A arte e o pessimismo de Eugênio de Castro
Dada uma tal forma e natureza de espírito, nada
mais consequente do que afirmar-se Eugênio de Castro, realmente, como o criador
de Beleza que indicamos — criador de Beleza no sentido de síntese eurrítmica,
de decoração e sugestão pictural, de fluidez melódica e riqueza harmônica.
E neste artista, que é um consciente, a compreensão
da arte conjuga-se intimamente com a maneira de ser. Por isto o presente texto
não será mais do que outra face da mesma moeda onde tentei gravar-lhe a efígie.
Se ele vê e sente por imagens vivas, se é sob essa
feição que as suas melhores energias psíquicas lhe veem desabrochar na
consciência — pensamentos e sentimentos, próprios ou alheios, só o interessam
também a valer quando vazados em formas belas e movidos em cadências
copiosamente ondulantes. Essa faculdade criadora de Beleza explica a sua
orientação estética, a direção da sua atividade artística — o seu idealismo e o
seu simbolismo. Fundamenta e justifica o seu culto do estilo, tal como ele o concebe, de preferência à notação do caráter.
Veremos que, a par da sua orientação estética, nos
explicará também, de unida que vai com esta, a sua noção de Vida.
Perante as manifestações do Pensamento e da Emoção,
é, na verdade, o esteta que predomina em Eugênio de Castro. Um poeta que, como
ele, ama e sabe amar a Beleza, erguendo-a num culto, não pode deixar de
manifestar essa tendência e essa qualidade. Assim, reveste sempre de nobreza e
prestígio, de interesse glorificante, ou de tocante graça as paixões que
objetiva, os sentimentos que aditam as almas dos seus personagens. O artista é
que distingue para o homem.
Sim, até no gênero de poesia onde se fundem as
fronteiras da Vida e as da Arte, onde a revelação pessoal põe um abalo de calor
humano — até mesmo aí ele nos aparece, acima de tudo, como mil cultor da harmonia,
como um criador de formas belas.
Nos próprios sonetos e outras poesias de caráter
amoroso, se muitas vezes esbate longes de tristeza, se se envolve em conceitos
de intenção magoada e pessimista, se acentua acordes bemolados de saudade — a
emoção penosa parece vir logo suavizada pela virtude derivante do instinto e do
senso artístico, que lhe transforma as lágrimas em pérolas. Os seus movimentos íntimos
exteriorizam-se e continuam-se em ritmos que os coordenam e desafogam
docemente, através modulações de balanço hipnotizante, e de curvas atenuadoras.
É como se este poeta se desdobrasse em duas personalidades, das quais uma
embalasse e amaciasse os cuidados da outra na melodia encantada dos versos
admiráveis. É como se ele, para si próprio, fosse ao mesmo tempo Saul e Davi.
Se sofre, não nos deixa ver crispações violentas,
não nos deixa ouvir gritos estrangulados, nem gemidos arquejantes. Assistiremos
antes a cortejos de imagens melancólicas de onde apenas se erguem suspiros
musicais, acompanhados de altitudes e gestos majestosamente ou graciosamente escandidos. Não fará da
lamentação individual, da desvendada confissão das lástimas e das fraquezas
próprias o fim ou o interesse capital da sua arte.
Dir-se-ia que erigiu em preceito o verso célebre de
Alfred de Vigny — pelo menos em toda a extensão significativa das duas
primeiras palavras:
Gémir, pleurer, prier est également láche.
Na arte, como na vida, onde agora vamos encará-lo,
domina-o sempre o pudor da sua exibição total, a par de um mal dissimulado e
lógico desdém pelos inquietos e pelos plangentes. Quer isto dizer que este
poeta seja de todo surdo e impenetrável à dor, e que nele não vibre a corda da
piedade? — A dor e o sofrimento humano são para ele, como poeta, apenas temas
de Arte; e, em geral, nessa qualidade, têm valor igual ao de outros temas da
mesma intensidade artística.!Em geral" — escrevi eu. Não sempre. E não é indiferente
fazê-lo notar; pois a observação importa o reconhecimento de algum outro e novo
aspecto. Pelo menos de uma modalidade nova, revelada no livro da fase mais
recente. Digamos (desde já que essa modalidade não lhe contrariou as linhas
fundamentais da sua estética, não obstante enriquecer-lhe e ampliar-lhe a
significação moral da obra total. Digamos mais que esse livro não veio acusar
uma transformação ou desvio importante da sua compreensão da vida, não obstante
trazer-lhe à sua arte uma nota mais enternecida.
