O travesseiro de penas
Tradução: Iba Mendes (2020)
Sua lua-de-mel foi um grande desengano. Loira, angelical e tímida, o gênio severo de seu marido arrefeceu-lhe as ingênuas ilusões de noiva. Ela o queria muito, embora às vezes com um leve estremecimento quando, retornando à noite juntos, pela rua, dirigia um olhar furtivo à alta estatura de Jordan, calado já havia uma hora. Ele, por sua vez, amava-a profundamente, sem no entanto demonstrá-lo.
Durante três meses (tinham se casado em abril) viveram uma felicidade singular. Sem dúvida ela tinha desejado menos rudeza nesse áspero céu de amor, mais afabilidade e incauta ternura. Porém o impassível semblante de seu marido a limitava sempre.
A casa em que viviam pouco influía em suas emoções. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de castelo encantado. Lá dentro, o brilho glacial do estuque, sem a mais leve arranhadura nas altas paredes, fazia transparecer aquela desagradável sensação de frio. Ao passar de um compartimento a outro, um eco de passos se repercutia em toda a casa, como se um longo abandono lhe houvesse avivado sua ressonância.
Nesse estranho ninho de amor, Alícia passou todo o outono. No entanto, acabara por deitar um véu de esquecimento sobre seus antigos sonhos, e assim vivia adormecida, na casa hostil, sem se importar com mais nada, até que chegasse o marido.
Não é para admirar que houvesse emagrecido. Teve um rápido ataque de influenza que se arrastou insidiosamente dias e dias. Alícia não melhorava nunca. Afinal uma tarde pôde ir até o jardim apoiada no braço do marido. Olhava indiferente de um lado para outro. De repente, Jordan, com profunda ternura, passou-lhe a mão pela cabeça e Alícia rompeu imediatamente em soluços, atirando-lhe os braços ao pescoço. Chorou por longo tempo, desabafando assim todo o seu espanto reprimido, redobrando o pranto à mais leve carícia do marido. Depois os soluços foram se apequenando e ainda ficou longo tempo inclinada sobre o peito de Jordan, sem ensaiar o menor movimento e sem proferir uma só palavra.
Foi esse o último dia em que Alícia esteve de pé. No dia seguinte amanheceu desacordada. O médico de Jordan examinou-a com o maior cuidado, ordenando calma e repouso absolutos.
— Não sei — disse ele com voz baixa a Jordan, já saindo para a rua. — Tem uma grande debilidade para a qual não tenho explicação, e sem vômito, sem nada... Se acordar amanhã como hoje, mande me chamar imediatamente.
No dia seguinte Alícia acordou pior. Fez-se uma nova consulta. Constatou-se uma anemia de aguda evolução, completamente inexplicável. Alícia não teve mais desmaios, mas progredia visivelmente para a morte. Durante o dia todo o quarto permanecia com as luzes acesas e no mais absoluto silêncio. Passavam-se horas sem que se escutasse o menor ruído. Alícia cochilava. Jordan passava quase todo o tempo na sala, com as luzes também acesas. Andava de um lado para o outro numa obstinação infatigável. O tapete abafava-lhe os passos. De quando em quando entrava no quarto e continuava o seu incessante vaivém ao lado da cama, parando vez ou outra para contemplar sua mulher.
Logo em seguida Alícia começou a ter alucinações, confusas e dúbias a princípio, e que depois desceram ao chão do quarto. A moça, com os olhos desmesuradamente arregalados, não tirava o olhar do tapete de um e de outro extremo da cama. Uma noite ficou, de repente, com os olhos fixos num ponto. Ao cabo de alguns instantes abriu a boca para gritar, e suas narinas e lábios ficaram tomados de suor.
— Jordan! Jordan! — clamou rígida de espanto, sem tirar os olhos do tapete.
Jordan correu até o quarto e, ao vê-lo chegar, Alícia soltou um grito de horror.
— Sou eu, Alícia, sou eu!
Alícia o olhou alucinada, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um prolongado instante de confrontação e espanto, acalmou-se. Sorriu e tomou entre suas mãos a mão do marido, acarinhando-a durante uma meia hora, sempre tremendo.
Entre seus devaneios mais renhidos, havia um antropoide agachado no tapete, sobre os dedos, que não tirava os olhos dela.
Os médicos retornaram, mas inutilmente. Estava ali, diante deles, uma vida que se findava, definhando-se dia a dia, hora a hora, sem que soubessem a exata razão.
Em sua última consulta, Alícia jazia já sem sentidos, enquanto os médicos a examinavam, passando de um para o outro o braço inerte. Observaram-na longamente, em silêncio, e depois seguiram para a sala de jantar.
—Pst... — disse o médico assistente, desalentado e encolhendo os ombros. — É um caso inexplicável... Pouco há que fazer...
― Era só isso que me faltava! ― exclamou Jordan. E bateu nervosamente sobre a mesa
Alícia foi se extinguindo em seu delírio de anemia, que se agravava à tarde e só melhorava nas primeiras horas do dia. Durante o dia a sua enfermidade não progredia, mas todas as manhãs ela aparecia mais lívida, quase sem consciência. Parecia que apenas à noite lhe escapava a vida, como se lhe esvaísse o sangue. Ao despertar tinha sempre a sensação de estar oprimida na cama, com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esta sensação não mais a abandonou. Somente podia mover a cabeça. Não permitiu que lhe tocassem na cama, nem tampouco que lhe arrumassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares cresciam em forma de monstros que se arrastavam até o leito, e subiam com dificuldade pelo cobertor.
Por fim perdeu a razão. Os últimos dias foram de contínuos delírios à meia voz. As luzes permaneciam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que um delírio monótono que partia da cama, e o rumor surdo e cadenciado dos eternos passos de Jordan.
Alícia morreu afinal. A empregada quando entrou, para desarrumar a cama já vazia, olhou surpresa para o travesseiro.
— Patrão! — disse em voz baixa a Jordan. — No travesseiro há manchas que parecem de sangue.
Jordan se aproximou rapidamente e curvou-se sobre o travesseiro. Efetivamente sobre a fronha, no lugar marcado pela cabeça de Alícia, viam-se pequenas manchas escuras.
— Parecem picadas — murmurou a empregada, após alguns instantes observando.
— Erga-o na direção da luz — disse-lhe Jordan.
A empregada ergueu o travesseiro, porém logo em seguida deixou-o cair e fixou o olhar nele, lívida e toda trêmula. Sem atinar pela razão, Jordan sentiu que seus cabelos se lhe eriçavam.
— O que há? — murmurou com voz rouca.
— É que pesa muito — balbuciou a empregada, sem parar de tremer.
Jordan ergueu o travesseiro. Pesava extraordinariamente. Saiu com ele, levando-o para a mesa de jantar, e ali Jordan cortou o forro da fronha num só talho. As penas que jaziam em cima voaram e a empregada soltou um grito de horror com a boca completamente aberta, levando as mãos à cabeça: sobre o fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola vivente e viscosa. Estava tão inchado que apenas se lhe sobressaía a boca.
Noite a noite, desde que Alícia havia caído de cama, o animal havia sorrateiramente aplicado sua boca, ou melhor, sua tromba, sugando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A princípio, talvez pelo manuseio diário do travesseiro, ele não se desenvolveu tão rápido, mas depois que a moça não pôde mover-se, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, tinha o monstro sugado a pobre Alícia.
Estes parasitas das aves, diminutos em seu ambiente natural, chegam a adquirir em determinadas condições, proporções enormes. O sangue humano parece ser-lhes particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nos travesseiros de penas.
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