CÉSAR
OU JOÃO FERNANDES?
I - CÉSAR NA FOZ
Era César um
quartanista de Matemática, moço mui bem posto, com uma testa significativa de
talento, olhos grandes, negros e cismadores, bigode turco, lustrosos cabelos,
luneta e outras muitas excelências fisionômicas muito de impressionarem damas.
Contava César
vinte e quatro anos em 1856; e, nesse ano, a vinte e dois de agosto, pelas seis
horas da tarde, estava ele no cais de Carreiros, em São João da Foz.
Sentado na
rocha mais contígua ao mar, com a caçadeira a um lado, anediava a cabeça de Diana.
Diana era uma cadela perdigueira, que, em desprezo da mitologia, recebera o
nome da deusa venatória.
Nesta ocasião,
o caçador não pensava na mitologia, nem afagava conscientemente a meiga cadela.
Devaneava em enlevos amorosos, ia com olhos e espírito por esses mares e céus
além, vendo e ouvindo a mística visão e o místico salmear dos que amam e cismam
à beira-mar, se céu, mar, alma e ouvidos são os daquela idade. Aos vinte e
quatro anos, todo o homem recebe do Criador a mercê de lhe mostrar a formosura
da natureza, como ela seria sempre, se não fossem as paixões más; porque, aos
vinte e quatro anos, todas as paixões são afetuosas e boas. Quem então as sente
infames está a transformar-se de homem em fera.
Ora, César
tinha visto, oito dias antes, na Cantareira, uma menina de vinte anos, mais que
muito bela, iluminada da santa auréola da inocência, que é a poesia dos anjos,
e da meiguice afável, que é a poesia dos homens. Também Clotilde vira César
embelezado nela, com aquele ar de assombro, que a formosura incute, assombro
que seria estúpido, se não fosse sublime.
Deste verem-se
a procurarem ver-se de novo não mediou a mais leve operação do raciocínio. A
razão, como entidade inútil naquele subitâneo ferver de duas almas, agachou-se
a um canto com medo de ser atropelada pelo coração. Tenho para mim que esta
importante coisa, chamada razão, com,
respeito aos incêndios do amor, é uma espécie de bomba que chega, quando o
melhor da casa tem sido devorado pelas chamas.
Veio, talvez
intempestiva a figura analógica no presente caso: Clotilde e César não tinham
ultrapassado os limites da honestidade, embora dessem na vista de algumas
famílias com o seu fitarem-se de um modo tão penetrativo. Assim mesmo, nem a
razão, nem a honestidade tinham de que malsinar os mudos colóquios dos quatro
mais peregrinos olhos, que ainda conversaram na Cantareira, salvando os das
pessoas que fazem favor de me ler.
Como
anoitecesse, e a mãe de Clotilde espirrasse, o pai da menina espirrou também, e
disse que a viração os estava constipando. Clotilde observou meigamente que a
noite estava calmosa e sossegada: porém a encantarroada senhora espirrou
novamente, e não houve remédio senão recolherem-se.
César seguiu
de longe com infantil respeito e susto a família até àquela parte mais elevada
da Foz, que chamam Monte. Viu-a
entrar em casa, animou-se a convizinhar da porta, que se fechara com aquele
estrondo, que é uma rija pancada em peitos de amantes, e por ali se deteve
alguns minutos, contemplando as janelas, e dizendo entre si: “Ou me não ama, ou
me aparece por detrás das vidraças, quando mais não seja.”
Este monólogo
não me parece tão lírico nem puxado de linguagem quanto era de esperar. Eu
achava muito mais interessante que César começasse o seu monólogo por estas ou
equivalentes palavras exclamativas: “Ó teto abençoado, que cobres a mansão da
minha amada! Ó receptáculo de um anjo! Ó pedaço do céu povoado por ela...” Et
caetera.
Devia
ser assim, e creio até que algumas vezes terá sucedido dizerem amantes coisas
muito mais peitorais diante da pedra bruta que os separa do objeto amado; mas,
a darem-se fatos semelhantes, isto é, a apóstrofe do homem à pedra, eu ficarei
propenso a crer que a inteligência da pedra tem razão para rir da inteligência
do homem. O mais ordinário e corrente é não dizer ninguém semelhantes
palavreados em casos análogos; e, portanto, César não disse disparate nenhum,
pelo qual desde já o encartemos na repartição dos namorados alarves.
O sucesso diz
em crédito do moço. Dali a pouco, abriu-se subtilmente uma janela, rangeram
gomas, ciciaram sedas, entre a compressão das mal abertas portadas, e Clotilde
encostou-se ao banzo da varanda.
Neste ponto, César
deu um testemunho indelével de seu puríssimo amor: é que não avançou um passo
da sua postura estatuária, não proferiu um monossílabo, nem acreditou inventada
a palavra própria da sua situação! Isto, leitor, é que é amar; isto é que é
poesia. Creia vossa excelência que, se ele tivesse dito entre si: “Ó teto
abençoado, que cobres a mansão da minha amada!”, também depois exclamaria umas parvoiçadas
muito mais graúdas, com as quais, meninas incautas se deixam imbelicar, exceto
aquelas que leram, ao saírem do colégio, histórias de tolos, e desde logo
formaram em seu espírito uma espécie de estalão para lhes medirem a altura,
quando a desgraça lhos deparar ao correr da vida.
A elas, e a
nós, e a todos os que nos lerem, livre Deus de tolos, tolos à força de estilo,
que são os mais daninhos herpes do corpo social.
Enfiando o
conto, convém saber que Clotilde, passados quatro minutos, saiu da janela,
fechou-a de mansinho, e foi dizendo consigo: “Que estará ele a fazer ali!? Não
se mexeu!... Será ele outro, que tem por aqui namoro?!...”
