A
SOMBRA DO QUADRANTE
EPÍGRAFE
Murmúrio
d’água na clepsidra gotejante.
Lentas gotas
de som no relógio da torre,
Fio d'areia na
ampulheta vigilante,
Leve sombra
azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa
a hora, assim se vive e morre.
Homem, que
fazes tu? Para que tanta lida.
Tão doidas ambições,
tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos
somente a Beleza, que a vida
É um punhado
infantil de areia ressequida.
Um som d’água
ou de bronze e uma sombra que passa.
***
INSCRIÇÃO
(A Luís de Magalhães)
Arqueado sobre
a límpida corrente,
Ria um fauno da
própria carantonha,
Soprando
folgazão em verde cálamo.
Quando, na
oposta margem, de repente,
Viu a figura
esbelta mas tristonha
D'Ênio, que
abria uma inscrição num álamo.
Pôs-se o fauno
a espreitar, quedo e matreiro,
E assim que o
pastor grave se afastou
Como um
espectro na bruma vespertina,
Galgou dum
salto o murmuro ribeiro,
E alçando-se
nas patas soletrou
No prateado
tronco esta sextina:
Sequioso, hoje, ao curvar-me duns barrancos,
Para beber em cristalina fonte,
Que entre agriões canta e fulgura, a rir,
Vi que já
tenho dois cabelos brancos!
Assim, longe de ti, na minha fronte
As saudades começam a florir...
***
PASSEIO NOTURNO
Levanta-te,
Psiquê! Nem um só astro esplende
Na abobada
tranquila...
São horas de
partir. Toma o teu manto, e acende
A lâmpada
d'argila.
Vamos correr
de novo os saudosos caminhos,
Cemitérios
d'esperanças,
Onde passamos
rindo a colher flores e ninhos,
Como duas
crianças...
Quero voltar à
fonte onde em calmoso dia
Marta nos
apareceu;
A roseira que
lá com mil bocas sorria,
Já de certo
morreu...
Quero ao cedro
voltar, que imperava sombrio
Num monte
áspero e bronco,
A ver se o
tempo as duas letras já sumiu
Que eu lhe
gravei no tronco...
Sentar-me-ei
contigo, um instante, no musgoso
Cume da pedra
brava
Donde vimos
minguar ao longe o vulto airoso
D'Inês que nos
deixava...
Do jardim de
Leonor quero rever as dálias,
E as pervincas
na balsa...
Mas que fazes,
Psiquê? P'ra que atas as sandálias?
Vem mesmo
assim, descalça!
Temes o
abrolho, que escondido dilacera?
Dos cardos a
rudez?
Está coberto
de cinza o chão que nos espera:
Não magoarás
teus pés...
***
TRISTÍSSIMA
TRISTÍSSIMA
No teu perfil
de anjo mortificado
Puíra sempre
uma nuvem de tristeza,
Que bem fundo
me abala, pela incerteza
Pungente e
viva, de eu a ter causado.
Talvez teu
coração desconsolado,
Vendo o meu
tão pobrinho de beleza,
Sinta a
dolorosíssima surpresa
De quem desce
dum sonho albirrosado.
Magoam-te, meu
bem, velhos abrolhos?
Tens saudades
de alguém que está ausente?
Ah! permita o
Senhor, ó pura e doce,
Que essa
tristeza venha de os teus olhos
Terem debalde
olhado, longamente,
A estrada pela
qual o Amor me trouxe!
****
SAUDADES
Cada uma das
palavras que vais ler
Com olhos de
divina claridade,
Leva-te, meu
encanto, uma saudade
Mais triste do
que as rolas a gemer.
Poucas, bem
poucas são as que, a tremer,
Aqui te
escrevo, ó toda suavidade,
Mas fossem
mil, não foram nem metade
Das saudades
que enturvam meu viver.
Se,
arrancados, meus olhos lacrimosos
Pudessem ver
os teus, tão misteriosos,
Que ao vê-los
tudo em sonhos se converte,
De só por ti
chorarem nunca fartos,
Arrancara-os
eu já, para mandar-tos,
Feliz de me
achar cego para ver-te!
***
HORA SUPREMA
Daria de bom
grado
Trinta ou
quarenta dias do futuro,
Se o pudesse
fazer,
Para, moço
outra vez, do meu passado,
Ingênuo,
crente e puro,
Três horas,
ires somente, reviver.
Na primeira
das três,
Aquela
revivera, azul, celeste,
Em que, rósea
de pejo.
Com infantil,
quebrada timidez,
Suavíssima me
deste.
