3/13/2020

O homem morto (Conto), de Horacio Quiroga




O homem morto
Tradução: Iba Mendes (2020).
O homem e seu facão terminavam de limpar a quinta rua do bananal. Faltavam-lhes ainda duas ruas, porém como nestas proliferavam as chircas e malvas silvestres, a tarefa que tinha pela frente era coisa insignificante. Seguidamente o homem lançou um olhar satisfeito aos arbustos roçados e atravessou a cerca de arame, deitando-se sobre a relva por alguns instantes.
Mas ao baixar o arame farpado e passar o corpo, seu pé esquerdo tocou num pedaço de casca que se havia desprendido do poste, ao passo que o facão se lhe escapou da mão. Enquanto caía, o homem teve a leve impressão de não ver o facão caído no chão.
Já estava deitado na grama, do lado direito, exatamente como ele queria. A boca, que acabara de abrir em toda sua extensão, acabava também de fechar-se. Estava, pois, como desejava estar: os joelhos dobrados e a mão esquerda sobre o peito. Só que, por trás o antebraço e imediatamente debaixo do cinto, apareciam de sua camisa o cabo e parte da folha do facão.  Nada mais se via.
Em vão o homem tentou mover a cabeça. Olhou de esguelha o cabo do facão, ainda úmido de suor em sua mão. Avaliou mentalmente a extensão e o trajeto do objeto dentro de seu ventre, e não teve a menor dúvida de que havia chegado ao termo de sua existência.
A morte. No transcorrer da vida, muitas vezes pensamos no dia em que, após anos, meses, semanas e dias se preparando, chegaremos por fim ao limiar da morte. É a lei fatal, previsível e aceita. Tanto é assim que nos deixamos levar prazenteiramente pela imaginação a esse momento, supremo entre todos, em que daremos o último suspiro.
Entretanto, entre o instante atual e essa derradeira expiação, quantos sonhos, dissabores, esperanças e dramas pressupomos em nossa vida! O que nos reserva ainda esta existência repleta de vigor, antes de sua extinção do cenário humano! É este o consolo, o prazer e a razão de nossas divagações fúnebres: a morte está ainda tão distante, e é tão imprevisto o que ainda devemos viver! 
Ainda? Não se passaram dois segundos: o sol permanece exatamente no mesmo lugar; as sombras não avançaram um milímetro. Subitamente acabam de desfazer-se para o homem estendido as divagações futuras: está morrendo!
Morto. Pode considerar-se morto na sua cômoda posição.
Mas o homem abre os olhos e observa. Quanto tempo se passou? Que calamidade sobreviveu ao mundo? Que desordem da natureza culminou no horrível acontecimento?
Vai morrer. Fria, fatal e inevitavelmente, vai morrer.
O homem resiste — é tão imprevisto este horror! E pensa: é um pesadelo, com certeza! O que mudou? Nada. E olha: porventura não é este bananal o seu bananal? Não vem todas as manhãs limpá-lo? Quem o conhece como ele?
Vê claramente o bananal, bastante rarefeito, as folhas largas exposta ao sol. Estão ali bem perto, desgastadas pelo vento. Agora, porém, não se movem... É o sossego do meio-dia; devem ser quase doze horas. 
Por entre as bananeiras, logo adiante, o homem vê, do chão duro o telhado vermelho de sua casa. À esquerda entrevê o monte e a capoeira de canelas. Não ver mais nada,  porém sabe muito bem que atrás de si está a estrada para o porto novo, e que, na direção de sua cabeça, lá embaixo bem no fundo do vale, jaz o Paraná adormecido como um lago. Tudo, tudo exatamente como sempre: o sol de fogo, o ar vibrante e solitário, as bananeiras imóveis, a cerca de arame com postes muito grossos e altos que logo será substituída...
Morto! Mas será possível? Não é este um dos tantos dias em que sai de sua casa pela manhã com o facão na mão? Não está bem ali, a quatro metros dele, seu cavalo listrado, cheirando parcimoniosamente o arame farpado?
Sim! Alguém assobia... Não pode ver quem é, porque se acha de costa para a estrada, mas sente ressoar na pequena ponte os passos do cavalo... É o menino que passa todas as manhãs ao porto novo, às onze e meia. E sempre assoviando... Do poste descascado, que o homem quase toca com as botas, até a cerca viva do matagal, que separa o bananal da estrada, são quinze metros de comprimento. Isso ele sabe perfeitamente bem, pois ele mesmo, ao erguer a cerca mediu a distância.