Esta incerteza
incomodou-a. Deteve-se instantes ao pé da mãe, que dialogava em espirros com o
pai, e voltou à sala, a espreitar por detrás das vidraças. Lá estava ainda
encostado ao cunhal da casa fronteira o moço dos olhos lânguidos. Clotilde
reconheceu-lhe os olhos ao clarão de um fósforo com que César acendia o
charuto, e disse, com alvoroço: “E o mesmo!” Foi buscar um castiçal com que,
para ser vista, alumiou a sala; e encostou-se à vidraça.
O catarro da
família cresceu de ponto. Os enfermos resolveram recolher mais cedo que o
costume, e tomar chá de tília e laranjeira na cama. Clotilde recebeu a louvável
ordem de também recolher-se antes, e esperar o chá no seu quarto. Ao sair da
sala, a menina apagou o castiçal junto da janela. Era um sinal de ausência, e
mais nada; César, porém, imaginativo e cismador, entendeu que o apagar-se
subitamente a luz significava o sumir-se a estrela da sua vida.
Por horas
altas daquela noite, quando ele se julgava sozinho com a Lua nos infinitos
espaços da criação, falava com a Lua — vítima obrigada de todos os amantes
infelizes e maçadores. Alvoreceu-lhe o dia nos pinhais de Nabogildel.
Dali voltou ao
seu quarto no Hotel da Boa Vista. Escaldou
o sistema nervoso com algumas chávenas de café, e foi para a praia do Caneiro.
Sentou-se nos fraguedos a tragar a frescura úmida das ondas, que o borrifavam.
Fumou charutos péssimos até sentir as ânsias do vômito. Ergueu-se azoado. Foi
duas vezes a Carreiros, outras duas a casa. Encontrou amigos, que o saudaram, e
ele não os viu. Tateava o pulso, e dizia-se: “cento e vinte pulsações!” Levava
as mãos à fronte, e murmurava: “Uma paixão!”
Uma paixão deveras!
Vai agora
dizer-se quem eram os pais da menina.
***
II - QUEM ERAM OS PAIS DA MENINA
A menina era
filha do comendador Inácio José Leituga e de sua mulher a senhora D. Caetana Emília,
residentes no concelho de Cinfães, pessoas abastadas, bons vizinhos, e de mui
sãos costumes e notória cristandade.
Leituga, na
mocidade, alinhavara-se mal com a sua vida.
O pai,
serrador de madeira, quisera metê-lo ao ofício; mas o moço, empurrado a
melhores destinos, fugiu para o Porto e por aqui andou em apuros desde 1823 até
1828, umas vezes empregado como adjunto ao cobrador das rendas dos frades da Serra,
outras como vigia de armazéns em Vila Nova, e ultimamente, meses antes da
tentativa revolucionária de 1828, entrara ele como guarda-barreira em Quebrantões.
Se o senhor Inácio,
naquele tempo, era liberal, e já do fundo da sua obscuridade saudava a aurora
da civilização, não sei, nem ele mesmo sabe dizer o que sentia a respeito dos
direitos do homem. O que Leituga queria era melhorar de posição, ainda que para
isso a posição de algum seu amigo piorasse: desejo este que não deve sujar a
reputação do senhor Inácio, num tempo em que a família portuguesa, dividida em
duas hostes inimigas, se ufanava em mutuamente se aniquilar, com o fim um
pouquinho imoral de ficar a hoste vencedora com o espólio da hoste vencida. Isto
é o que se figura à primeira vista; porém, quem souber alguma coisa de
filosofia da história, e dos arcanos em que a civilização esconde o segredo das
suas operações, desvia os olhos do espetáculo feio das nossas lutas fratricidas
e remonta o espírito a certas alturas. Ora, a guerra, a orfandade, a viuvez, o
sangue e a penúria são bugiarias que não impressionam as almas que lá das tais
alturas da filosofia olham para isto, que se chama humanidade.
O senhor Leituga
invejava o lugar do guarda-fiscal de Quebrantões: inveja, que já não pertence à
dos sete pecados mortais, por ser uma
inveja do emprego do amigo, coisa tão congenial da natureza humana, que os
confessores já se abstêm de perguntar por isso. O guarda-fiscal era realista
ferrenho. Inácio, com um olho no lugar do vizinho e outro na regeneração do
país, fez-se liberal ferrenho também. Romperam-se as hostilidades no campo dos
princípios, e dispararam na consequência final de se amolgarem os narizes os
dois políticos. Inácio, acusado ao chefe, foi despedido; e, meses depois,
emigrou para Espanha, passou a Inglaterra, e de lá à Terceira, donde veio
expedicionário e já furriel.
Terminada a
guerra, foi Inácio Leituga a Lisboa com o invariável propósito de requerer o
lugar do vigia de Quebrantões. Melhor fada o esperava. Hospedara-se ele numa
taberna da Ribeira Velha, denominada a Estalagem
da Forçureira. A forçureira era uma mulher redonda e suja, que tinha uma
filha esguia e limpa. Nunca tão desconcertada a natureza andara na
dissemelhança de uma criatura desentranhada de outra criatura!
Inácio,
benquisto da estalajadeira, entrou com os olhos no coração intacto da moça e
viu-se amado. Sem averiguar dos teres e haveres de Caetana, pediu-a à mãe. A
judiciosa velha, considerando os perigos a que estava sujeita uma rapariga
bonita em época de tamanha desmoralização, aceitou a proposta, com a cláusula
de que os casados ficariam em casa e o genro despiria a farda de 1º sargento
para se entregar ao tráfego do negócio. Leituga conformou-se da melhor vontade,
e desistiu do emprego, que lhe fora dado na alfândega do Porto.
Em 1836 morreu
a forçureira, momentos depois de ter revelado à filha onde tinha o dinheiro,
ganhado em cinquenta anos.
