Gonçalves Dias e Camilo Castelo
Branco
Conheceram-se,
o poeta brasileiro e o romancista português. Foi em Lisboa. Ali estava
Gonçalves Dias em 1854. Revendo Portugal, reviu os seus antigos condiscípulos
de Coimbra, alguns dos quais, como Bruschy, Couto Monteiro e Serpa Pimentel,
ocupando já lugares de destaque nas letras e na administração pública, e teve
então oportunidade de travar relações com os mais notáveis homens de letras,
que viviam pela época na capital do reino. Nesse número estava Camilo Castelo
Branco. O causticante autor do Cancioneiro
Alegre, escreveu no Dicionário de
Educação e Ensino (Porto, 1873): — "Em 1854 tivemos o prazer de
encontrar em Lisboa, Gonçalves Dias, donde saiu, após algumas diligências
concernentes à sua missão para Alemanha em busca de subsídios para a História do Brasil". Encontro
fortuito. Entre um e outro, pois, não há o menor ponto de contato. Mesmo a
prosa do brasileiro, nada tem da prosa do português, embora ambos sejam os
melhores e mais escorreitos escritores de nossa língua. Do verso, nem há que
dizer. Não só Camilo versejou muito depois de Gonçalves Dias, se bem que da
mesma idade do poeta maranhense, como no grande romancista não foi a poesia uma
preocupação constante.
Complete-se o
quadro, para ressaltar, nos dois perfis, a diversidade de temperamento e,
portanto, de processos literários, com a afirmação de ter sido Camilo o maior e
o mais atrevido espadachim literário de seu tempo, o sabedor mais desabrido no
dizer desaforos e insultos em letra de forma. A sua vida de escritor — poeta,
romancista, escavador de maravilhas históricas — está entrecortada de
polêmicas, discussões, acres disputas, ataques violentos e desaforadas defesas,
em cujos lances nem sempre entre os contendores, gente de alta polpa nas
letras, de lá e de cá, foi guardada, não apenas as comezinhas conveniências
sociais, mas o simples asseio de linguagem, que deve ser o apanágio de pessoas
de mediano recato. Silva Pinto, que antes o atacara ferozmente, traça-lhe o
perfil nos Combates e Críticas, em
uma linha, quando diz que em geral os grandes homens insultados aguardam o
juízo da posteridade, Camilo não, Camilo encarregou-se da desforra... Gonçalves
Dias tinha outro temperamento. Nunca revidou as críticas que lhe fizeram. Mas,
verdade, é que isso era talvez só aparência. Altivo, brioso e guardando em
todos os seus atos uma rara independência de ação e uma coragem digna, não
tolerava a menor arranhadura nos seus melindres pessoas, exagerados estes
certamente pelo preconceito da cor. O que é exato é que ele mesmo o diz em sua
carta ao seu sogro, publicada por Tobias Monteiro, em 1905, em relação a
determinadas medidas, que deviam ser tomadas pelo Ministro da Fazenda e
Presidente do Ceará, o Conselheiro Ferraz e o Sr. Marcelino Gonçalves: —
"Decidam eles como quiserem, que eu suporto tudo exceto que me cheire o
desaforo". Na vida civil, pois, ele se reservou, para si, uma atitude
diversa daquela que tinha na república das letras. E disso são sobejas provas o
ofício que mandou ao Presidente daquela então Província, Marcelino Gonçalves, depois
Visconde de São Luís sobre o caso da prisão de um "camarada" no Icó,
— que é uma página deliciosa de ironia e humorismo; e o outro ao Ministro das
Relações Exteriores, José Maria da Silva Paranhos, depois Visconde do Rio
Branco, dando a sua demissão de um cargo que tinha nessa Secretaria, e que vem
estampado no Panteon Maranhense, em
que o mestiço genial se mostra de uma altivez e dignidade pouco comuns.
Espírito independente, pensando por si, sem consultar as conveniências dos
potentados, nem os interesses e exigências das ideias predominantes no seu
tempo, deixou dessa modalidade de seu temperamento um lindo estalão, por onde
será medida com absoluta segurança.