Sob as
magnólias, o primeiro beijo.
Ao chegar da
segunda,
Que ponto no
passado evanescente
Tomara eu por
mira?
Sentindo uma
emoção doce e profunda,
Extasiadamente,
Da primeira as
doçuras repetira.
Cavamente
sonora.
Soaria a
terceira: tudo em pó
Se desfaz, de
fugida...
E eu sempre a
reviver a mesma hora,
Que, sendo uma
hora só.
Tem sido, é e
será toda uma vida!
***
ROMPIMENTO
Mandas-me as
prendas que te dei outrora;
Aí vão aquelas
que me deste um dia...
Seja! acabe-se
tudo... e que a alegria
Doire essa
grácil cabecinha loura.
Aí vai o lenço
onde, orvalhada aurora,
Choraste, uma
manhã, quando eu partia,
E a mecha de
cabelos, luzidia,
Dada em
risonha, inolvidável hora.
Aí vão as
rosas, onde a tua boca
Pousaste,
afável, antes que m'as desses,
Certo dia em
que eterno amor juramos...
Nada mais
tenho teu; é finda a troca,
Se o desejo
não tens (ah! se o tivesses...)
De destrocar
os beijos que trocamos...
***
O ERMITÃO
(A meu irmão Luís de Castro e Almeida)
Joseph
de Sá Pereira, Ermitão
que
atualmente era da Capela
da
Virgem Nossa Senhora de
Entre
Águas.
(Certidão de óbito).
Esse Joseph de
Sá, meu quinto avô,
Fidalgo altivo
e caçador de fama,
Cumprindo o
que jurara à sua Dama,
Fez-se humilde
ermitão quando enviuvou.
Na ermida,
entre águas, relembrava só
A que dormia
em funerária cama;
Na memória,
porém, inquieta e em chama,
O rosto dela
aos poucos se apagou...
Mas a Virgem,
sorrindo com deleite
Ao que tão
bem, tão plácido, a servia,
As tardes,
quando o ermitão cansado
Ia espertar a
lâmpada de azeite,
Com as feições
da defunta lhe aparecia,
Como ela as tinha
ao tempo do noivado.
***
À VOLTA DA FONTE
(A João de Vilhena)
Volta da fonte
a donzelinha airosa,
Ao musical
esmorecer do dia,
Mas volta
grave, lenta e lastimosa.
Com a urna
vazia.
Secou a fonte!
Nem um leve fio
Cai da limosa
bica... De hoje em diante,
Para ter água,
terá de ir ao rio
Que fica bem
distante...
Não é isso
porém o que de espinhos
Veste seu
peito e a afoga em tristes ânsias
Os seus pés
são ligeiros passarinhos
Sorriem das
distâncias...
O que a fere e
lhe aumenta a palidez
É que o seu
moço e esbelto namorado
Faltou — ai
dela! — pela primeira vez,
Ao encontro
ajustado.
Vazia, agora a
urna mais lhe pesa
Do que nas
tardes em que vinha cheia;
Flores, nem
uma traz... É a Tristeza
A arrastar-se
pela areia...
Chama-a de
longe o rio desejoso,
Mas ela que
parou não sei porquê,
Sequiosa a
boca e o coração sequioso.
Nem o ouve nem
vê...
Detém-se um
pouco e parte... De repente,
Ouve um arroio
chilreando: taciturna,
Sem se curvar,
prossegue, indiferente,
Sempre vazia a
urna...
Nem viv'alma!
Silêncio atroz, profundo.
Parece à
triste, vendo-se tão só,
Que morreu
toda a gente neste mundo,
Que só ela
ficou...
Para a sede da
boca, longe ou perto,
Há sempre água, nos campos, nas cavernas;
Até no adusto,
no infernal deserto
Há oásis com
cisternas.
Mas para a
sede da alma, se algum dia
Seca a fonte
d'amor, que lho concede.
Não há senão,
após lenta agonia.
Senão morrer
de sede...
Para a alma
que extática se dobra
Ante a fonte
escolhida em sítio ameno,
A água de
outras fontes é salobra,
Quando não tem
veneno...
***
O JAZIGO
(A Antônio Viana)
Assim
fazia Santa Ida Duquesa
de
Saxônia, que mandando
em
vida lavrar de mármore o seu
jazigo,
todos os dias o enchia de
diversas
coisas de comer, e vestir,
e
as distribuía pelos pobres.
Pe. Manuel
Bernardes: Exercícios Espirituais.