Inácio nunca
tinha visto nem sonhado tamanho cabedal em ouro! Passava de cem mil cruzados o
tesouro acumulado.
De comum
acordo os herdeiros trespassaram a taberna e cuidaram de empregar mais
sossegada e limpamente o seu capital.
Caetana era
dócil, modesta, boa esposa, desafeiçoada a festas, ignorante de todos os
chamados prazeres da vida, amiga de dormir e de comer. Além disto, o seu grande
amor era uma filhinha, nascida em 1836, o botão desta florentíssima Clotilde
que, vinte anos depois nos vem espantar na Cantareira, com as suas graças aristocráticas,
de modo que o leitor fica sinceramente persuadido de que a aristocracia de
sangue tem umas graças especiais, infalíveis e intransmissíveis às raças
plebeias. A maior parte das coisas humanas decidimo-las e definimo-las com
tanta crítica e segurança como aconteceu com a fidalguia de Clotilde, inferida
do adelgaçamento da cintura e mimo do pé.
Voltando a
1836, Inácio resolveu tornar para a terra do seu nascimento, comprar propriedades,
edificar uma boa casa e melhorar a sorte da parentela pobre. Caetana gostou da
ideia e começou desde logo a engordar com a perspectiva de comer muita castanha
e chouriços de sangue, comestíveis de sua particular predileção.
Realizou Leituga
o seu programa, com muita felicidade. Estavam em praça dois conventos de frades
entre Douro e Minho, os quais, à falta de lançadores ele comprou ao desbarato.
De um convento, reformado e afeiçoado profanamente, à vontade de seu dono, fez
Leituga a sua residência pomposa, vastíssima e tamanha que D. Caetana tinha
medo de andar em casa, e via fantasmas de frades a cada canto. Inácio tinha
ilustração de sobra para espancar fantasmas e para convencer sua mulher de que
os frades eram tão maus sujeitos que nem fantasticamente podiam aparecer a
ninguém. D. Caetana, convencida, continuou a comer, a dormir, a encher e a
doidejar de amores da sua Clotilde.
Dobrou em doze
anos a fortuna do senhor Inácio; e a consideração pública no seu concelho tocou
o apogeu. Foi juiz ordinário em 1841, administrador em 1844, presidente da Câmara
em 1845, teve votos para representante do povo em 1849, foi comendador da Conceição
em 1852, e eleito deputado por uma maioria, rara na história do nosso sistema
representativo em 1854.
A sua
individualidade no Parlamento acreditou-se pela modéstia e sisudeza do silêncio.
O Ministério considerava-o bruto e homem de bem — qualidades excelentes, que,
se acertam de se ajuntarem, levam um homem onde ele quer ir, e levam com o
mesmo sujeito toda a gente, que ele quiser levar consigo.
O comendador Leituga,
com admirável desprendimento e desinteresse de obséquios dos ministros,
conseguiu empregar uns dezenove parentes, que tinha, em dezenove lugares. Virtude
rara! Porque há deputados que fazem despachar dezenove parentes para trinta e
oito lugares.
Clotilde e sua
mãe acompanharam a Lisboa o deputado, D. Caetana queria ver a casa onde nasceu,
e espreitar o recanto da taberna em que sua saudosa mãe costumava provar as
forçuras e fazer as contas com os fregueses sentada num mocho vermelho. O
comendador, porém, concedendo a sua mulher o prazer inocente de ir contemplar a
taberna, proibiu-a de se acompanhar da filha, cujos espíritos atiravam voo para
coisas mais levantadas, e o pai, sem saber como, nem porquê, simpatizava com a
condição afidalgada da menina.
Como é de crer,
Clotilde não passou despressentida na capital. Leituga tinha fama de rico, e a
filha, só de per si, era um tesouro, maiormente para os bons apreciadores de
uns olhos negros, de uns cabelos de ébano, de uns lábios e dentes cujo coral e
marfim estalaram as consoantes dos cardumes de poetas, que se perfilavam ao
perpassar a bela provinciana.
Honra seja
feita aos poetas do Chiado! Cantaram-na, em trovas imortais, com raro desapego:
que o poeta, digno deste nome, canta a mulher como canta a Lua, o oceano e
outras coisas grandes: canta, adora, enleva-se no êxtase do grandioso, e não
pede ao Criador a Lua, nem aos pais das meninas que canta, as meninas cantadas.
Ser grande é isto! A poesia que não for isto é... a poesia que fazem todos os
poetas.
***
III - CASO NOVO!
Consta do
capítulo primeiro deste aranzel que o pensativo Castro estava em Carreiros,
olhando contra o mar, oito dias depois que vira Clotilde.
Neste espaço
de tempo, o acadêmico soubera que a menina era rica, e o pai ambicioso de um
genro titular. Enquanto à qualidade de ser rica, nem por isso o desconsolou a
informação: que as almas mais refinadas em poesia — almas empestadas e perdidas
se não tomam tento no corpo — costumam conformar-se e resignar-se, quando a
sorte as une a outras almas aleijadas com o peso de algumas dezenas de contos
de réis. Porém, a cláusula do título desanimou-o, esfriando-lhe aquela ardileza
temerária que, aos vinte e quatro anos, impele o mancebo a afrontar
dificuldades.