Refiro-me ao
seu célebre Prefácio aos Anais Históricos, de Berredo, que
motivou a sua enérgica e altiva resposta à Religião,
jornal que então encarnava num mais alto grau o espírito religioso e
eminentemente sectário do clero brasileiro. E mais ainda as páginas magníficas
da Meditação, escritas em versículos
bíblicos e que são, em 1845, um brado formidável, sincero e audacioso em favor
da abolição da escravatura no Brasil. Diz delas Antônio Henrique Leal: — "É
um poema em prosa, um canto singelo e plangente erguido a favor da emancipação
da escravatura". E, pondo em destaque a significação dessas páginas em
épocas tão recuadas às da campanha abolicionista, afirma: — "Esse escrito
de Gonçalves Dias foi pelo tempo em que apareceu um ato de coragem, e uma das
vozes precursoras da santíssima e caridosa lei de 28 de setembro de 1871".
A estada de
Gonçalves Dias em Lisboa foi curta. E apesar daquela nota de Camilo no Dicionário de Educação e Ensino, nada
autoriza a supor entre os dois escritores uma convivência assídua. De um lado,
o desempenho da missão que o levara a Portugal e de outro, um importante incidente
íntimo, não deixaram ao poeta longos vagares para largas intimidades. Porque
não é possível deixar de referir aqui o caso acima indicado. Gonçalves Dias
viajava com a esposa e uma cunhada. Em Lisboa devia esperar o sogro. Uma tarde,
porém, o poeta encontrou-se com a sua primeira namorada, que foi em toda a sua
vida o seu grande, o seu único amor. D. Ana Amélia, estava em Lisboa com o
marido. O poeta foi ferido pela surpresa do encontro. Este, como se sabe, deu
motivo à sua magnífica poesia "Ainda uma vez — adeus! " Os versos
foram escritos nos dias. Logo depois Gonçalves Dias resolveu partir para Paris.
A esposa e a cunhada ficaram esperando pelo Dr. Cláudio Luís da Costa, pai de
sua mulher.
Assim, não há
como dar ao encontro do poeta e do romancista senão a significação de uma
simples visita literária. Isso vale acentuar para melhor ajuizar-se do valor do
conceito em que Camilo tinha Gonçalves Dias, assegurado através de várias
referências em diversas e dilatadas oportunidades. A Camilo não importava o
homem, mas o escritor. Era a obra que o grande mestre destacava,
focalizando-lhe as qualidades primaciais. São assim diversas e elogiosas as
referências a Gonçalves Dias na vastíssima obra de Camilo.
Resenhamo-las
aqui. A primeira, data de 1861, quando foi da publicação em folhetim do Comércio do Porto, do romance As três irmãs. O romance apareceu em
livro no ano seguinte. No capítulo I, intitulado No cemitério do Prado Camilo descreve alguns túmulos — amigos novos a quem oferecer a minha amizade
e os devaneios religiosos do meu coração. Seguindo diz: "Entre estes,
encantou-me o monumento de um menino, fábrica primorosa de mármores diversos,
lavor de muito custo, todo em arabescos e laçarias. Considerei que uma grande
saudade de pai desabara naquelas excedentes de arte. Belos e de entranhada
mágoa me pareceram estes versos do epitáfio:
O invólucro de um anjo aqui descansa;
Alma do céu, nascida entre amargores,
Como flor entre espinhos!... Tu, que passas;
Não perguntes quem foi... Nuvem risonha
Que um instante correu ao mar da vida;
Romper de aurora que não teve ocaso;
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência
Levada à plaga eterna do infinito,
Como oferenda de amor ao Deus que o rege.
Não perguntes quem foi, não chores, passa.
Alma do céu, nascida entre amargores,
Como flor entre espinhos!... Tu, que passas;
Não perguntes quem foi... Nuvem risonha
Que um instante correu ao mar da vida;
Romper de aurora que não teve ocaso;
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência
Levada à plaga eterna do infinito,
Como oferenda de amor ao Deus que o rege.
Não perguntes quem foi, não chores, passa.
Em nota ao
último verso, na primeira edição 1862, vem: — "Peregrinos versos do Sr.
Gonçalves Dias, poeta brasileiro de eminente engenho".
Para quem nas
letras portuguesas não era pródigo em ditirambos aos escritores lusos, esse
"eminente engenho" em sua pena para um escritor brasileiro, havia não
há dúvida de representar uma verdadeira consagração. E assim era. Na segunda edição,
em 1865, ocorre um asterisco àquela nota. Está assim redigido:
"Há dois
meses que o grande poeta morreu desastradamente num naufrágio".