Diz a Princesa
loura, surpreendida
Pelos olhares
de seu esposo, agrestes:
— “Que
espanto, o vosso! Pois não me dissestes
Que era uma
doida e dava sem medida?
Este jazigo
então comprei, rendida
Aos severos
conselhos que me destes,
E nele meço o
pão, dinheiro e vestes,
Que aos
tristes dou de miserável vida.
Alqueire de
piedade, e caixa, um dia,
De cinzas
funerais, tangem violas
Em torno dele
serafins alados...
Vossas ordens
cumpri como devia:
Seja medida
agora das esmolas
O que breve o
será de meus pecados.”
***
OLHANDO AS NUVENS
Ao comparar,
Lucinda, o teu novo retrato
Com o outro
que me deste há um mês, indo-te embora,
Em dúvidas
cruéis me perco e me debato,
Pois ou um
deles mente, ou tu és outra agora.
Não és a
mesma, não! O teu sorriso tem
A mesma graça;
a fronte e a boca voluptuosa,
O colo e as
finas mãos são como eram... porém,
Tens a mais
não sei quê, falta-te qualquer coisa.
O que é que te
mudou, o pesar ou a doença?
Seriam da
saudade as frechadas agudas?
Como foi que
num mês fizeste assim diferença?
Como serás
daqui a um ano, se assim mudas?
Ante os
retratos, flor, meu peito mal suporta,
Cheio de
confusão a mágoa que o trucida:
Aquele que eu
já tinha é um retrato de morta,
E o que hoje
recebi, duma desconhecida!
Enquanto assim
padeço, ao céu os olhos ergo,
Ao céu, lagoa
azul onde as velas são asas...
Vejo as nuvens
correndo... e nas nuvens enxergo,
Inflamado pelo
sol, um castelo de brasas.
O castelo
rutila em faustoso lampejo,
Qual torre de
cristal onde dorme um tesouro;
De súbito,
porém, sem saber como, vejo
O castelo
mudado em lucífero touro.
Mas no dorso
do touro uma Deusa se deita,
Sob o fardo
divino eis que o touro galopa,
E assim, no
céu aonde a lua ansiosa espreita,
Parece-me ver
Zeus arrebatando Europa!
Deusa e touro
depois transformam-se em navio,
Buscar o Velo
d'Ouro os Argonautas vão...
Desfaz-se a
nau solene, e em nobre desvario
O amante de
Medeia acutila o dragão!
Mas já a noite
desce... E a nuvem destroçada.
Que foi
castelo a arder, touro, mulher divina.
Nau, herói e
dragão... ei-la enfim desdourada.
Triste e
sombria como um fumo d'oficina...
Deste espírito
enfermo os debates danados
Param: a nuvem
alta aplacou-os, desfez-mos...
— Como a nuvem
do céu, morremos aos bocados,
Como a nuvem
do céu, nunca somos os mesmos...
Viver,
agonizar... Cada instante é uma cova!
Um beijo é o
falecer gostoso dum desejo...
E se te beijo
a boca aromática e nova,
Não sou o
mesmo já que te pedira um beijo!
Somos um para
o outro, amor, qual fugidia
Sombra d'ave
que passa em cristalina veia...
Ai de ti! ai
de mim! Um olhar é uma agonia,
E a palavra é
na boca o estertor duma ideia!
Quantas vezes
cerrei os olhos, comovido,
A ouvir a tua
voz de prata! e ao despertar,
Parecia-me,
meu bem, que me tinhas fugido,
E que outra se
sentara ali, no teu lugar!
Nunca
encontrei nos lábios teus o mesmo gosto,
Fonte onde vão
beber à tarde os meus revezes...
Mil rostos
tenho visto em teu magoado rosto,
E lábios mil
beijei, se te beijei mil vezes!
Sou o mesmo
para ti! Veloz, o tempo flui,
E ai quantos
homens já em mim agonizaram!
Afinal o que
sou? A campa do que fui!
Mil vezes te
beijei? Mil homens te beijaram!
Ai de mim! ai
de ti, pérola! Foi traçado
Que os nossos
corações, mal noivem, logo enviúvem
E ai! quanta,
quanta vez temos enviuvado,
Ó nuvem para
quem sou também uma nuvem!
Ó morta, ó
viúva, ó noiva! ó beleza celeste,
Beleza que só
és na inconstância constante!
Afagando-te
agora, o remorso me veste,
Pois julgo
atraiçoar a que eras há um instante!
Não mudes mais,
por Deus! És o monte de neve
Que se
transforma quando o sol o descongela:
Teu mavioso
olhar é um relâmpago breve,
E eu quisera
mudado o relâmpago em estrela!