Andou o moço
cismático a esquadrinhar que entrada lhe ofereceria a natureza das coisas para
a classe dos titulares. Via ele muita gente esquisita com título, e pasmava de
sua própria insuficiência para, na volta do correio, mandar vir de Lisboa um
diploma. Parece que o amor o tinha algum tanto embrutecido! O homem, se tivesse
normal o espírito, havia de ver que os títulos, quando não distinguem à
primeira vista o merecimento do agraciado, mandam presumir que o merecimento
existe. “Que fez aquele homem para ser visconde?” — usam perguntar os
detratores e os ociosos. A sã razão responde que tal visconde tinha virtudes
cívicas de que não fez praça diante do público. Os altos poderes, bem que ele
modestamente escondesse o seu civismo, descobriram-no e agaloaram-no. Aí está porque
é visconde a pessoa que a gente não sabe dizer porque o é. Os governos é que
sabem. Quando a geração atual tiver passado, os curiosos da geração vindoura
irão às secretarias averiguar o porquê de tanta fidalguia criada em tempo de
tamanha paz e de vida tão ramerraneira, aprosada e plebeia. Bom é que averigúem
para crédito dos nobilitados e dos nobilitantes. Então se há de ver, em
recatada sombra, se a traça ou a manteiga os não tiver estragado, os
requerimentos documentados, as justificações indubitáveis dos que, para
incitamento de si mesmo e lustre da Nação, quiseram sair da mediania de seu
nascimento. E assim o século vindouro fará justiça ao século ido, e aos homens
que vão com ele a uma certa e benemérita imortalidade.
Lastimava-se o
acadêmico de não ser titular. O coração a içar-se para a alta poesia e
superfina natureza do amor, e os preconceitos sociais a puxarem-no para o
vilíssimo barro. Que absurdo encontro de extremos! César, em ocasião de tanto
espírito e desapego, desejava ser o que dias antes metia a riso na pessoa do
barão da Penajoia, pai de um lorpa, seu vizinho, chamado João Fernandes, de
quem faremos crônica logo adiante.
Em menos
sensatas cogitações se engolfava César, quando enxergou duas damas, que os
olhos mal discriminavam, mas o coração logo farejara com aquele nariz de
coração namorado, nariz digno de um volume à conta dele, dele nariz, digo eu, e
não me despeço de escrever eu o volume, e o leitor, se ama ou amou, tem de
ficar pasmado quando souber o nariz do coração que teve ou tem.
Vinham as
damas a apontar na saída da Foz para Carreiros, e eram Clotilde e sua mãe. Ergueu-se
César e fitou a orelha da audição interior, orelha que merece ser descrita
noutro volume, para emparelhar com o volume do nariz, obra de que também eu me
encarrego, e dos mais que vierem a propósito, de modo que espero brindar o
público respeitável com a descrição anatômica da segunda pessoa que cada homem
namorado encerra em si.
Agora, vai César
cogitando e ideando empresas arriscadas, feitos façanhudos, sucessos
extraordinários, com os quais a sua boa estrela lhe azasse ocasião de cativar o
coração de Clotilde e as simpatias do comendador Leituga e da consorte. Lembrou-se
do Antony de Alexandre Dumas sustendo
o ímpeto da desenfreada parelha, e escalavrado pela lança da carruagem em que
se ia desmaiada de terror a querida da sua alma. Lembrou-lhe o Pedro do drama do Sr. Mendes Leal
salvando das lavaredas a filha orgulhosa do fidalgo. Lembrou-se das eras
felizes em que da bravura do campeador de castelãs resultava a conquista da
menina refece, ou a perda da vida na passagem defesa, perda que vinha a ser um
grande lucro, em comparação da esquivança da dama requestada.
“Que tempos
estes de prosa férrea, prosa negra, vilã e esmagadora de toda a alma, que puxa
a destinos extraordinários!” — exclamava César, ao longo da praia, com os olhos
postos nas duas senhoras, que ele via acocoradas a apanharem seixinhos. “Não se
ajeita caso nenhum”, continuava César, “em que um homem possa distinguir-se aos
olhos da mulher, que ama!” Afora a distinção que dá um carro bem puxado de
cavalos ajaezados lustrosamente e a outra distinção menos ruidosa de possuir
ações nos bancos, uma só conheço eu que algumas vezes tem vingado: é a tolice
desmedida, a tolice sem horizontes, a tolice que vence a razão, porque a razão
do homem é limitada, e a razão da mulher é limitadíssima, e a tolice sem
limites abrange o mundo moral e o físico, abrange os dois sexos, e há de
abranger um terceiro, quando a civilização o tiver inventado!
Por esta
grande tolice ia também já abrangido o coração do declamador desvariado, quando
as duas senhoras Leitugas se levantaram da postura menineira, e seguiram seu
caminho na direção de César.
O moço
caminhou também para elas, a passo mesurado e cadencioso como usam andar os
amantes tristes.
Clotilde
avistara-o, e estremeceu nervosamente, porque era muito assustadiça a menina
quando avistava homens mais ou menos parecidos com a imagem ideal que ela
formara de um certo Agobar, seu simpático conhecido de não sei que novela de Arlincourt,
a quem Deus perdoe o mal que fez às meninas do seu tempo, e ao senso comum de
todos os tempos.
A vinte passos
de um fosso enlameado por onde se escoa a sangueira do açougue da Foz, Clotilde
e a mãe pararam, olhando contra um barco a vapor que aproava à barra.
César estugou
o passo, e parou também a vinte passos para além do fosso, fingindo que
observava a entrada do vapor.
A cadela, no
entanto, para desencalmar-se na frescura da lama embebida em sangue, entrou
pelo fosso dentro chapinando e agachando-se nas pocinhas em que a veia de água
se represava mais cristalina.
Neste
chafurdar andava Diana, quando uma enorme ratazana espavorida saltou de sua
lura, e, acossada pela cadela, correu ao longo do barroco em direitura às duas
senhoras, que se haviam chegado ao fosso para verem o prazer com que o
quadrúpede encalmado se retouçava.
D. Caetana, ao
dar tento da ratazana, cuja cauda eriçada e encaracolada fazia pavor à própria
Diana, expediu um grito, e clamou:
— Olha, olha,
Clotilde...
