A LÃ
No princípio,
Adão e Eva amanheceram nus, e estavam contentes, ao que parecia, com a singeleza
do seu trajar. Não está sobejamente averiguado se Adão e Eva anoiteceram
contentes, no primeiro dia da humanidade. O certo e sabido é que se vestiram de
folhagem de figueira, logo que a serpente os embaiu a comerem do fruto
proibido. Devemos disso inferir que o pudor foi consequência do pecado; e que,
a não existir o pecado, esta bonita coisa, que se chama pudor, faltaria à
beleza da mulher; e os poetas, e romancistas, e moralistas desconheceriam um
manancial de graciosos discursos, sermões, e madrigais, que correm impressos
acerca do pudor. Ainda assim, melhor fora que Eva não desse trela à serpente, e
que a virtude ingênita da inocência nos deixasse andar, sem vergonhas do mundo,
quais saímos das mãos do Criador.
Ao
crime da desobediência, seguiu-se o do homicídio, praticado por Caim. O homem,
que matou o homem, não sentiu repugnância em matar os bichos, e particularmente
os carneiros. Com a morte violenta dos carneiros, veio a reforma no vestido. Começaram
os homens a vestir-se com as peles das suas vítimas, e não foi sem razão,
atendendo que, no Outono, se despegavam secas as folhas das árvores e o pudor
ficava em transes até à Primavera.
Passou o
carneiro a ser civilizado na companhia do homem, e o homem reconheceu a
conveniência de tosquiar o carneiro anualmente, em vez de o matar. Os animais
de lã branca eram os preferidos. Consta da Bíblia que Labão deu a Jacó, para
apascentá-lo, o rebanho dos lanígeros apintalados, e a seus filhos encarregou o
pastorearem o rebanho de felpo negro, que dispensa tinturaria, e o rebanho de
felpo branco estreme.
Não se sabe
quem inventou a fiação. Dizem os historiadores que Penélope e Lucrécia fiavam;
mas a primeira no que primou foi na tecelagem. Na Grécia a fiação chegou a
subido aperfeiçoamento.
Os carneiros
tiveram grande consideração em Roma. Os censores legislaram prêmios aos
cultores da lã e coimas onerosas aos proprietários descuidados do melhoramento
dos carneiros, cujas raças se apuravam em Tarento. Os carneiros, chamados merinos, originários de Espanha, eram os
mais preciosos. A antiguidade não conheceu outro estofo, e com ele fabricavam
as túnicas recamadas de enfeites.
Deve-se ao
cuidado dos Mouros, dominadores da Península, a raça mais avantajada de todas,
a do carneiro merino. Os primeiros que apareceram em França foram de Espanha em
1757; e em 1775 pôde obtê-los a Áustria. A Espanha, em melhores tempos, até com
os seus carneiros mandava a civilização aos centros dela.
A Inglaterra
tem lá consigo este provérbio: “O carneiro é o termômetro da prosperidade de um
povo.” Ora vejam onde está a prosperidade! E nós, os Portugueses, temos muito
mais barões que carneiros! E, depois que temos rebanhos de barões, pedimos
frades; e de carneiros apenas se lembram alguma vez os legisladores para
lançarem contribuições aos lavradores que os têm; os quais lavradores, para não
pagarem o imposto, comem os carneiros. E como, a passo igual, minguam os
carneiros e crescem os barões, pode afoitamente, e sem receio de paradoxo,
dizer-se que o barão mata o carneiro, assim como isto mata aquilo, no dizer do mestre Victor Hugo.
Vejamos como a
Inglaterra se constituiu rainha do Universo, que conquistou com o carneiro.
Diz David Law:
“Quando, em 1778, uma leva de condenados ingleses foi transportada a Botany Bay para coadjuvar os colonos
de lã e estabelecer rebanhos permanentes, passaram para ali de Bengala
carneiros de raça pequena, de pelo hirto, como eles são naquela parte da Índia.
Notou-se logo que estes anãzados animais se melhoravam a olhos vistos com a
mudança do clima e pasto. A lã desbastou-se, passando a ser brando felpo,
conquanto não fosse mais fino. Doze anos depois desta auspiciosa experiência, a
colônia tinha seis mil carneiros, os quais, prolificando com os de Espanha,
vieram a dar lã quase igual à dos merinos”.
Este exemplo,
com outros análogos, explica a prosperidade da Inglaterra, e tudo vem
argumentando a favor do carneiro como termômetro para avaliar a riqueza de uma
nação.
É muito para
louvar a Deus a suscetibilidade de aperfeiçoarem-se, que ele deu a alguns animais
destituídos de razão, como parece que é o carneiro, segundo a opinião dos
naturalistas. Com a espécie humana foi mais esquiva a liberalidade do Criador.