Para! não
mudes mais! Só tens de fixo o nome!
Lucinda, ao
ver-te assim de hora em hora mudada,
De tal modo
enlouqueço e a febre me consome,
Que te quisera
ver aí petrificada!
Invejemos,
Lucinda, as estátuas que a Arte
Ergueu, num
repto audaz aos ventos do porvir!
Fora eu uma
estátua, e pudesse beijar-te!
Foras tu uma
estátua, e pudesses sorrir!
Se fôssemos de
Jaspe! Eu, Sátiro amoroso,
E tu, Ninfa
gentil, nos meus braços tremendo!
Mas o que peço
eu? Delírio doloroso!
Resignemo-nos,
flor, continuemos morrendo...
Quando a Morte
aclarar os supremos mistérios,
Das nossas
almas vendo o lamentável fundo,
Encontraremos
lá dois grandes cemitérios.
Mais vastos
que o maior cemitério do mundo;
Cemitérios
aonde, em grupos esfumados,
Pisando um
trilho só de saudades florido,
Os mil
fantasmas errarão, desconsolados,
Dos mil
amantes que até lá teremos sido!
***
O ELMO
(A Carlos Malheiro Dias)
O campo que aí
vês, teatro duma guerra
Há muitos anos
foi:
Cada passo dos
teus nesta fecunda terra
Mede a campa
dum herói!
Olha a seara
d'ouro, olha os cachos dourados
Da vinha bela
e forte!
Campos férteis
não há como os que são lavrados
Pela charrua
da Morte...
Onde o sangue
correu e a traição virulenta
Rastejou na
poeira,
Arrulham
pombas na folhagem da cinzenta,
Pacífica
oliveira...
Espelho oculto
dos sons, o eco destes montes
Redisse ais e
estertores;
Mas hoje só
repete o chalrear das fontes
E o clamar dos
pastores...
Aqui foi que,
há um instante, à sombra densa e grata
D'alto chorão
virente,
Entre ervas e
calhaus, um elmo achei de prata.
Lavrado
finamente;
Elmo estranho,
que o vento ou que um baldão do acaso
De negra terra
enchera,
E onde, como
em bojudo e caprichoso vaso,
Pálida flor
nascera.
Antigo
protetor da fronte nobre e ousada
D'algum moço
guerreiro,
Sentiu-a
latejar, doidamente abrasada
Num sonho
carniceiro:
Protegendo-a,
sentiu dentro de si a voz
Da crueldade
hirsuta,
Ímpetos de
extermínio e de vingança atroz,
Estos de fera
bruta!
Mas o herói
baqueou: golpe certo e profundo
Prostrara-o
num momento!
E o elmo ouviu
então do moço moribundo
O último
pensamento,
Que alçando-se
no ar, como ave luminosa
Foi para longe
a voar.
Até cair aos
pés duma donzela ansiosa,
Que se pôs a
chorar.
Sonhos de
glória e vós, ódios que nos tornais
A vida em
escuro inferno,
Sois uma cinza
vã, sois cinza e nada mais:
Só o amor é
eterno!
De quanto
palpitou no elmo refulgente
Só não morreu
o amor,
Que simples,
virginal, balsâmico e inocente,
Revive nesta
flor!
***
FLORES SECAS
Um livro que é
um herbário! Ressequida?
Doce aroma
suavíssimo exalando,
Folhas e
flores estão assinalando
As passagens
do texto preferidas.
Nestas
páginas, horas esquecidas,
Que de sonhos
andamos levantando!
Mas tu
morreste, lírio puro e brando,
De olhos leais
e mãos compadecidas!
Este feto
recorda-me um domingo,
Nestas avencas
teus dedinhos vejo,
Nestas algas,
do mar ouço a canção...
Mas se olho
estes jasmins, já não distingo
O que me deste
com o primeiro beijo,
Daquele que
tirei do teu caixão!
***
SOB OS OLHOS DE DEUS
(Aos meus amigos Conde de Arnoso e Conde de
Sabugosa)
Esposos de
irmãs, irmãos pela amizade,
Na honra e
brio irmãos, quis o Senhor
Irmanar-vos
ainda numa dor
Maior que a da
viuvez e a da orfandade.
Um perde a
filha em plena mocidade,
Da beleza e da
graça em pleno alvor;
Perde o outro
um filho, exemplo de valor,
Maravilha fatal da nossa idade!
Tristes pães
sem ventura, que, abraçados,
Do cemitério
percorreis os trilhos
Todos
cheirosos a cipreste e a goivos,
Vossas frontes
erguei aos céus dourados.