Vejamos então: qual é a sua noção compreensiva da
Vida? É nesta altura que melhor cabe a pergunta. E a reposta a dar, por
estranha que a princípio possa parecer é esta: a sua noção de Vida resume-se no
pessimismo.
Resposta tão vaga, no entanto, que também agora
careço de apertar-lhe o sentido!
O seu pessimismo não é o do estoico, cujo
recolhimento em si próprio representa, a um tempo e conjugadamente, a reprovação
das fraquezas humanas e o orgulho amargo do seu isolado valor moral.
O seu pessimismo não é o do místico — que
desejaria, consumindo-se, consumir na mesma chama de fé toda a maldade do
mundo, volatilizar a vida para que a sorvesse um hausto do céu. E, não sendo
nenhum destes, não é também o dos que têm a explicação da visão verde-triste e
da acidez da alma no vago e insondável inferno das suas sinestesias anormais. O
seu pessimismo é cerebral e não visceral. Distingue-se dos dois primeiros pela
natureza do seu objeto, e do terceiro pela origem orgânica.
O seu pessimismo é o pessimismo dum esteta. É,
portanto, um novo reflexo da mesma natureza e forma de espírito que em tudo e
sempre se lhe reflete. Eugênio de Castro é pessimista, porque não acha o mundo,
o mundo do homem de hoje harmoniosamente belo; porque o ferem, mais do que a
outros, os aspectos desgraciosos, os lados triviais e mesquinhos, os detalhes
vulgares da existência atual, dentro desta civilização que bestializa as almas
na luta crua dos interesses materiais, que esfaqueia e prostitui a natureza e
as paisagens numa fúria bruta de industrialização. Porque é este o seu modo de
ver, e não outro, é que ele é um esteta, no sentido em que tomo a palavra. E
porque é essa a causa fundamental do seu pessimismo é que se explica, pelo lado
da noção da vida, como se explicou pelo lado da forma do espírito, a sua atração
para mundos longínquos, sobretudo distantes no tempo. É lá que se refugia, como
um auto-exilado, sem rancor nem protesto, para erguer ou contemplar as belas criações
em que lhe aparece uma outra Humanidade (no fundo a mesma), transfigurada pela
ilusão da perspectiva, purificada pela graça da Arte. Como se vê, o seu
pessimismo não lhe torna o espírito infecundo e sáfaro. E não seria difícil
filiar o tédio de Sagramor exatamente na intemperança do Desejo. Se, em grande
parte, a sua desilusão nasce da incompatibilidade atual entre a Arte e a Vida,
tais como as concebe, a desilusão não o aniquila. Já vimos que se compensa com
o refúgio na Arte. Mas a Arte e a Vida condicionam-se mutuamente, no fundo — a
não ser que se trate de arte morta, de cópia de modelos, de exercício literário.
Era, pois, natural que ele na Vida — visto que a exige bela — quisesse ver
prolongada a Arte.
Como a prolonga para a Vida? Do melhor modo por que
hoje, realmente, um espírito do seu feitio a podia prolongar: pelo
desenvolvimento pessoal, pela integração, em si próprio, de quanto sejam
elementos concordantes no sentido do seu aperfeiçoamento, E, como, hoje, nessa
integração havia de entrar o elemento moral, explicam-se: no homem uma
resgatadora e crescente beleza da afetividade superior — no artista a
amorabilidade do seu poema mais recente. Se para os outros a Arte é uma função
da Vida, para ele a Vida é uma função da Arte. E se esta fórmula revela, por um
lado, uma concepção socialmente
imperfeita, por outro lado, revelar com efeito, em semelhante caso, um princípio
de perfeição individual.
Tudo no mundo é instável. As profecias falham. Mas
consola-me crer na persistência dessa aspiração.
---
MANUEL DA SILVA GAIO
Coimbra, 25 de fevereiro de 1902.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020).
Coimbra, 25 de fevereiro de 1902.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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