É longa a lista das suas obras e desde a fase
nevoenta dos livros de estudo, combate e lançamento (o período das Cristalizações da morte às Horas tristes) até
à fase definitiva dos últimos lavores clássicos — que de documentos temes a
encarecer-lhe a personalidade e a destacá-lo como um grande e extremadíssimo poeta!
Dos seus livros o que mais estimo é o Anel
de Policrates — pois que é o que melhor casa a lição clássica à Beleza nova
— tal como a compreendeu e lançou, sem hesitações, arrojadamente, com grande
firmeza, como quem afronta a indiferença de uns, a surpresa de outros, a
malevolência de uma boa parte — cheio daquela fé que encontrou na religião da
Beleza — fim primeiro, senão único, da sua jornada.
A Moral saiu a princípio escandalizada dentre o nu
extravagante do mais das suas páginas. É que canta nelas os segredos da carne,
dando ao mundo da Sensualidade um âmbito até ele desconhecido.
Arrancou as balizas burguesas.
Nem rimou as futilidades madrigalescas dos passados
— nem enveredou pelas grosserias positivas
da musa contemporânea — a musa dos atalhos por lavar, musa que veste camisa
suja de estopa e serve as várias necessidades dos poetas que a cantam.
Não cabem nestas páginas grandes transcrições.
Mas não me furto a algumas dos livros de Eugênio
Castro para documentar a sua índole de poeta.
Sejam as primeiras do Anel de Policrates; e comecemos pelos conselhos de Anacreonte a Agamedes:
Quem se dispõe a amar o seu
caráter dispa!
O Amor embora seja uma rápida chispa
Que morre mal brilhou, tem duras exigências;
Porém, como é fugaz, bastam-lhe as aparências
Não mudes! Sê o que és no fundo da tua alma,
Mas p'ra alcançar de tua amada a verde palma
***
O Amor embora seja uma rápida chispa
Que morre mal brilhou, tem duras exigências;
Porém, como é fugaz, bastam-lhe as aparências
Não mudes! Sê o que és no fundo da tua alma,
Mas p'ra alcançar de tua amada a verde palma
***
Não receies mostrar-te, ó tu que amar desejas,
Não como és, mas como ela quer que sejas!
É religiosa a tua amada? Vai ao templo,
Consagra ofertas mil aos Deuses, sê o exemplo
No modo de seguir o antigo ritual.
Não como és, mas como ela quer que sejas!
É religiosa a tua amada? Vai ao templo,
Consagra ofertas mil aos Deuses, sê o exemplo
No modo de seguir o antigo ritual.
Aí está, num desprezo imenso pela convenção, bem
expresso o fim da posse da mulher. E mais adiante, em versos magníficos:
E tu és mais ingênuo ainda
Que um ramo de coral, cabecinha de vento,
Se exiges à mulher a força do talento
Deverás exigir a formosura aos sábios
Que importa a estupidez, se são frescos os lábios?
As maçãs em que tu cravas guloso os dentes,
Dize-me, essas maçãs são muito inteligentes?
Ora a maior diferença, amigo, que tu vês
Entre a moça e a maçã, é que uma tem dois pés
E a outra tem um só? Anticleia é formosa
E nova. Que mais queres? E parva e silenciosa?
Melhor! Sem hesitar, trata de convencê-la.
Hoje mesmo, sem falta, hás de falar com ela!
Que um ramo de coral, cabecinha de vento,
Se exiges à mulher a força do talento
Deverás exigir a formosura aos sábios
Que importa a estupidez, se são frescos os lábios?
As maçãs em que tu cravas guloso os dentes,
Dize-me, essas maçãs são muito inteligentes?
Ora a maior diferença, amigo, que tu vês
Entre a moça e a maçã, é que uma tem dois pés
E a outra tem um só? Anticleia é formosa
E nova. Que mais queres? E parva e silenciosa?
Melhor! Sem hesitar, trata de convencê-la.
Hoje mesmo, sem falta, hás de falar com ela!
Reparem naqueles versos:
Se
exiges à mulher a força do talento
Deverás exigir a formosura aos sábios.
Deverás exigir a formosura aos sábios.
Não valem aqueles outros de Baudelaire dirigidos à amante:
Sois charmante e tais-toi?...
Abro os livros de Eugênio de Castro para os mostrar
ao leitor, um tanto alheado do seu fim dirigente e sobretudo para lhes apontar
como o seu paganismo e índole pessimista se desentranham em versos cheios de
talento e graça onde a Beleza-ídolo sobressai e culmina.
E se somarmos a esta finalidade (a de um tal culto)
o estudo da cor, do ritmo, do equilíbrio do verso, do exotismo sensual que lhe
abraça toda a obra, teremos compreendido o processo mental da vida superior do
artista, incontestavelmente ressabiada dos modelos helênicos, embora atida
também aos nossos clássicos.
E quem o tem conversado de perto sabe bem como uns
e outros autores lhe são familiares, nomeadamente como estima Castilho pelo
colorido do termo, pelo som do verso — por todas as qualidades enfim que o mais
da gente desconhece e decerto ignorará enquanto o Sr. Teófilo Braga não for relegado
do Supremo Conselho da Crítica portuguesa — como um juiz faccioso e
perturbador. Oxalá a Política o entretenha de vez.
E claro que nos reportamos aos moldes clássicos no
que importa à forma. De resto há na sua obra (falo da de Eugênio de Castro) e é
o mais que lha contrasta, imaginação, espírito, graça, extravagâncias, coragem,
e, relevos que não são deste ou daquele; são dele.
Exprimem índole. São a razão da surpresa pública,
no fundo a causa do seu triunfo.