Onde agora
talvez os vossos filhos.
Sob os olhos
de Deus, caminhem, noivos!
***
CREPÚSCULO
(Ao Conde de Monsaraz)
O anjo esbelto
que o sol dourava ainda há um instante
Na grimpa
airosa e audaz da catedral sombria,
Anjo de ferro
agora, imóvel, dominante,
É o anjo da
Saudade e da Melancolia.
Tristes como
quem vai caminho do desterro,
E silenciosas
como a própria paciência,
Ajoelhadas aos
pés daquele anjo de ferro,
As casas fazem
seu exame de consciência...
Ódios, ânsias
d'amor, revoltas com a desdita,
Glórias feitas
em pó, sonhos cor das estrelas,
Quanto os seus
corações palpitantes agita
Tudo se mostra
nos seus olhos, as janelas.
Uma, aberta,
vejo eu naquele prediozinho,
Que me enche
de amargura e comiseração:
Ali dentro
morreu ontem um meu vizinho
Que deixou a
mulher e três filhos sem pão.
Como eu
cálculo o quarto! As mesas atulhadas
De remédios;
um Cristo; o espelho quedo, absorto
No chão pingos
de cera e rosas desfolhadas,
E a um canto,
num cabide, os casacos do morto.
E para além
desse quarto adivinho uma sala
Onde a viúva
abraçada aos órfãos sonolentos
Finge ouvir
semitonta uma velha que fala.
Em suspirosa
voz, nos seus padecimentos.
Adiante, um
rés-do-chão. Vê-se pela vidraça
Uma alcova de
pobre, arranjadinha e calma:
Lá dentro uma
mulher, toda brandura e graça,
Despe,
beijando-a muito, a filha da sua alma.
A menina
boceja, ergue os braços ao ar.
Treme ao
ver-se em camisa, e a boa mãe piedosa
Junta-lhe as
mãos em prece, ensinando-a a rezar,
E aninha-a nos
lençóis... Deus a faça ditosa!
Naquele
esmadrigado e negro pardieiro
Sabeis quem
mora? É a mulher de Pedro Sem
Ei-la à janela
a olhar, a olhar no nevoeiro.
Pobre! que
tanto teve, e agora nada tem!
E o que ela
roga a Deus que faça a noite espessa,
Que oculte em
nuvem densa a prateada lua.
Para que
possa, sem que alguém a reconheça,
ir postar-se a
pedir à esquina duma rua!
A seguir, um palácio.
Ao retângulo ardente
Duma sacada
surge a fronte esmaecida
D'alva donzela
que olha a rua cegamente,
Como um pobre
a buscar uma moeda perdida.
Ai da moça
gentil que em cruéis agonias,
Erguendo os
olhos só para os fixar no céu,
Inutilmente
aguarda o noivo que há três dias
Abalou
taciturno e não mais apareceu!
Passos
andados, eis-me a fitar com tristeza
A silhueta
febril dum homem desgrenhado,
Que em
repetidas contorções de fera presa
Passa e torna
a passar num estore iluminado.
Bem sei, bem
sei quem és, trágico passeante,
Poeta ingênuo
como os lírios da manhã;
Conheço a tua
dor: fugiu-te a loira amante,
Ó desgraçado
suicida d'amanhã!
Em lobrega
mansarda alguém chora e soluça:
Uma esposa
infeliz, em contorções de dor,
Toda se
estende lá de cima e se debruça,
Esperando o
marido que é — ai dela! um jogador!
E o seu chorar
tem eco! Outro vulto franzino
Chora e soluça
ali, numas águas-furtadas:
Aflita mãe
aguarda o filho libertino,
Tremendo de o
saber preso ou morto às facadas.
Mas mais
triste que a viúva e que a noiva traída,
Que o amante
abandonado e a receosa mãe,
É aquela
mulher tão nova e envelhecida,
Que olha não
sabe o quê, espera não sabe quem.
Bordadora ou
rendeira (os seus dedos de flores
Revelam
claramente um mister delicado),
Movendo a agulha
d'ouro ou os bilros faladores,
É seu triste
viver o de um rio parado.
Moça, mal
começou seu peito a arredondar-se
Como onda de
jasmins e delicadas rosas,
Logo um sonho
d'amor pegou a desenhar-se
Na sua alma
infantil, em cores maravilhosas.
A par iam
crescendo em beleza e alegria
Seu corpo
virginal e o sonho que a enlevava:
— “Será hoje,
será?” cada manhã dizia,
E cada noite
pelo outro dia suspirava...
