O meu encontro com Camilo Castelo Branco
Vi Camilo pela primeira vez quando ele vestia como
Rafael Bordalo Pinheiro o apresenta no Álbum
das Glórias: de botas altas à
frederica, sobretudo cintado, de ratina, e chapéu alto levemente cônico, de
aba direita. Eu morava então no Porto, a meio da rua de Santo Antônio, do lado
norte, e o romancista subia lentamente, pelo passeio do lado oposto, para se
abrigar do sol, a mão direita apoiada na bengala. Estou a vê-lo: só, magro, de
estatura um pouco mais de mediana, bem proporcionado, a tez morena e pálida, o
ar grave, concentrado e melancólico, talqualmente o Picado de gênio e das bexigas do grande caricaturista. Vinha talvez
da Praça Nova, de conversar com o Gomes Monteiro na livraria Moré, ou com o
editor Cruz Coutinho cuja loja, na rua dos Caldeireiros, pouco distava da
primeira; e certamente encaminhava-se para o seu jantar, por volta das 3 ou 4
horas da tarde. Há quarenta ou cinquenta anos jantava-se cedo na cidade da
Virgem.
Passados tempos, Camilo veio uma noite com D. Ana
Plácido e os filhos ao nosso estabelecimento, comprar dois clarinetes para os
rapazes. Meu pai ainda teimou com o romancista para lhe vender de preferência
dois flajolés; não porque fossem mais baratos, mas por serem mais fáceis de
tocar e portanto menos impróprios para crianças. Mas Camilo insistiu: “Eles é
que queriam”.
Não me recordo bem se disse meninos, pequenos ou
rapazes, ou se até os não classificou; só sei que eles iam radiantes com os
clarinetes.
Decorreram anos sem que voltasse a vê-lo, até que
aí por 1882 ou 83, estando eu nas Obras Públicas de Braga, tive frequentes
ocasiões de me cruzar com ele na Arcada. Já não trajava como no Álbum das Glórias; vestia como qualquer
de nós.
Camilo morava então em São Miguel de Seide e
aparecia muitas vezes na cidade dos Arcebispos onde tinha um amigo íntimo,
amigo meu também, João de Mendonça, que morreu professor de línguas na escola
industrial de Guimarães. Era na companhia deste que o grande escritor ia ao Café do Viana, na dita Arcada. Ali
abancava a uma mesa e conversava com a jeunesse
dorée da terra para colher ao vivo, suponho eu, os elementos fundamentais
da imbecilidade nacional. O Mendonça, a quem eu contara as relações artísticas
que noutro tempo haviam ligado meu pai com o grande escritor, quis por vezes
apresentar-me a ele. Resisti sempre. Em primeiro lugar, não queria achar-me
compreendido no número dos destinados ao estudo do romancista; e depois já então
pensava, como hoje, que aos homens de valor devem aborrecer soberanamente as
impertinências da miuçalha.
Era porém com verdadeiro pesar que insistia na
recusa; porque, além de tudo o mais, desejava ouvi-lo acerca de uma peça de
teatro, de costumes minhotos, feita de colaboração por ele Camilo, que dava a
letra, e por meu pai, que punha a música, peça que este me descrevia com
vivíssimas cores e lhe deixara as mais agradáveis recordações. Das conversas
paternas retenho que havia ali uma cena de arraial e que, a folhas tantas,
parodiando a tremenda Semíramis de
Rossini com a sua sombra de Nino, devia na romaria aparecer a sombra dum macho.
A peça tinha entrado em ensaios, mas afinal tudo ficou em águas de bacalhau:
Camilo não terminou a, sua parte.
Creio que isto se deve ter passado aí por 1860 ou
1861. Meu pai era então empresário do teatro Camões do Porto, situado na rua de
Liceirás, que das traseiras da Trindade sobe para a rua do Almada. Dera várias
peças, entre outras o drama sacro São
Gonçalo de Amarante, com música sua. Em 1861, ou 62, desgostoso da carreira
musical que, para o seu caráter altivo e extremamente vivo, lhe trouxera muitos
dissabores e desilusões, abandonou-a por completo; o compositor e o executante
musical consagrou-se desde então apenas à vida do comércio. E seria talvez este
o principal motivo porque não se concluiu a peça de costumes a que atrás aludo.