O conceito
mantém-se. Este "grande poeta" emparelha com aquele "eminente
engenho".
Certamente foi
só a fantasia de Camilo que após aqueles versos em um túmulo do cemitério do
Prado. Mas eles foram realmente escritos para um túmulo. Vêm nos Últimos Cantos e têm a data de 25 de
outubro de 1848. Estava o poeta no Rio, onde os escrevera intitulando-os Sobre o túmulo de menino. Teriam sido
gravados no túmulo do pequeno morto? Ou foram escritos a propósito de um túmulo
de um entezinho querido. Difícil uma resposta. O certo é que impressionaram a
Camilo, que os registrou no seu romance, que vai já na décima edição.
Destacados
pelo autor da Corja, oferecem esses
versos motivos de duas interessantes observações. Uma, a de que Gonçalves Dias,
apesar de sua educação literária iniciada em Coimbra, não se limitava aos
portugueses. Ia buscar mais alto a sua inspiração. O último verso dessa
delicada nênia lembra o assaz citado: — Num
ragioniam di lor, ma guarda e passa, do sublime Dante, no 3º Canto do Inferno. A outra, a de que a esses
versos, peregrinos versos, como lhes chama Camilo, não devem ser estranhos,
embora como remota inspiração, os da introdução da linda e magoada poesia de
Fagundes Varela — o Cântico do Calvário.
Gonçalves Dias
morreu em 1864. Quase dez anos depois Camilo dá ao prelo a tradução do Dicionário de Educação e Ensino, para o
qual escreveu a parte relativa a Portugal e ao Brasil. No seu tomo primeiro vem
o artigo — Gonçalves Dias (Antônio).
São cinco estiradas colunas. Daí recortamos estes conceitos: — "A
reputação de poeta distinto e primeiro
entre os seus contemporâneos coevos deu-a o belo livro intitulado Primeiros Cantos, publicados no Rio de
Janeiro". Adiante, referindo-se aos trabalhos literários que tinha em mãos
Antônio Henrique Leal, diz: — "aprimorada biografia do eminente poeta brasileiro". E,
aludindo aos trabalhos etnográficos realizados por Gonçalves Dias, de 1859 a
60, no hinterland do Ceará e do
Amazonas: — "e da incansável lida a que se devotava com tanta probidade como
talento". Finalmente: — "Morreu o primeiro
poeta brasileiro, e um dos que mais
puramente rimaram língua portuguesa".
Tratando-se de
um mestre exigentíssimo como Camilo e, além do mais, português, justifica-se e
desculpa-se o orgulho dos grifos com que muito de propósito ilustrei as
citações acima. Merecem-no os dois gigantes — Camilo e Gonçalves Dias.
Um ano depois,
em 1874, não se havia arrefecido a admiração de Camilo pelo poeta dos Timbiras. Nas Noites de Insônia lê-se: — "o primaz dos escritores brasileiros
e chorado Gonçalves Dias".
Este conceito
vem ratificado ainda nessas mesmas Noites
de Insônia, referindo-se ao Pantheon
Maranhense de Antônio Henrique Leal: — "É ver o esplêndido e, ainda
mal, que incompleto, vestíbulo que ele erigiu como entrada para as obras
completas de Gonçalves Dias, o portentoso
poeta, o prosador inviolável na pureza da dicção".
Que outro
escritor patrício mereceu tanto de Camilo? E mesmo entre os lusitanos? Não há
como negar o valor subido de uma semelhante e continuada consagração. Esta,
entanto, não para aí. Nesse mesmo número das Noites de Insônia encontra-se: — "Gonçalves Dias apoucado pela
ignava bitola de um zoilo vesgo, tem dois monumentos: um de mármore na sua
pátria, outro nos livros que são dele, que são nossos, que os temos na memória
do coração desde a mocidade".
É preciso
saber-se que o crítico ali acoimado de zoilo era Luciano Cordeiro e que os
poetas portugueses que assim Camilo colocava abaixo dos grandes méritos do
brasileiro de 217 Caxias, eram Luiz Augusto Palmerim, Serpa Pimentel, João de
Lemos, Soares dos Passos, Pereira da Cunha, Xavier de Novaes e João de Deus! Toda
a plêiade romântica que dominou a poesia de Portugal entre o ocaso de Garrett,
Castilho e Herculano e o dealbar admirável da esplêndida aurora com que se
anunciou a famosa Escola Coimbra.