Mas o Amado
não vinha, e o tempo ia correndo
Com duros pés
sobre seu peito solitário;
E ela sempre a
esperar, sempre a esperar, não tendo
Outros amores
senão um craveiro e um canário.
E o tempo a
galopar! Seus olhos mal enxutos
Buscam doidos,
em vão, outros com que sonhou...
Pobre árvore
gentil de aromáticos frutos.
Nascida num
deserto onde ninguém passou!
Ninguém a viu,
ninguém a vê! Desgraça imensa!
Virgem branca,
pela dor que a oprime é uma viúva,
E o seu sonho
d'amor ante aquela indiferença
Bruxuleia, a
morrer, como uma luz à chuva...
Noiva, com que
ternura honesta e chilreante.
Do marido
implorara os cândidos desejos!
Mãe, como ela
beijara o louro filho! e amante.
Que
embriagante mel não teriam seus beijos!
Porém, ninguém
a vê! Em célere carreira,
Tomado o tempo
vai de infrene desvario,
E hoje a
triste, ao pentear a longa cabeleira.
Entre os cabelos
d'ouro uns dois de prata viu!
É noite. Rompe
o luar. Da gente que ali passa
Ninguém a vê,
tão doce e pálida, ninguém!
E ela, colada
a fronte alvíssima à vidraça.
Olha não sabe
o quê, espera não sabe quem,
E no meio do
seu angustioso sossego,
Pede, juntas
as mãos, um sobressalto forte,
Venha ele, que
importa? em tropeções de cego,
Pelo braço do
Amor ou pela mão da Morte!
***
DIAMANTES E PÉROLAS
(A D. Júlio Nombela y Campos)
(Sobre
uma passagem do Padre Manuel Bernardes alusiva à morte de Filipe II de Espanha)
O soberbo
monarca, em vasto leito
D'ébano e
d'ouro, jaz agonizante;
Seu filho, que
soluça, traz brilhante
Roupa de seda
e o Tosão d'Oiro ao peito.
Os cortesãos
de conturbado aspecto
Ostentam finas
drogas do Levante,
E no anel dum
bispo roçagante
As gemas
fulgem com discreto jeito.
Mas nisto, o
moribundo, abrindo os olhos
Cheios de
estranho, de inspirado brilho,
Arreda o
lençol branco e transparente,
Mostra o seio
coberto de piolhos,
E ao filho diz: — Vê no que deram filho,
Os diamantes e as pérolas do Oriente!
***
O QUADRANTE
Por que não
entras tu no meu jardim um instante?
Nunca vi tarde
assim, de tanta suavidade,
E na minh'alma
chora uma sede abrasante
De amar com
singeleza e com terna humildade.
Entra. Não
tenhas medo. Hesitas? Fui, é certo,
Assomado,
violento e surdo à tua dor.
Quando às
pedras lancei, em fatal desacerto,
A âmbula de
cristal que enchêramos d'amor.
Mas se tão
duro fui, tu que tão meiga eras,
Por capricho
infantil, vestiras-te de gelo,
E amando-me
com a força invencível das heras,
Simulando
desdéns, folgavas em escondê-lo.
Cobiça a
criancinha uma boneca linda:
Dão-lha. Que
amor lhe tem! Não há fruto nem joia
Que a tentem!
Dura isto um dia, e um dia ainda...
Mas ao
terceiro, enfim, num ímpeto, destrói-a!
Eu e tu, loira
amiga, essa criança fomos,
Destruímos
nosso amor, malfadada boneca!
Fugindo dum
pomar onde eram d'ouro os pomos,
Rilhamos, por
castigo, urzes duma charneca!
A Ventura
passou, modesta e com sossego,
Junto de nós
que não a vimos, sob os freixos,
Cegos, tão cegos
como o pobrezinho cego.
Que pisasse
dobrões, julgando pisar seixos!
Mas tudo isso
se extingue em neblinas distantes,
E o bom tempo
adoçou as mais amargas dores:
Perdoemo-nos,
amor, e amigos como dantes,
Vamos neste
jardim perder-nos entre as flores!
Íris, fúcsias,
jasmins, o cacto e a clematite
Porfiam em
prender os teus olhos românticos,
E açucenas às
mil dizem-nos, Sulamita,
Que entoemos
de novo o cântico dos cânticos!
Mas que
silêncio é o teu? Não viste a comoção
Que me sacudiu
quando há pouco te encontrei?
Não
acreditarás na minha contrição,
Nem me
perdoarás como eu te perdoei?
