Camilo
Castelo Branco: aspectos biográficos
Camilo
Castelo Branco nasceu em Lisboa, numa casa do Largo do Carmo, em 16 de março de
1825, e foi batizado na igreja dos Mártires em 14 de abril do mesmo ano. A mãe
morreu pouco tempo depois dele nascer e dos dez primeiros anos da sua vida
apenas se sabe que em 1834 com o visconde de Onguela e seu irmão Ricardo Siles
Coutinho, frequentou uma escola de João Inácio Minas Júnior, na Rua dos
Calafates. “A meu lado — escreveu Camilo — no banco da escola de primeiras
letras, em Lisboa, por 1834, sentavam-se dois meninos, filhos dum amigo de meu
pai. Estou vendo, além, para lá da cerração de trinta e oito anos, aquelas duas
crianças loiras e formosas, pedindo comigo a Deus que nosso mestre João Inácio
Luís Minas Júnior fosse para a guerra. Porque o nosso professor era guerreiro
por aqueles tempos. Com uma das mãos na palmatória e outra na espingarda,
acudia pelo decoro do Lobato e pela restauração da monarquia representativa.
Nas baterias de campo de Ourique devia de ser um bravo João Inácio; e, no
gineceu modestíssimo da Rua dos Calafates, era um apaixonado fautor da religião
do particípio e das outras não menos respeitáveis partes da oração. Isto vai há
muitíssimos anos: era num tempo em que se aprendia sintaxe. Dos dois meus
condiscípulos um chamava-se Carlos, o mais novo dos dois, que tinha seis anos.
Daquela criança estou bosquejando hoje um perfil de biografia. Vai nisto o que
quer que seja para cismar e entristecer. É a poesia melancólica — o funesto
condão dos homens que vivem muito da vida introspectiva. Naquele ano de 1834
nos apartamos. Meu pai morreu. E, como eu já não tivesse mãe nem fosse
inteiramente pobre, a desgraça deparou-me parentes em Trás-os-Montes onde vim a
entender que não há lágrimas bastantes a deplorarem o destino de um órfão com
oito anos de idade, e as faces quentes e úmidas dos últimos beijos e das
últimas lágrimas de seu pai”.
Camilo
não é sempre rigoroso em datas nas suas evocações. Manuel Botelho Castelo
Branca morreu em 22 de dezembro de 1835; e o própria Camilo, no seu livro Duas horas de leitura, confessa, que foi
efetivamente aos dez anos que ficou órfão de pai: “Aos meus dez anos — conta —
levantou-se uma tempestade no seio da minha família. Uma vaga levou meu pai à
sepultura, outra atirou comigo de Lisboa, minha pátria, para um torrão agro e
triste do norte: e a outra... Não merece crônica a outra: arrebatou-me um
esperançoso patrimônio. Foi bem pregada peça para que eu não tivesse a
impudência de nascer, a despeito da moral jurídica, filho bastardo de não sei
que nobre. Disseram-me que uma lei da Senhora D. Maria I me deserdava. A boa da
rainha, se tivesse amado mais cedo um certo bispo, não legislaria tão cruamente
para os filhos do pecado. Denominava-se —a piedosa,
pela mesma razão que um rei nosso, soprando a fogueira de vinte mil hebreus, se
chamou — o piedoso. A boa da história é uma trapalhona”.
Por
deliberação do conselho de família, Camilo foi levado para Vila Real, entregue
aos cuidados de D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, irmã de seu pai.
“Embarcamos no barco a vapor chamado Jorge
IV — conta ele no livro No Bom Jesus
do Monte. Uma criada, que tinha ares de mestra de minha irmã, veio conosco,
estipendiada por conta do nosso patrimônio. A senhora Carlota Joaquina não me
esquece. Era uma mulher gorda, façuda e frescalhona, que bolsava os fígados do
beliche abaixo, e gritava à del-rei de
aflita com o enjoo. Era imundo, sujo a mais não poder, o Jorge IV. A câmara era comum dos dois sexos, com menos resguardo
que os mosteiros dúplices da Idade Média; mas os ânimos dos passageiros
pareceram-me a negação de toda a ideia monástica. Os homens do beliche do
segundo andar conversavam com as mulheres dos primeiros diálogos entrecortados
de vômitos. A senhora Carlota, que ficou à minha esquerda, praguejava contra o
seu destino; e o meu vizinho da direita, sujeito de grandes barbas, saía do
beliche em menores para lhe ter mão da testa. Esta caridade absolve a
inconveniência da mistura. Dos passageiros nenhum falava inglês, e o criado da câmara,
que também era fogueiro, atenta a negrura encarvoada da camisa e cara, quando
lhe pediam chá, café, ou um caldo de galinha, dava sempre água por um canudo de
lata. Carlota exclamava: — Eu morro! — Tenha
paciência menina! acudia o homem das barbas. — Não há de morrer querendo os deuses. Devia de ser pagão o monstro!
— Eu morro! rebramia ela. Quero confessar-me!... — Não peça a confissão a estes brutos,
observava-lhe o meu vizinho, que além de
não terem Deus nenhum, se a menina lhes pede um padre, trazem-lhe água na lata
surrada. Havia muito mar quando se avistou a barra do Porto; e por isso
arribamos à Galiza. A nossa Carlota, assim que pôs os quatro pés e os dois
estômagos na hospedaria de Vigo engordou outra vez. O pagão não saía da beira
dela. No dia seguinte abalou a caravana para Tui por uns caminhos que Deus e a
civilização já fizeram desaparecer da face do globo. Ao outro dia passamos a
Valença; depois a Ponte do Lima, e de lá a Braga em romagem ao Bom Jesus.”
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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