A glória de
Gonçalves Dias crescia no espírito de Camilo numa verdadeira e irresistível
fascinação. Nem se diminua o valor do panegírico pela amizade entre os dois
escritores, que foi efêmera. Depois de 1854, quando os dois estiveram juntos em
Lisboa, deixaram de ver-se, para nunca mais. E não há na vida, nem de um, nem
de outro, vestígio de correspondência epistolar. Mas, o esplendor do renome do
poeta brasileiro empolgava o grande Camilo. Assim é, que o mestre das letras
portuguesas, não perdia oportunidade de louvar Gonçalves Dias. Mais um exemplo.
No seu magnífico Curso de Literatura
Portuguesa, falando do Uruguai, de Basílio da Gama, diz: — "A
majestade sentimental do assunto corresponde a poesia que murmúrios de certa
suavidade prenuncia os doces cantares de Gonçalves Dias".
E, então,
chegamos ao Cancioneiro Alegre
(1879), Gonçalves Dias estava morto há 15 anos. No volver dos tempos não
vingaram os danos do esquecimento. O poeta dos Cantos, continuava, para Camilo, nesse livro terrível, que foi
pelourinho para muitos e grandes engenhos, imperador
da lira americana. Não se ande deslembrado, ao perlustrar essas páginas não
raro de amargoso travo, que elas, muita vez, no chiste da ironia, ocultam a
chalaça literária de que era Camilo mestre insigne. Não é esse um livro de
aplausos, nem de louvores: mas de ironia. Não pretendeu construir: mas demolir.
Assim mesmo, Gonçalves Dias sai da peleja armado cavaleiro. E quem o conduz à
posteridade, assim de ponto em branco, é o próprio Camilo, o ironista
inconfundível e impenitente, que ao tratar do nosso grande lirista, não se
esqueceu da ressalva feita nas Noites de
Insônia: — "mas a nossa mocidade era tão amorável com os seus
contemporâneos, quanto respeitosa com os antepassados". E do poeta
brasileiro o crítico mordacíssimo escreveu: — "Os quilates deste poeta
brasileiro eram os da melhor moeda, quando a sua poesia circulava nos corações
das mulheres pálidas, e ruborizava o sangue das pulsações mais vitais da sua
fisionomia. Visto desta distância, apenas me entreluz como estrela cadente nas
brumas da serra que transpus, e para a qual, ao dobrar os espigões de outra
mais alcantilada, olho com saudade. Raros são os príncipes da literatura que
não assistam vivos aos funerais da sua glória. Gonçalves Dias morreu coroado
imperador da lira americana; sumiu-se tragicamente no mar, como Elias no azul,
quando o seu nome era o símbolo da musa cisatlântica, e a sua vida, um pouco
falida ao dinheiro, uma glória nacional".
Foi
precisamente essa glória nacional que
Camilo, mesmo na rasoura invencível e igualitária de sua tremenda ironia,
firmou definitivamente. Os conceitos deixados em seu tão acatado e desabusado
livro de crítica literária engrandecem o poeta e o coroam de verdade com a
merecida justiça imperador da lira
americana. E da gigantesca e árdua peleja ele sai maior ainda e com o
renome inatacável. Fê-lo Camilo conscientemente? Não o creio. Os azedumes da
vida, os dissabores domésticos, a trágica doença do filho e o mal que o devia
levar ao suicídio, já lhe haviam estragado a alma. Nesse estado de espírito não
há lugar para o termo justo, nem para o conceito desapaixonado. Não importa,
porém. Gonçalves Dias era verdadeiramente grande, o gigante venceu. Vinte e
cinco anos (1854-1879) de formosa e indefectível admiração, fizeram o milagre.
E Camilo, outro gigante, glorificando o poeta maranhense, entrou com ele, ombro
a ombro para a imortalidade!
---
NOGUEIRA DA SILVA
Revista Brasileira, dezembro de 1976.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
NOGUEIRA DA SILVA
Revista Brasileira, dezembro de 1976.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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