Esse silêncio
é orgulho! Uma paixão imensa
Ateia-se em
tua alma ardente e lastimosa:
Olham-me os
olhos teus com fingida indiferença
Mas tua mão na
minha estremece nervosa!
Beija-me!
Assim, assim... Que lânguido alvoroço!
Milagre! Ouço
florir meus tristes desenganos!
Beija-me! Aos
beijos teus, estranho-me, remoço,
Julgo ter
outra vez os meus vinte e dois anos!
Choras? De
novo és minha!... Oriental tesouro
Se oferece ao
rei sem trono, enfermo e mendicante!
Sossega, meu
amor; limpa os teus olhos d'ouro,
Senta-te aqui
um pouco, e olha aquele quadrante.
Ele te
ensinará, meu encanto, a verdade,
Que todo o
orgulho é vão, vãs todas as querelas,
Que o amor
deve sempre ir pela mão da caridade,
Que as horas
sombras são, e a vida a sombra delas...
Olha o
quadrante bem: dum cinzel inspirado
Finos lavores
expõe na tarja que o circunda,
Enquanto,
lenta, sobre, o mármore rosado
Avança a
sombra azul desta hora moribunda.
Entre fartos
lauréis, entre frutos e flores,
Nessa tarja
morriões e escudos acharás,
O alado
caduceu, a tíbia dos pastores
Da Arcádia, e
d'Eros louro o florido carcás.
Aos símbolos,
porém, da guerreira loucura,
Da ambição, da
poesia e do amor, sobranceira,
Remate singular
de tão bela escultura,
No quadrante
verás também uma caveira!
Guardadora
feroz das Horas, que, singelas,
Mal nascem
morrem logo, em cândidos delírios.
Qual madrasta
as vigia, a ver se alguma delas
Se demora a
apanhar borboletas ou lírios.
Não sentes um
ar de morte a envolver-nos, querida?
A sombra azul
prossegue em seu andar furtivo...
Tenho sede de
amor, tenho fome de vida!
Digam-me os
beijos teus que vives e que vivo!
Passa no meu
cabelo as tuas mãos radiosas,
Chega bem para
mim teu corpo e tuas vestes,
Enquanto além
na sombra agonizam as rosas,
E a nossos pés
se alonga a sombra dos ciprestes!
***
CARPE DIEM
Por que tão
tristes e fechados vamos?
Negro crime
fazemos!
É de rosas o
mar onde singramos,
De ouro fino
estes remos...
O Amor leva o timão;
a Esperança rema,
Risonha e
decidida...
E em volta
cada vaga que se extrema
É uma sebe
florida.
Ri o sol,
canta o céu, cantam as águas
E canta a
viração!
E nós a
desfiar contas de mágoas
Com dedos de
aflição...
Da Aliança, no
azul cintila o Arco,
E nós,
tristes, no meio
Desta alegria,
somos neste barco
A Saudade e o
Receio...
Gozemos! Canta
e ri! O tempo foge,
Meu amor,
minha irmã...
Mas se é tão
lindo e claro o dia de hoje,
Que importa o
de amanhã?
Acaso os
noivos, dize, tu que me impeles
No futuro a
pensar.
Vão de luto
casar-se, por que um deles
Do outro há de
enviuvar?
Por mais que
aí cogites no futuro,
Muda e
sombriamente,
Não lhe
abrandas por certo o gesto duro...
Saboreia o
presente!
Canta e ri,
meu amor! E que eu contigo
Cante e ria
também!
Se és minha
amiga e eu sou tão teu amigo.
Que mais
queres, meu bem?
Quando, de
hoje a cem anos ou duzentos.
Branda vida
aquecesse
O pó que então
serás, brinco dos ventos,
E alguém te
propusesse.
Ao dia de hoje
regressar, a troco
De pungente
agonia.
Tudo o teu
espírito enlevado e louco
De pronto
aceitaria!
Sim! Para ao
dia de hoje regressares,
Tu que tão
triste vais,
Sofrerias
suplícios e pesares,
Sem queixas e
sem ais;
Então darias
desses lindos olhos
A vida, a
claridade,
E andarias
descalça em chão de abrolhos
Por toda a
Eternidade!
***
HORTO FLORIDO
À terra, para
dar frutos e flores,
Deve ser pelas
enxadas revolvida;
Assim, pela a
alma se mostrar florida
Deve cavada
ser por bastas dores.
Por isso, não
quis Deus, ó meus amores.
Que o vosso
olhar me iluminasse a vida.
Sem que a
minh'alma fosse bem ferida.
Do sofrimento
pelos cavadores...