Clotilde,
apenas encarou no quadrúpede, estendeu os braços inteiriçados, abrindo e
espalmando as mãos, e voltando o rosto como fazem todas as atrizes trágicas
notáveis, quando acertam de verem perpassar pela lona do cenário lúgubre algum
fantasma mais ou menos papelão; e depois destes e outros feitios e trejeitos e
caretas estarrecidas, tirou da arca do peito um grito estrídulo de horror, e...
ia desmaiar quando o estrondo de um tiro a fez soltar mais ingente brado e a
espertou para abrir os olhos sobre um espetáculo digno de ser contado por pena
melhor aparada!
César recebia
dos dentes da cadela a ratazana agonizante, e levantando-a ao alto, disse:
— Está morta!
Clotilde
respondeu com um vagido congratulatório à ovação do fino amante; porém,
reparando que ele tinha entre os dedos a cauda do bicho repulsivo, exclamou:
— Largue
isso!... Pois não tem nojo!... Cativa!
César, corrido
da suja ação do seu entusiasmo, deixou cair o cadáver da ratazana, e desceu ao
mar a lavar as mãos.
Quando voltou
ao local em que praticara a façanha, as senhoras tinham desaparecido, no pinhal
vizinho, para encurtarem o caminho de casa.
O amante, fino
de mais para estes grossos tempos, entrou-se de uma convicção dura de tragar;
e, pondo os olhos no corpo ensanguentado da ratazana, disse:
— Não valia a
pena aniquilar-te, criatura do Senhor, nota do hino da criação, ente necessário
à perfeição do Cosmos! Não valia a pena matar-te, para satisfação dos nervos de
uma ingrata!
Disse, e deu
com a coronha da arma na cadela que queria comer a rata! Que a faminta Diana,
ia-se a pique de morrer de fome, todas as vezes que seu dono amava!
Nisto, chegou
João Fernandes.
***
IV - JOÃO FERNANDES
Já se disse
que o barão de Penajoia, antigo Manuel José Fernandes, o Chicha, de alcunha, era a máquina produtora de um filho único, que
houve nome João, e se estava, ao tempo desta história, gozando das graças do
diminutivo Joãozinho. As moças da Penajoia,
Mesão Frio e Moledo amavam-no e perseguiam-no, sem embargo de ele ser vesgo e
zambro das pernas o seu tanto ou quanto. Dizia-se que João Fernandes botara a
perder algumas raparigas lá do Douro e casara outras com beneplácito e dinheiro
do pai, no louvável intento de calar as famílias e calar o escândalo — o
escândalo que é muito mais rebelde de acomodar que as famílias.
João Fernandes
estivera no Porto, em rapaz, estudando francês na academia, e então conhecera César,
seu condiscípulo. Fechado de cabeça como uma pedreira de mármore, o filho do
barão da Penajoia não aprendeu nada, e gastou um ano e algumas dúzias de moedas
a namoriscar as loiceiras dos sótãos da academia, e as fruteiras da praça do Anjo.
Trajava com elegância, vestia luva gema de ovo todos os dias, e aos domingos
alugava cavalo e, à falta de ruas e de espaço por onde passeasse o galope do
cavalo e da alma desenfreada, batia as mesmas calçadas cinco vezes em cada dia
de equitação.
Fernandes
ficou sobremodo alarve, e contente de si. Tudo lhe saía ao pintar. A fortuna
ameigava-o com entranhas da mãe estúpida, que se endoidece de alegria ao ver-se
escouceada pelo filho boçal. Parece que a natureza fora feita privativamente
para regalo dele. As mulheres da Penajoia, como fica escrito e anunciado à
posteridade, amavam-no a peito. Nenhum vesgo e zambro abusara mais a froixo das
delícias deste globo, tão avaro delas para incalculável número de homens bem
apessoados, escorreitos e até poetas! Aquele bestunto gizava prazeres, e para
logo os mais dadivosos acasos confluíam a chover-lhe contentamentos ao molde e
talho de sua soez fantasia. O amor, principalmente o amor, se é cego, como
dizem, apertara sobre os olhos uma dupla venda com receio de ver o sandeu a
quem servia humilimamente. Era coisa de fazer chorar uma pedra ver que
donzelas, que sécias, que tafulas das mais cobiçáveis da freguesia, lhe saíam
ao encontro do caminho, por sobre o qual um escritor de gosto e estilo diria
que legiões de cupidos lhe avoejavam iriando-lhe a luz e enflorando-lhe as
alfombras de sua passagem! Isto assim dito, a respeito de João Fernandes, seria
bonito e digno. Agora penso eu que se está fabricando, pelo quilate daquela,
uma linguagem para uso dos imortalizadores das pessoas distintas, como João e
outros.
Achava-se Fernandes
na Foz por causa da fidalga de Canelas, morgada de Encavalgados, filha única,
criatura alegre, bonitota e bruta. Esta senhora, chamada Filipa, gostava dele e
convidara-o a comer letria, uma vez que o vira numa festa de igreja, lá em Canelas.
João comera a valer, sem dar fé de se lhe ir o coração e estourando de amor. Doutra
vez, a fidalga foi à Penajoia, onde tem um casal, e, convidada pelo barão, foi
comer arroz-doce vis à vis de João Fernandes. Desde esta saudosa comezaina, os
dois corações ataram-se com tão cego nó que parecera ser aquele amor para
disputar constância e duração com a eternidade. Eram dois azeméis talhados,
vazados, fundidos da mesma forma. Se estes se não amam até à campa, não há nada
certo, em matéria de amor, matéria materialíssima, e amor animal, amor fibroso,
amor de osso e músculo, carne de carne, e para uma só carne, como o Evangelho
diz que sejam marido e mulher.