Que se passa, afinal? Não é esse um meio-dia típico, como tantos em Missões, em seu monte, sua pastagem, em seu bananal rarefeito? Sem dúvida! Vegetação curta, cones de formigas, sol a pino...
Nada, nada mudou. Apenas ele está diferente. Há dois minutos que a sua  pessoa, a sua personalidade vivente, nada mais tem que ver com a pastagem que ele mesmo modelou à enxada durante cinco meses consecutivos, nem com o bananal, obra exclusiva de suas mãos. Nem com a sua família. Foi arrancado subitamente, naturalmente, por obra de uma casca notável e um facão no abdome. Está morrendo já há dois minutos.
O homem, muito cansado e estendido na grama sobre o lado direito, recusa-se a aceitar um fenômeno dessa transcendência, ante o aspecto regular e monótono de tudo que o cerca. Sabe perfeitamente a hora: às onze e meia... O menino de todos os dias acaba de passar pela ponte.
Mas não é possível que tenha escorregado! O cabo de seu facão (logo deverá trocá-lo por outro; já está bastante desgastado) estava perfeitamente pressionado entre sua mão esquerda e o arame farpado. Depois de dez anos  no bosque, ele sabe muito bem manejar um facão no mato. Apenas está muito exausto do trabalho desta manhã, e repousa um pouco como de costume.
A prova? Ora, esse mesmo matinho que agora lhe entra pelo canto da boca, ele mesmo o plantou em pedaços de terra distante um metro um do outro! E este é o seu bananal; e esse é o seu cavalo listrado, baforando cautelosamente ante o arame farpado. Vê-o perfeitamente; sabe que não se atreve a dobrar a esquina da cerca, porque está deitado quase ao pé do poste. Distingue-o muito bem; e ver as bagas de suor que lhe brotam do lombo até o quadril. O sol bate forte e a calma é muito grande, porque nem uma única franja das bananeiras se move. Todos os dias como este, ele tem visto as mesmas coisas.
...Muito exausto, mas apenas descansa. Devem ter passado já vários minutos... E às quinze para meio-dia, de lá de cima, do chalé de telhado vermelho, sua mulher e seus dois filhos descerão ao bananal a buscá-lo para o almoço. Ouve sempre, antes das outras, a voz de seu filho mais novo, que busca soltar-se da mão de sua mãe: “Papá! Papá!”
Não é isto?... Sem dúvida, está escutando! Já é a hora... De fato ouve a voz do filho!...
Que pesadelo!... Porém este é um dia como tantos outros, corriqueiro como todos, está claro! Luz excessiva, sombras pálidas, calor silencioso de forno sobre a carne, que faz suar o cavalo, estático ante o bananal proibido.
Muito cansado, mas só isso e nada mais! Quantas vezes, ao meio-dia como agora, retornando a casa, atravessou esta pastagem, que era capoeira quando chegou e antes havia sido mata virgem? Vinha então muito cansado também, com seu facão pendente na mão esquerda, a passos lentos...
Pode ainda afastar-se mentalmente, se desejar; pode, se quiser, abandonar por um momento o seu corpo e ver da represa por ele construída, a mesma e trivial paisagem; o pedregulho vulcânico com gramas firmes; o bananal e sua areia vermelha; a cerca de arame que se apequena na encosta e que se acotovela com a estrada. E mais distante ainda ver a pastagem, obra exclusiva de suas mãos. E ao pé de um poste descascado, deitado sobre o lado esquerda e as pernas encolhidas, do mesmo modo que todos os dias, pode ver a si mesmo como um pequeno vulto coberto de areia sobre a relva — repousando porque está bastante cansado...
Mas o cavalo rajado de suor e cautelosamente imóvel perante um canto da cerca de arame, vê também o homem no chão e ousa contornar o bananal, como desejaria. Ante as vozes que já estão perto — papá! ­— por um longo, longo instante, move as orelhas em direção ao vulto e, por fim, passa tranquilamente entre o poste o homem estendido, que já descansou.

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