Mas, voltando ao que ia dizendo, ainda hoje me
penaliza não ter tido coragem para me dirigir a Camilo e falar-lhe dessa peça.
Afinal, passar mais ou menos uma vez na vida por pateta que importava?...
Estava porém escrito que falaria com o grande
homem. Um dia, indo de Braga para o Porto e achando-me já muito comodamente
instalado e só no meu compartimento, quase à hora de partida do trem, vejo
entrar Camilo que, com toda a tranquilidade e vagar, se senta na minha frente.
Não me mexi, nem fiz menção de o conhecer, levado pelo desejo egoísta de
observar à minha vontade aquela fisionomia reveladora duma tão singular e
intensa personalidade. Mas, vai senão quando, ele tira o chapéu, passa a mão
pela fronte e, olhando-me bondosamente, desfecha-me à queima roupa a seguinte
pergunta:
— Então, Sr. Arroyo, que me diz de Braga, que lhe
parece Braga?
Nunca, em momento algum, me haviam feito uma
pergunta que tanto me embaraçasse e surpreendesse. Eu estava então naquela
época da vida em que o mundo existe todo dentro de nós, em que a felicidade dos
poucos anos nos cega para a vida dos outros, em que tudo o que não é nós mesmos
pequena importância tem aos nossos olhos. Fiquei por isso engasgado, sem saber
o que dizer-lhe. Braga, para mim, era apenas a terra em que eu vivia com a
pessoa que ambicionara ter junto de mim, só para mim. E isso não podia eu
dizer-lho. Calei-me. Ele, porém, desde logo obstou à continuação do meu
embaraço, indenizando-me largamente da peça que me havia pregado.
Porque, na mais fluente e portuguesa linguagem que
jamais ouvi, e chamando sempre às coisas e às pessoas pelo seu nome, foi-me
contando várias anedotas passa das na capital do Minho que, para seu pesar, não
era já em 1882 o que havia sido vinte ou trinta anos atrás. Ia-se de todo
esvaindo o caráter que tanto a diferenciava das outras terras do país e lhe
dava uma fisionomia absolutamente típica. As crenças evangélicas das senhoras
de outrora, em que o amor do divino e o amor do humano, Deus e a sua melhor
obra, se confundiam numa única expressão carinhosa, por vezes ardente, mas
sempre ingênua e cheia de graça, haviam endurecido e perdido sobretudo o
aspecto afetuoso para se converterem em manifestações isoladas duma secura
agreste e desagradável. Nas imaginações femininas o homem tomara também o lugar
que era de Deus; e como se fizesse boçal e grosseiro, elas, as pobres senhoras,
foram perdendo a linha de suave e graciosa elegância dessa época morta para
sempre. E citava casos denunciadores da torpeza dos costumes.
Em 82 estávamos nós a dois ou três anos de
distância da Corja e da lamentável
contenda que o seu autor teve com Alexandre da Conceição, contenda de que eu
tanto procurara desviá-lo a este; eram os tempos da invasão realista e os
romancistas teimavam em fazer-nos ver, da fraca humanidade, apenas os aspectos
mais vulgares, mais baixos, rudimentares e incaracterísticos, os aspectos de
ignóbil animalidade que necessariamente se encontram por vezes no rei da
criação. Essa Braga boçal e grosseira revelara com ingênuo cinismo, aos olhos
perscrutadores de Camilo, aspectos similares que ele, obedecendo à corrente da
moda, lindamente contava e descrevia. Contava-os porque de fato pudessem
emparelhar com as mais violentas fermentações das grandes babilônias, ou talvez até para caritativamente me evitar o esforço
que eu teria de empregar se tentasse sair da atrapalhação em que ele me pusera.