D. Filipa Paiva
e Pona foi a banhos de mar, à conta de flatos, e enchimentos de estômago, e
outras doenças de má cara. O cirurgião mentira. A morgada de Encavalgados era
sadia, nédia e oleosa como um chouriço de sangue. Fora João Fernandes que a
induzira a queixar-se de uma dor da ilharga esquerda e a deitar-se da cama
abaixo, ululando uns gritos histéricos e torcendo-se em trejeitos e esgares tão
assustadores, que a gente de mais são critério de Canelas deu a fidalga como
possessa do cão tinhoso, contra o qual se fariam exorcismos, se o demônio se
não antecipasse a dizer, pela boca do cirurgião, que a morgada precisava de
banhos de mar.
Em virtude do
que desceram à Foz os Paivas e Ponas, em companhia de João Fernandes e de
alguns presuntos, e vários foles de feijão, e outros legumes, e farináceos.
Agora tem o
leitor a felicidade de encontrar o filho do barão da Penajoia a palestrar com César,
no mesmo ponto em que ouvimos o raticida apostrofando o cadáver ensanguentado
daquela mansa vítima imolada aos nervos de Clotilde. Mas, antes de aproximá-los,
vejamos ainda brutezas novas de Fernandes.
Descia ele da
parte do monte na ocasião em que as damas se iam de fugida por entre os
pinheirais e tirava da algibeira um binóculo de teatro com que andava sempre prevenido.
Assestou os vidros às damas fugitivas; e, como quer que uma silva prendesse o
vestido de Clotilde, e indiscretamente lhe mostrasse da perna uma porção
bastante a delatar maravilhosos mistérios, posto que a desvendar o segredo
fosse bastante o pé, que assim o disse o poeta de Rola:
...................................................................
lors qu’on volt le pied, la jambe se devine
....................................................................
João Fernandes,
vinha eu contando, como visse pelo óculo o quer que foi da perna e, como parvo
que era, cuidasse que estava na Penajoia, expediu do peito alvar uma gargalhada
e disse em vozeamento de cabreiro que fala ao rebanho: “Isso é que é perna! Viva quem é uma flor!”
Clotilde e a
mãe olharam ao mesmo tempo e viram o atrevido cavalgando uma parede, com o
binóculo assestado.
— Que
petulante estúpido! — disse abafada de cólera a menina.
— Anda daí —
acudiu a mãe -, faz de conta que o não ouviste. Apanha as saias!
E João Fernandes,
sem desfitar o óculo, cantou na toada galhofeira da música popular, estes dois
versos:
Ponha
aqui o seu pezinho,
Ponha aqui ao pé do meu.
César subira
então a um cômoro de areia, por ter ouvido o falaris do insolente, e avistou João
Fernandes, que vinha em direitura dele, assoviando a moda do pezinho.
— Olé! — disse
o da Penajoia. — César, condiscípulo, amigo, et caetera! Estavas também
à espreita do pezinho da encantadora ninfa!?
— Cala-te,
selvagem! — respondeu o acadêmico. — Tu és um grosseirão!
— Pertenciam-te
as criaturinhas?! — redarguiu João Fernandes. — Perdoarás! Eu cuidei que não
ofendia ninguém com isto! Vocês, os rapazes civilizados, andam atrás das
senhoras nas salas para lhes dizerem em segredo que elas têm o pé muito
galante; e vai depois, se acontece um homem franco dizer em voz alta a uma
senhora que ela tem a perna bonita, porque ela deixou ver, vocês chamam
grosseiro e bruto ao homem! Que dizem lá os teus autores a este respeito, meu
doutor?
— Os meus
autores dizem-me que tu és um asno; e como a asneira é a soberania do universo
e a mãe de todos os heroísmos extraordinários, respeito-te, amigo Fernandes,
descubro-me diante de ti, e vou meu caminho para me não convenceres de que eu
sou um tolo superior a ti.
— Ouve cá, César!
— replicou João Fernandes, metendo-lhe o braço. — Que diabo de mulher é uma
mulher que tu estavas ontem a cocar ali na praia? Fez-me mossa a rapariga, e
tive vontade de te dizer: “Anda para diante, se és homem; e, se não és homem,
faz-te ao largo, e deixa-me fazer a esta ninfa dois dedos de namoro!”
— A mulher era
aquela que tu apupaste agora, pedaço de maroto. É assim que tu amas as ninfas
de Penajoia?
— É assim
mesmo, digo-te que é assim, que se amam as mulheres de toda a parte. Agora, vou
fazer contigo uma aposta. Dobrado contra singelo. Se ela me não aceitar o namoro,
perco eu o meu cavalo ruço, e, se eu dentro de Oito dias te mostrar uma carta
dela, perdes a tua cadela. Valeu?
— Estava capaz
de experimentar... — respondeu César.
— Tens tudo a
ganhar, rapaz! Ganhas a mulher e o cavalo. E tens pouco a perder, porque perdes
a cadelita, que pouco vale, e a moça, que se é o que eu cuido, pouco vale também.
Que dizes tu, homem?
— Apostei! —
exclamou resolutamente o acadêmico. — Oito dias para ela te responder. Se te
não responde...
— Mando-te o
meu cavalo... palavra de cavalheiro!
César encostou
mãos e face à coronha da espingarda, meditou, correu a mão pela fronte e disse:
— Pois o mundo
estará assim organizado?
— Assim como?!
— interpelou João Fernandes.
— Serás tu o
homem destinado a impressionar aquela angélica criatura?
— Sou:
tenho-as impressionado mais finas. Conheces a Filipa de Canelas?
— Isso é uma
lavadeira! Com que seresma tu me vens argumentar!
— Pois faz-lhe
tu a corte, que eu perco a minha fortuna se lhe apanhares uma piscadela de
olho!...
— Qual de nós
é o parvo?! — perguntou solenemente César.
— És tu! —
respondeu solenemente João Fernandes.