Chegastes, —
meu campinho era lavrado.
Vede que lindo
está, e com que viço
Cresce aquela
seara de desejos!
Vede aquele
rosal, que é um noivado,
E as abelhas
ouvi, que no cortiço
Andam a
fabricar o mel dos beijos...
***
OS MEUS FILHOS
(A meus pais)
I
VIOLANTE MARIA
LUIZA
Acorda cedo
como os passarinhos
E vem logo
direita à minha cama;
Sacode-me com
jeito, por mim chama
E abre-me os
olhos com os seus dedinhos.
Estremunhado,
zango-me. — “Beijinhos,
Não quer
beijinhos?” com voz d'ouro exclama
Da minha ira
empalidece a chama,
E
acarinhando-a pago os seus carinhos.
Senhor! Que
amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um
caminho brando e sem abrolhos,
Dá-lhe a
Virtude por amparo e guia;
E destina
também, ó Pai celeste,
Que a mão com
que ela agora me abre os olhos
Seja a que há
de fechar-mos algum dia!
II
MARTIM
Nasceu: era um
varão! Com febre ansiosa,
A riscar seu
futuro eis que me ponho:
Grandezas a
grandezas sobreponho,
E minh'alma
não para, ambiciosa!
Gênio insigne,
consciência luminosa,
Santo, poeta,
herói! Manso e risonho,
Mal enche o
berço... mas como eu o sonho
Enche de luz a
vida tenebrosa!
Veio a morte e
levou-mo! Altas montanhas,
Como invejei
os musgos de veludo
Dos vossos
cumes solitários, calmos!
Títulos,
honras, glórias e façanhas,
Tudo quanto eu
sonhara, coube tudo
Num
caixãozinho branco de dois palmos!
III
LUÍS
Não peço para
mim! Foram baldadas,
Foram vãs
minhas súplicas, Senhor!
Eu que um
trono sonhei, fiquei pastor
De gado triste
em serras escalvadas!
Eu que cegara,
moço, vendo ateadas
As chamas da
ambição, de astral fulgor.
Contemplo
agora, em frêmitos de dor,
Um montão só
de cinzas apagadas!
Não me queixo,
e a teus pés todo me humilho!
Mas se mereço
um prêmio, porque esteja
Tão resignado
e dócil como estou.
Compensa o pai
humilde, erguendo o filho:
Dá-lhe o que
me negaste, e que ele seja
Aquilo que eu
quis ser e que não sou!
IV
CONSTANÇA
Dorme... Sobre
o tapete eis que descansa
Dos sapatinhos
dela o exíguo par:
Lembram as
conchas que o bondoso mar,
Para brinco
infantil, às praias lança.
Maior que
qualquer deles, se balança
Pálida rosa
além, filha do luar...
Tristes estão!
afeitos só a andar.
Como que este
repouso agora os cansa.
Vendo-os, sonho-a
crescida, a linda flor!
E com as mãos
humildes levantadas
Suplico ao
Céu, em orações singelas,
Que nos
caminhos por onde ela for
Sempre pura e
gentil, suas passadas
Fiquem no chão
brilhando como estrelas.
V
MAFALDA
ERMELINDA
Mais uma
estrela me alumia a casa!
Um novo
rouxinol canta em meu ninho!
Vede se não é
mesmo um passarinho,
Se uma estrela
não é de luz que abrasa!
Que lindo o
seu dormir, com jeito d'asa
Sob a fronte
disposto o alvo bracinho!
Mas por vezes,
se a vejo, se a acarinho,
Desta alma uma
dor súbita extravasa.
É que, se,
fiado em Deus, estou contando
Para os meus
filhos com uma vida bela,
Feita de dias
claros e serenos,
Comparando-a
aos irmãos, fico pensando
Que, sendo ela
a mais novinha, é ela
O filho com
quem hei de viver menos...
***
EPÍLOGO
(À minha mulher)
A cem portas
bati por noite agreste
Em que o vento
mugia como um touro,
Antes de enfim
parar à porta d'ouro
A cujo limiar
me apareceste.
Nos versos que
aí ficam, se é que os leste,
Talvez pela a
nossa estima aches desdouro,
Sob o cipreste
vendo, ou sob o louro.
Tantas amadas
de perfil celeste.
Mas não! Ao pé
de ti, sou outro. A vida,
Sopro de
bênçãos, no meu horto flui...
E aquele que
divaga nas alfombras
Deste livro,
lunática avenida.
Não sou eu, é
a sombra do que eu fui.
Uma sombra
saudosa doutras sombras!
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