Encantava-me, porém, com a sua palavra sempre variada e imprevista e por isso,
de todos quantos casos lhe ouvi, procurarei repetir o último, e também o mais
característico, que ele acabou já à chegada do comboio a Famalicão, onde ficou,
caso que descreveu como que aquarelando a tons variadíssimos, fortes e doces,
meias tintas esvaídas e largas chapadas de sol, o engraçado e angustioso
episódio do Faz de conta, que sou
violentado a reproduzir nas suas linhas principais, como exemplo perfeito e
completo da vida desses tempos cuja perda Camilo vinha lamentando.
Havia então em Braga, a meio não sei já de que rua,
um arco baixo e grosso que uma camará municipal qualquer, porventura menos
temente a Deus, julgou necessário demolir. A demolição fez-se e passou
despercebida, porque o arco não tinha de fato qualidades artísticas nem
utilidade prática a defendê-lo. Era um verdadeiro trambolho a que ninguém
ligava importância. Dava-se porém com ele uma particularidade que o tornava
querido das mais devotas servas do Senhor e lhe criara uma especialíssima
função social. Porque, no maior círio ou procissão que, nesses tempos felizes,
anualmente percorria as ruas da cidade augusta, figurava sempre um altíssimo e
pesado estandarte, S. P. Q. R., vulgarmente chamado Guião, ou guiador do cortejo, o qual, desse por onde desse, tinha
de passar por baixo do arco, mas de uma forma que não brigasse com o caráter
grave e a harmonia festiva do conjunto. Para o conseguir viam-se obrigados a
tombar o pendão para a frente e a passá-lo em posição que mais pareceria de
arremeter, se lhe não atenuassem a rudeza com a necessária compostura. E, como
muita gente junta se não salva, um antigo e venerando uso impunha que a
passagem fosse levada a efeito só pelo porta-estandarte na plena consciência da
sua missão: ele deveria, portanto, aguentar o pendão a pulso rijo e firme,
inclinando-o docemente para diante, e levá-lo de um para outro lado do arco, em
passo sempre lento e nobre atitude. E assim se fazia desde tempos esquecidos,
segundo o ritual consagrado; e todos os anos se renovava esse verdadeiro
triunfo da força bruta posta ao serviço das coisas santas, evocação
michelangesca provocada pela Roma dos papas, mas nascida na Roma dos lusos.
A esse triunfo assistia sempre, possuído do maior
amor divino, o madamismo da cidade que, a peso de ouro e outras formas
equivalentes, disputava a posse das varandas e janelas próximas do arco, apenas
para aquele momento supremo e enternecedor. De toda a cidade, engalanada de
infinitos festões de flores e folhagem, de bandeiras, flâmulas, mastros e
galhardetes, e de todas as casas adornadas de bambolins, colgaduras e sedas de
mil cores, era esse portanto o lugar de maior eleição naquele dia. Por isso
também vinha a cerimônia sendo preparada de longa data. Para a tremenda prova
ia sempre chamar-se o mais perfeito latagão da cidade e seu termo. Era esse o
herói destinado a manter intactos, numa continuidade porventura plurissecular,
o brio, a força e a glória do burgo bracarense; e compreende-se que todos o
cercassem dos maiores carinhos. Nunca o culto da beleza plástica se revelara
tão francamente espiritual.
Demolido o arco na indiferença geral, sucedeu porém
que só lhe deram pela falta no próprio momento em que a procissão ia a passar
pelo local da façanha; e, a um tempo, madamismo, povo e herói, no auge duma
violenta surpresa, sentiram-se roubados e feridos na sua mais profunda afeição,
pela obra nefanda dos pedreiros-livres. Chega por fim o homem do guião. Não vê
o arco, estarrece, estaca, e com o conto da pesada lança, bate de rijo na
calçada. Erguendo depois os olhos desvairados, numa ânsia alucinante, como que
a pedir que o ajudassem a salvar o brio e a honra de todos, percorre lentamente
as varandas e as janelas donde, àquela hora solene, pendiam as mais lindas
colchas do oriente, os mais rutilantes veludos e damascos do culto e se
debruçavam, para o ver bem, não menos indecisas e agitadas do que ele, as
senhoras mais formosas de todo o distrito. Mas então, alguém, subitamente
incumbido pelos deuses, resolvia o inesperado caso, dentro dos ritos e dos usos
consagrados, ordenando impetuosamente: faz
de conta, faz de conta.