***
V - VITÓRIA DA TOLICE
No dia
seguinte, estava o comendador Leituga em Sobreiras examinando um porco de raça
inglesa, que recolhia de ser exposto e proposto a prêmio.
— Abençoado
sejas tu que tão perfeito saíste! — exclamava o comendador coçando o cevado no
focinho.
— E foi
premiado! — disse um outro comendador circunstante.
— Premiado! —
acudiu João Fernandes. — Pois cá premeiam-se os animais?
— E reprovam-se
os vegetais que estudam francês — acrescentou César, que acertara de estar no
círculo cujo centro era o porco premiado.
João Fernandes
derramou o olho vesgo sobre o chacoteador, e disse:
— Cuidado com
as ventas, Augusto César!... Olha que eu não desatendo ninguém. Fala bem que
ninguém te fala mal. Eu falava com o porco.
— Para falares
com quem te entenda... — redarguiu o acadêmico.
O comendador Leituga
voltou a carranca contra César, e disse gravemente:
— A dizer a
verdade, o senhor não tem razão. Eu conheço desde ontem à noite o filho do Sr.
barão da Penajoia, e vou jurar que ele é incapaz de ofender pessoa alguma.
César
respondeu sorrindo:
— Eu também
conheço o senhor João Fernandes há nove anos, e por isso gracejei com ele, sem
intenção de beliscar a sua vaidade de conhecedor da língua francesa...
Estourava de
despeito e raiva o matador da ratazana. Sendo ele o único homem de talento e
espírito, que estava no grupo, era ele por isso mesmo também o único ridículo e
aparvalhado naquele momento. João Fernandes entortava a boca para morder o
beiço inferior, exibindo a dentadura superior, suja até ao espanto. Esta careta
simbolizava a alegria íntima, de se ver defendido por Inácio José Leituga, na
presença do infausto amador da filha.
César
dispensava esclarecimentos. Posto que se arreceasse de ser suplantado pelo da Penajoia,
ainda assim não esperava tão rápida e sumária derrota. Cuidava ele que João Fernandes
seguiria a trilha de todos os moços distintos em matéria de namoro, começando
pelo princípio, que é a parte contemplativa, ou extática; depois, passando à
seção epistolar; e daí às outras, que variam, consoante as pessoas e as
circunstâncias. Neste pressuposto entendeu César que o parvoinho de Penajoia,
antes de ousar oferecer uma carta a Clotilde, consumiria alguns dias em seguida
do banho a casa com a pertinácia estúpida de um indiscreto, que apostara o
cavalo ruço, e havia de pagar pontualmente a aposta, se, no prazo de oito dias,
não apresentasse uma carta da menina de Cinfães.
Isto
cuidava ele como homem de espírito e gênio, homem de alta poesia e profundo
respeito pelas senhoras, homem que falava com asco da corrupção da espécie
humana e supunha que nenhuma das pessoas que ele conhecia estivesse corrompida.
As criaturas dotadas de espírito e gênio são assim boas, assim idiotas; e, se
deixam de o ser nalguma hora, é quando lá do íntimo de sua consciência lhes
rompe um gemido, gemido do orgulho castigado, dor sem igual e sem consolação, porque
as desgraças e desenganos que esmagam as almas estremadas do vulgo são dores
que o vulgo escarnece; e escárnio atroz é esse, porque vai nisso o vingar-se a
canalha; e a canalha urra triunfante a cada homem distinto que sopesa e recalca
no seu ester...
Vamos ao
conto.
Saibamos de
que modo João Fernandes se relacionou com o comendador Leituga.
Ao separar-se
de Castro, no dia anterior, entrou em sua casa para pensar se devia pensar na
maneira de começar namoro com Clotilde; porém, como lhe não acudisse de pronto
pensamento nenhum, resolveu pelo melhor não pensar nada. Resolvido isto, saiu,
e foi passear para o Monte.
Ora João Fernandes
tinha a dose de velhacaria, que a natureza concede a cada tolo maior de marca.
Ele já sabia quem era a menina quando pediu informações a César; sabia que ela
tinha em Cinfães um casão, e outro casão em Canaveses; sabia que o seu
condiscípulo a trazia de olho, e versejava por amor dela, e cruzava os braços
sobre o peito, buscando-a no Céu, quando ela saía da praia, e ia para casa
almoçar bolinhos de bacalhau; isto dos bolinhos de bacalhau sabia-o ele de ter
ouvido dizer ao comendador Leituga que em sua casa todos os dias ao almoço e à
ceia comia bacalhau em bolinhos. Tudo isto sabia o velhaco!
Chegou João Fernandes
ao Monte, e a primeira pessoa que viu numa janela foi Clotilde. A menina, mal o
enxergou e reconheceu, deu uma viravolta, e mostrou o costado elegante e as
negras pastas de cabelo que se lhe amoldavam ao torneado das espáduas. João Fernandes
tossiu e prolongou um som rouco, e feio, posto que em certos casos pareça
linguagem do coração, e em outros um esforço que se faz para desembargar os
gorgomilos de algum entulho incômodo.
Clotilde,
azoada com esta plebeia e audaciosa demonstração de afeto, saiu da janela e
bateu com as portadas na cara festival de João.
— Sempre é
muito bruto! — monologava ela, mirando-se no espelhinho do toucador de
cedreira. — Quem cuidará este homem que eu sou?!
Acabava de
fazer esta pergunta a menina, quando a campainha da escada tilintou. A criada
pergunta quem é e responde uma voz exterior:
— Está em casa
o senhor Comendador?
— Não está:
foi para a cidade. O senhor quem é?
— O filho do
barão da Penajoia.
— Quem? —
perguntou Clotilde. — Quem?! — e foi espreitar ao patamar da escada.
— Diz que é o
filho do senhor barão da Penajoia — respondeu a criada.
