No período de glória literária, em 1886, é assim
retratado fisicamente por um dos seus biógrafos: É de estatura média, magro
como um retrós, de uma tez embaciada, puxando um pouco para terrosa, onde se
esbate a coloração mórbida dos anêmicos e dos que vivem peremptoriamente pelo
cérebro.
Ainda agora lhe aparece no rosto, e bem visível, o
crivo duma varíola assanhada, de que sofreu em criança, penso eu. Debrua-lhe o
lábio superior um bigode estofado, cujos longos cabelos se espatulam rudemente
sobre o lábio inferior, comunicando-lhe à fisionomia uma certa feição vigorosa
e duma distinção aristocrática. Na fronte um pequeno punhado de cabelos parece
querer-lhe voar da cabeça, como a ondulação ascendente duma labareda. Os olhos
do autor dos Críticos do Cancioneiro
julgara alguém que devem ser para aí um par de carbúnculos à flor da carne. São
uns olhos tão humanos e mansos como outros quaisquer, onde se retratam tão
fielmente como nos do leitor, como nos dos restantes filhos de Eva, os
sentimentos alternativamente doces, amoráveis ou veementes do nosso coração.
Todavia há neles três expressões habituais, sobretudo a última: o respeito, a
bondade, e a ironia mordaz.
Moralmente, as feições mais flagrantes que como
quer envolviam todo o seu caráter, eram o extremo subjetivismo e a veia cômica
dentro dos quais ele exercia toda a sua atividade psíquica. As funções
espirituais eram todas sobrepujadas pelo sentimento que, como é de prever,
perturbava o regular exercício das outras. Sentimento amoroso, sentimento do ódio,
saudade, despeito e ofensa, amizade, fé e devoção, todas essas variantes
sentimentais ele percorreu com uma intensidade, que atinge por vezes a
violência da paixão. E foi um grande apaixonado. Apaixonado ao ceder a esses
amores, que constituem a galeria, colecionada pelo Sr. Alberto Pimentel no
livro Os Amores de Camilo; apaixonado
no tédio pronto, que se lhes seguia; apaixonado na amizade, como no caso de
Vieira de Castro; apaixonado no ataque, como em todas as suas polêmicas.
Deprimiu e encomiou grandemente, e quase sempre sem razão no juízo condenatório
como no laudatório. Aqueles, contra os quais fulminou uma apreciação de
somenos, vieram a culminar; outros, a quem deu todo o alento dum confessado
entusiasmo admirativo, esqueceram na sombra da mediocridade.
Logicamente se deduz que um homem escravo duma tão
violenta sentimentalidade, devia ter uma vontade tíbia, indecisa, e assim era.
Era um doente da vontade. Umas vezes ficava-se apático, insensível ao estímulo
externo, ávido de conchego caseiro; outras vezes cedia abruptamente ao
estímulo, com tal decisão e impulsividade que se produzia uma desproporção
entre a causa e o efeito, mas logo que se perdia e apagava a última das
repercussões cerebrais dessa excitação, Camilo recaía na apatia, na abulia. Resistindo
às solicitações da sua curiosidade, aos conselhos dos amigos, nunca saiu de
viagem ao estrangeiro, mas para fugir aos pinheiros gementes de São Miguel de
Seide, sai para a Povoa de Varzim... e a meio do caminho retrocede. Obras
longamente planeadas nunca apareceram; outras concebidas num momento, em quinze
dias surgiam.
Tendo conhecido Ana Plácido, longos anos, deixou
lavrar a sua inclinação, distraindo-se com outros devaneios amorosos, até que
tornando-se paixão, esse sentimento atinge um poder determinante que o impele
às consequências extremas. Pouco tempo depois, com o escândalo, chegava o
tédio, que era também uma cruel ingratidão.
Não viajava pelo estrangeiro, mas obedecendo a um
irresistível e mórbido deambulismo percorreu as províncias do norte,
pormenorizadamente, aldeia por aldeia, casal a casal.
Houve um momento, em que Camilo sentiu a
necessidade de crer, e o D. Juan protagonista de muitas aventuras, que
estarreciam os burgueses portuenses lançou-se, a despeito da opinião de todos,
na contemplação religiosa, exaltadamente; frequentou o seminário, fez
jornalismo religioso e polêmica religiosa e chegou a requerer ordens menores,
que uma reviravolta a tempo o inibiu de receber.
A inteligência, dominada pelo sentimento, não
observava o que se não coadunasse ao modo de ser desse sentimento; fugia da
natureza objetiva, dobrava-se subalternamente e ia arquitetar justificação para
os sentimentos, explicação, dispersando-nos pela obra — reflexo fiel do caráter
de Camilo — um sistema completo do sentimento do amor, na forma camiliana, uma
concepção da vida, muito restrita, mas organizada. Quando frequentou as aulas
da Academia Politécnica e Escola Médica, sentiu que a sua inteligência se não
comprazia no estudo das ciências naturais. A memória é que era vivíssima e
poderoso auxiliar para a construção da sua obra; as reminiscências biográficas
são sempre vivíssimas e de relativa exatidão, e as leituras conservam-lhe no
espírito um armazém de materiais, prontos ao primeiro chamamento. Como erudito e
genealogista claramente o mostrou.
A música era para ele o mais suportável dos ruídos.
A veia cômica, poder de satirizar por meio duma
desleal interpretação das opiniões alheias, dum trocadilho de palavras ou pela
pintura caricatural, junta com a violência de sentimento, que punha nos seus
atos, compeliu-o a ataques literários ou a defender se pôr forma que equivalia
a agredir primeiramente.
Com tais particularidades morais: extrema
subjetividade, pouca observação, grande memória e poder satírico, Camilo havia
de produzir uma obra irregularíssima, como irregularíssimo no seu funcionamento
era o espírito que a concebia. Da leitura continua, do gosto de antiquário,
forma mesquinha do espírito histórico da época, e da memória, nasceu o estilo,
o escritor; do homem sentimental o romancista do amor: do satírico o polemista.
Não foi o seu caráter, como cremos que nunca o são
os caracteres sentimentais, duma elevada moralidade. O impulsionismo
sentimental levou-o a praticar atos que não estavam dentro das sanções da moral
comum. O abandono da sua primeira mulher e da filhinha, que tinham ocupado no
seu coração um tão pequeno lugar, que ocultou sempre esse casamento; a aventura
com D. Ana Plácido; o conservar junto de si o filho daquela senhora. Manuel; o
entrar afoitamente no gozo das propriedades de Pinheiro Alves, o marido de D.
Ana Plácido; e o rapto de uma donzela rica, apelidada a tricentenária, por se
avaliar em trezentos contos de reis a sua fortuna, para a casar com um marido
dissipador e tresloucado, seu filho Nuno: a sua duplicidade literária,
encomiando Eça de Queirós em público, ao mesmo tempo que o atacava em cartas
particulares, são mostras mais do que suficientes de que nem sempre a correção
moral foi o mais procurado escopo da sua vida.
Incrustado na sua concepção literária, não podia
compreender o realismo, e não compreendeu.
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FIDELINO DE FIGUEIREDO
História da Literatura Romântica
Portuguesa (1913)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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