Entre nós, e
nestes últimos trinta anos, vão-se as raças mesclando e procriando; mas a
progênie, no máximo das vezes, sai ou mais mazorra que os progenitores, ou mais
defecada e entanguida. O carneiro lãzudo de Botany Bay melhorou; o lãzudo
racional transmite à prole o canhestro da sua figura e do seu espírito; tudo,
pelos modos, feito à semelhança de Deus. O carneiro, pois, é muito mais
progressista do que o homem; e é-o porque não cria teoria de progressos, e se
deixa ir impassivelmente à vontade da Providência, que o fez carneiro; e não é
como o homem, que ousa sujeitar aos moldes de suas fantasias o destino da
humanidade, delineado na mente do Criador.
Tornando à
parte suculenta e erudita deste artigo, darei notícias acerca do algodão, as
quais andei escavando no pó das bibliotecas, para afinal de tudo me sair com um
artigo, que me há de carear o desamorável epíteto de erudito, que em linguagem
de damas literatas e peraltas, formados em Alexandre Dumas, é sinônimo de
maçador.
Heródoto...
Heródoto! Que nome! Só o escrevê-lo é uma ejaculação de sabedoria! É este um
nome que dá de quem o escreve a severa imagem de um doutor em cânones, com
barrete de troçal, e a pitada do meio-grosso engatilhada ao nariz.
Heródoto, que
floresceu 445 anos antes da vinda de Cristo, diz que há na Índia umas árvores
silvestres, que frutificam uma lã mais bela e fina que a das reses, da qual os
indígenas se vestem.
Virgílio, n’As Geórgicas, também menciona a árvore
do algodão. Estrabo viu telas de algodão, matizadas de flores pintadas. Plínio,
Teofrasto, Arriano, e outros excruciantes cáusticos da paciência humana, dizem
todos que há árvores que produzem algodão, coisa que eu não contesto. A
propósito do algodão, vou dar-lhes um romance, intitulado...
***
O ALGODÃO
Era no baile natalício do barão de***. Festejava ele os anos de sua
formosa filha Etelvina, que se morria de amores de um jovem que tinha
diferentes gravatas, várias bengalinhas, e um pé muito pequeno, cujo calcanhar
assentava num supedâneo, quatro dedos acima do botão da bota. Chamava-se
Porfírio, e era cético e rico.
Etelvina
queria-lhe da alma, e escrevia-lhe pela posta interna cartas, que eram modelo,
afora a ortografia. E ele, o cético, para dizer que o era, escrevia “cinto que estou cético”. Corriam parelhas em ortografia, e como parelha que eram,
escouceavam a prosódia.
Estavam, pois,
no baile.
Porfírio
entrara, e, feitos os cumprimentos, foi fumar. Voltou à sala, e disse a Etelvina,
com fátuo sorriso de quem desfruta o próximo:
— Está hoje
muito bonita; o seu seio é de jaspe.
E, quando isto
dizia, ouviu uma voz de um grupo, que o escutava, acrescentar:
— E de algodão.
Porfírio
encarou no homem que tal dissera; mediu-o de alto a baixo, e murmurou:
— Retire a
palavra.
— O algodão?
— Sim, o
algodão.
— Não retiro,
cavalheiro, porque eu sou o proprietário do peito daquela fada.
— Mente! —
replicou Porfírio.
— Pois bem: as
nossas espadas abrirão bocas mais verdadeiras.
***
No dia
seguinte, quatro padrinhos acordaram que os bravos se degolassem no campo da honra, e depois se
dessem mútuas explicações acerca do
algodão. Porfírio arremeteu furioso contra o adversário, e estragou-lhe o punho da manga direita da
camisa. O proprietário soi-disant do
peito de Etelvina cortou uma orelha da gravata azul-celeste de Porfírio.
Os padrinhos
lavraram e assinaram a seguinte ata do duelo:
“Considerando
que os cavalheiros Porfírio de tal e Felisberto de tal se houveram
corajosamente no pleito de suas honras;
Considerando
que o motivo da sua discórdia assentava numa alusão a uma dama, que, no
entender de um, tinha peito de jaspe, e, no do outro, de algodão;
Considerando
que o cavalheiro Felisberto ofendera o cavalheiro Porfírio, denominando-se proprietário
do peito da dama;
Considerando
que efetivamente, depois do duelo e mútuo desagravo, o senhor Felisberto tirou
do fundo de um chapéu umas pastas convexas de algodão que disse serem sua propriedade,
havida por consentimento da dama, que ele amara com acrisolada ternura;
Considerando
mais que a honra do peito de uma senhora não pode estar à mercê de um equívoco;
Os dois
cavalheiros, ouvidos os padrinhos, retiraram as expressões com que suas
dignidades estavam feridas, e resolveram mandar à dama o algodão sobreposto a
uma empada de pombos em forma de coração.”
Segue as
assinaturas dos padrinhos.
***
ETELVINA COMEU O PASTEL (CONCLUSÃO)
Porfírio, passando ao escurecer debaixo das janelas de Etelvina, recebeu uma baldada de água pela cabeça, e ficou constipado, oito dias de cama.
Quando se
levantou, viu nos jornais a notícia do casamento de Felisberto com Etelvina. Tirou
uma cópia da ata do duelo, e mandou-a ao noivo.
O noivo, nas costas do traslado, que devolveu pelo
mesmo portador, escreveu o seguinte:
“Não seja tolo.”
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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