— Um criado de
vossa excelência, minha Senhora — acrescentou João Fernandes.
D. Caetana Emília,
que estava lendo uma novela intitulada O
Menino da Selva, meteu as cangalhas de prata entre as duas páginas, e
disse:
— Eu lá vou.
Saiu com
efeito ao topo da escada e disse:
— Meu marido
não está em casa; se é recado que lhe deixe...
— Eu vinha
aqui de mando de meu pai cumprimentar o senhor Comendador, e saber da sua saúde
e da sua estimável família.
— Mas eu não
conheço o senhor barão, que me lembre — replicou D. Emília.
— Os fidalgos
conhecem-se uns aos outros — redarguiu João Fernandes — e apolítica manda que
eles se cumprimentem. Por isso é que eu vim cumprir os meus deveres; e, como o
senhor Comendador já me conhece, aqui deixo o meu bilhete-de-visita.
João Fernandes
tirou da carteira o seu bilhete, impresso de modo que depois do nome João
estava uma coroa de barão metida numa grinalda, e depois seguia-se o apelido Fernandes, e, por baixo, em letras d’ouro:
futuro barão de Penajoia, etc., etc.,
etc., e mais abaixo, à orla do papel, estas palavras escritas do punho do
próprio tolo: criado venerador de vossas
excelências.
Foi o bilhete
para cima, e João Fernandes ia a sair quando o comendador apontava ao cimo da
rua, defrontando com a sua residência.
Fez-lhe
sensação o ver sair João Fernandes de sua casa; este, porém, com o mais
sossegado ânimo, dirigiu-se ao Leituga e disse-lhe:
— Venho de
deixar um bilhete a vossa excelência, porque tenho muita honra em fazer o seu
conhecimento, e meu pai é da mesma opinião.
— Muito
reconhecido ao seu favor — disse o de Cinfães. — Eu não tenho o gosto de
conhecer pessoalmente o senhor barão; mas lá virá vez de nos conhecermos. Já
agora faz favor de subir e descansar.
João Fernandes
retrocedeu, entrou à sala, foi apresentado a D. Caetana, pouco depois à menina,
que entrou grave e mal-assombrada na sala, e dali a pouco estava conversando
com todos três, dizendo as suas baboseiras com bastante graça e elegância,
falando da sua casa apalaçada na Penajoia, das suas quintas do Alto Douro, dos
cevados que se matavam em sua casa, dos casamentos que lhe tinham sido
propostos, da sua predileção pelo arroz-doce e do muito prazer que ele sentia
em poder oferecer ao senhor comendador um presunto ainda inteiro de três que
trouxera de casa.
A esta hora, Augusto
César contemplava a estrela Vésper, e dizia: “Clotilde! palavra de magia, som
que as harpas eólicas gemem, nota de hino que desferem os coros angelicais,
talismã, bem-aventurança, Clotilde!
Como eu te
amo, como o coração se me vai em incenso para ti!
Avoeja à flor
dos meus cabelos, ó ave do Paraíso!... Os áditos do elísio abrem-se para nós, a
natureza é nossa, e o mar suspira para nos embalar os sonhos, as auras ciciam
nos pinhais para nos ensaiarem o murmúrio, a linguagem rumorosa e estremecida
dos corações felizes!
Ó Clotilde...
Ó mariposa
dileta,
Vem abrasar-te
e viver
No coração do
poeta,
Deixa-te amar
e morrer!
Deixa-te amar
e morrer
Õ mariposa
dileta;
Vem abrasar-te
e viver
No coração do
poeta!”
***
CONCLUSÃO
No fim da
tarde do quinto dia depois daquela fatal tarde da aposta, César ia caminho de Carreiros,
e viu descer dos pinhais em direção à praia um grupo de homens e damas. Esfregou
três vezes os olhos, e três vezes comprimiu as fontes, que lhe estouravam
batidas e inflamadas pelo vulcão do cérebro incendiado. O que ele vira fora uma
visão das que Satanás reserva para os réprobos da última casta: João Fernandes
vinha de braço dado com Clotilde e ela, de vez em quando, dava-lhe a cheirar um
ramilhete de cravelinas!
Sabeis o que é
o cair de um homem desamparado na areia?
Sabeis como
cai todo o homem que não pode sustentar o equilíbrio?
Sabeis qual é
a posição que um homem toma quando não pode sustentar a vertical que lhe
decretou o criador?
Pois foi
assim! César caiu na areia como todo o homem que cai.
E, quando
tornou a si, ergueu-se, envergonhou-se na ideia de que o tinham visto e foi
para casa.
E, na noite
desse dia saiu com um par de pistolas em demanda de João Fernandes, que a essa
hora se debatia nas angústias da morte entre as mãos de D. Filipa Paiva e Pona.
A qual, como soubesse que era atraiçoada, saiu de capote e chapéu braguês,
armada de uma tesoura, e surpreendeu João a dar o nó de uma gravata vermelha,
que naquela noite ia estrear a casa do comendador. A morgada de Encavalgados
travou-lhe do pescoço e pôs-lhe ao peito o duplo bico da tesoura. João,
assombrado e fascinado por tamanho heroísmo de mulher apaixonada, pediu que lhe
largasse a garganta e jurou abandonar Clotilde. E abandonou.
Mas no dia
seguinte, que era o sétimo, receando que César mandasse buscar o cavalo ruço
hipotecado na aposta, apresentou-se ao amanhecer em casa do condiscípulo e
disse:
— Não venho
buscar a cadela; mas venho trazer a carta. Conheces esta letra?
— Não — disse
César — mas creio que é da infame.
— Se é infame,
não sei; atolambada te juro eu que ela é. O que eu te digo é que se ela não
serve para João Fernandes, menos servirá para César. Pergunta-me agora qual de
nós é o parvo, amigo César!
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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