se mulher! — E minha
mãe pega a chorar, e tem-te não caias, faltou-lhe o fôlego, e estendeu-se naquele
chão como morta!
Acudiu o povo
a saber o que era, e meu pai estava entalado que não dizia uma nem duas! Afinal
de contas, meu amiguinho, o padre Vicente roubara o dinheiro!
Meu pai foi
logo queixar-se ao juiz pedâneo e a todos os governos da comarca. Todos à uma
lhe disseram que soubesse onde estava o ladrão, que eles o iriam prender. Onde
estaria ele se bem corresse!
O grande caso
é que os pedreiros foram-se logo embora, porque a nossa lavoira não dava para
nada, e ficou assim a porta, e ficamos com meia casa alagada; e só depois que
eu casei com minha mulher, que trouxe doze contos, é que eu pude ir erguendo
aos pedaços casa que nos cobrisse. Ora aqui tem vossemecê.
— E do padre Vicente
nunca mais soube notícias? — perguntei.
— A esse
respeito não sei que lhe diga para não errar; mas aqui há dois anos apareceu
nestas serras um romeiro que vinha da Terra Santa, e ia para Santiago de Compostela.
Não pedia nada: sentava-se à porta dos lavradores; se lhe davam alguma tigela
de caldo, comia; se lhe não davam nada, molhava côdeas em água, e comia-as. Ele
era assim a modo de anegriscado, e os velhos de Bragadas começaram a espalhar
que ele era o padre Vicente, que andava a fazer penitência.
O romeiro foi
à sua vida por esse Barroso fora; e eu tirei-me dos meus cuidados e fui dar
comigo em Montalegre, onde ele andava. Enfitei-me bem nele, e, a falar-lhe a
verdade, o velho deu-me ares do outro; mas a coisa já lá ia há mais de sessenta
anos, como havia eu conhecê-lo? Quer sim quer não, fui-me ao pelingrino, e disse-lhe: “Vós donde
sois?” E vai ele respondeu-me: “Não tenho Pátria: sou pó; o pó é do vento.” Fiquei
como o Outro que diz, sem pinga de sangue, que ele fazia uma cara, e punha os
olhos no céu, que era mesmo de um homem se estarrecer!
E não lhe disse mais nada.
Dali a meses
tornou o pobre a pedir em Bragadas, e outra vez o povo a dizer que era o padre
Vicente. O rapazio perguntava-lhe se era o padre Vicente, e ele punha os olhos
na terra, e dizia: “Sou pó; o pó é do vento.”
— Seria ele?!
— atalhei eu quase convencido.
— Não vou
jurá-lo; mas a verdade é que ele adoeceu nesta aldeia, e uma noite saiu de um
palheiro onde dormia, e foi morrer à porta da minha adega.
— Não há
dúvida nenhuma que era ele — acudi eu.
— Pois sim;
mas um brasileiro do Arco disse-me que o padre Vicente Carneiro, ainda há doze
anos, era bispo numa cidade dos Brasis.
— Sim?!
— É verdade.
— Nada! o
padre Vicente era o peregrino que veio aqui rematar a sua atribulada penitência
— redargui, agarrado à poesia fúnebre do lance.
— Será isso,
será; mas então de quem é a alma que anda na adega?
— Pois anda lá
uma alma?
— Ainda não
lho tinha dito?! Ninguém lá entra, assim que é noite. Ouve-se remexer dinheiro,
e arrastar ferros, e dar gemidos. Já lá têm ido padres, requerer a alma e fazer
as rezas; mas e tempo perdido. Se não é a alma penada do padre Vicente, é a de
meu tio, Deus lhe perdoe!... Vamos almoçar, que já tenho a boca seca...
Almocei e fui
às trutas.
À beira do rio
Beça cismei muito nas almas dos padres Domingos e Vicente, e confesso que me
pus a caminho, enquanto era dia, com medo de encontrá-las ambas, ou pelo menos
uma das almas.
Pensando neste
caso vinte e dois anos depois, de mim para mim tenho que o padre Vicente não
era o peregrino que morreu à porta da adega do senhor João Barroso. O padre
inquestionavelmente morreu bispo. Se morreu em cheiro de santidade, não ouso
asseverá-lo sem ler os necrológios. Vou averiguar isso.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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