Transcrevo do Interlúnio
os versos Amores:
Judite, a loira e magra, que ora vive
Entre palmas e mirra, nas novenas;
Dulce, a dos peitos de hidromel e penas
Com quem tempestuosas noites tive;
Maria, a ingênua, a plácida e macia,
Ingênua como um pintassilgo,, e pura
Entre palmas e mirra, nas novenas;
Dulce, a dos peitos de hidromel e penas
Com quem tempestuosas noites tive;
Maria, a ingênua, a plácida e macia,
Ingênua como um pintassilgo,, e pura
Como um mês de Maria;
Lídia, a trigueira hostil, severa e dura,
E Fábia, a de olhos perturbantes, lassos,
Lídia, a trigueira hostil, severa e dura,
E Fábia, a de olhos perturbantes, lassos,
Fábia, cujos abraços
Me vestiam de aromas:
Todas adorei,
Todas me adoraram
E todas choraram
Quando as desprezei.
Aí está fixada com ousadia a versatilidade do gosto
na exploração de uma vida sensual que é nova, pelo menos em livros.
Podem os catecismos salientar em parangona, para
uso católico, que os inimigos da alma são três — o mundo, o diabo e a carne.
Mercê da última, Eugênio de Castro tem comércio com
aqueles potentados, e nós, os que vemos dos tais entendimentos, não temos força
para lhos castigar... Depois, francamente, se a alma é prejudicada com o uso e
patenteamento daquelas emoções — não o percebemos. Pelo contrário, consignamos
uma hipertrofia de alma em bem do poeta.
O amor é ainda função do temperamento. Cada um ama
como é. Bem que pese às cartilhas de todos os ritos.
Ainda mais arrojada é a poesia Hermafrodita do livro — Salomé
e outros poemas.
D'Hermes e d'Afrodite o filho esbelto e amado
De Salmacis oscula o corpo melodioso,
E a ninfa treme e enleia o moço deslumbrado,
Com um prazer que até chega a ser doloroso...
De Salmacis oscula o corpo melodioso,
E a ninfa treme e enleia o moço deslumbrado,
Com um prazer que até chega a ser doloroso...
Ela — dócil, a arfar, como, ao vento, as searas...
Ele — forte, a arquejar, como com cio, um touro...
O cabelo da ninfa inunda as duas caras,
E há beijos musicais sob essa chuva d'ouro...
Ele — forte, a arquejar, como com cio, um touro...
O cabelo da ninfa inunda as duas caras,
E há beijos musicais sob essa chuva d'ouro...
Num doido frenesi, entrar parecem querer
Ela — no corpo dele, ele— no corpo dela!
Choram, gemem, dão ais... e no auge do prazer
Começam a gritar para o céu que se estrela:
Ela — no corpo dele, ele— no corpo dela!
Choram, gemem, dão ais... e no auge do prazer
Começam a gritar para o céu que se estrela:
— Ó Deuses! atendei nossa súplica ardente:
Se é verdade que ouvis as vozes que vos chamam
Os nossos corações, fundi-os num somente,
Fundi num corpo só nossos corpos que se amam.
Se é verdade que ouvis as vozes que vos chamam
Os nossos corações, fundi-os num somente,
Fundi num corpo só nossos corpos que se amam.
Ao Olimpo chegou essa suplica louca,
E Zeus, o grande Zeus, cuja força é infinita,
As duas bocas transformou numa só boca
E dos dois corpos fez um só: Hermafrodita!
E Zeus, o grande Zeus, cuja força é infinita,
As duas bocas transformou numa só boca
E dos dois corpos fez um só: Hermafrodita!
Abstenho-me de transcrever a luta imensa desses
seres que juntando-se pretenderam somar parcelas de natureza diversa, criando
aspirações inconsumíveis.
Mas remeto o leitor para o livro de onde transcrevi
aqueles versos.
Essa luta, melhor direi os versos que a descrevem,
têm a forma lapidar que consagra os grandes poetas e lembram as ousadias
genialmente revolucionarias de G. d'Annunzio, como bem notou J. Costa. Como
quer que seja não me furto a transplantar o final deste capitula d'arte.
Que não vá o leitor abster-se de me fazer a
vontade, adquirindo a Salomé e outros
poemas... Finda assim:
Sem poder sofrer mais desespero tamanho,
Hermafrodita um dia enfim, crispando as mãos
Enforcou-se e morreu... mas do seu corpo estranho
Saíram, sempre hostis, os dois feros irmãos.
Hermafrodita um dia enfim, crispando as mãos
Enforcou-se e morreu... mas do seu corpo estranho
Saíram, sempre hostis, os dois feros irmãos.
Chovia... E procurando uma guarida calma,
Que os livrasse da chuva, uma torre ou uma gruta
Viram minh'alma aberta, entraram na minh'alma
E na minh'alma estão continuando a luta!
Que os livrasse da chuva, uma torre ou uma gruta
Viram minh'alma aberta, entraram na minh'alma
E na minh'alma estão continuando a luta!
Enfim podia ter-me abstido de transcrever tanto,
penteando a crítica segundo os modelos que por aí vejo, discreteando larga e
miudamente sobre o simbolismo do poeta,
o seu exotismo, a extravagância sensual, o decadentismo, influências estranhas,
preciosismo de palavra, harmonia do verso etc.
Preferi transcrevê-lo e fotografá-lo.
Dei-me a iluminista, encaixilhei alguns versos da
melhor colheita em prosa pintalgada e alusiva, demarquei-lhe os capítulos com
umas vinhetas de lavra e gosto próprios, anotei, aplaudi, sublinhei, e isto de
bom ânimo e melhor fé.
Que a crítica oficial
o entenda.
---
BENTO DE OLIVEIRA CARDOSO VILLA-MOURA
Vida Literária
e Política (1911)
Pesquisa e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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