E todo o madamismo e seus acólitos, e todo o povo,
como uma só pessoa, arquejando, numa onda de arrebatamento indescritível,
repetiam em loucos gritos: faz de conta, faz
de conta, faz de conta...
Era o amor triunfante, o amor sem gramática, o amor
de muitas gerações concentrado nesse ser de eleição e comunicando-lhe um ardor
que lhe centuplicava as forças. E o homem do pendão, sentindo-se arrastado por
essa onda de ternura precursora da vitória, inclinava-o suavemente para a
frente; e lento, sorridente, na mais hierática atitude e na posse absoluta de
todos os corações, caminhou para além do sítio onde o arco havia estado e
religiosamente cumprido as funções dum bom arco bracarense.
Salvara-se a honra da cidade. Mas, a partir do ano
seguinte, desaparecia para todo o sempre a encantadora façanha e o seu herói
anual.
Camilo parecia ter conhecido pessoalmente o ultimo
hércules triunfador; pelo menos falava dele como de pessoa que se viu bem viva,
em toda a sua brutalidade e desvanecimento. E só me disse ainda que, trinta
anos depois, Braga não podia assistir a semelhantes provas. Tudo passara; a
alegria descuidada, a jovialidade amável, o amor festivo que idealiza e santifica.
Aqui terminou o meu encontro com o grande escritor.
Ele foi para São Miguel de Seide e eu continuei a viagem até ao Porto. Nunca
esta me parecera tão curta. Levava a cabeça cheia das anedotas, dos episódios
narrados por aquela palavra rara que nem um só instante ousei interromper; por
isso mesmo fiquei sem notícias do macho cuja sombra devia figurar na peça
começada por Camilo e que ele não acabou.
A deliciosa narrativa, tão penetrante e tão cheia
de luz, acerca das coisas e das gentes que haviam impressionado o romancista,
deixara em mim uma profunda comoção estética que ainda hoje resiste ao
afastamento dos muitos anos. A realidade dos fatos narrados, nem então nem hoje
me preocupa. Ignoro até se, graças à sua fantasia, Camilo não era por vezes dominado
pela mesma obsessão que levava Balzac a acreditar na existência real das
personagens dos seus romances. É possível que assim fosse. Entretanto, mais
tarde reconheci em todas as anedotas que Camilo me contou um acentuado, um
inegável sabor regional.
E ainda hoje penso se esse grito de alma, o
sugestivo Faz de conta, não é próximo
parente daquele outro brado enérgico e imperativo que, há séculos, se ouviu na
grande praça do Vaticano, ao quererem guindar um sino tão pesado que todas as
cordas por mais fortes que fossem e mais bem feitas, esticavam e rebentavam. A
última, toda de seda, ia-se já tornando muito delgada, parecendo prestes a
estalar. E o sino sem se mexer. Mas de repente, naquela atmosfera de ansiedade
e de silêncio, uma voz bradava: Acqua a la
corda.
Efetivamente não ocorrera até então que nisso
estava a virtude. Momentos de raríssima inspiração que se diriam de caráter
profano e a que só as almas simples e crentes dão o justo valor. No mundo do
maravilhoso são frequentes as surpresas deste gênero.
E nunca mais tornei a ver o grande Camilo.
---
ANTÔNIO ARROYO
Singularidades da minha terra (1917)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
ANTÔNIO ARROYO
Singularidades da minha terra (1917)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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