3/01/2020

Gonçalves Dias e Camilo Castelo Branco (Resenha)




Gonçalves Dias e Camilo Castelo Branco
Conheceram-se, o poeta brasileiro e o romancista português. Foi em Lisboa. Ali estava Gonçalves Dias em 1854. Revendo Portugal, reviu os seus antigos condiscípulos de Coimbra, alguns dos quais, como Bruschy, Couto Monteiro e Serpa Pimentel, ocupando já lugares de destaque nas letras e na administração pública, e teve então oportunidade de travar relações com os mais notáveis homens de letras, que viviam pela época na capital do reino. Nesse número estava Camilo Castelo Branco. O causticante autor do Cancioneiro Alegre, escreveu no Dicionário de Educação e Ensino (Porto, 1873): — "Em 1854 tivemos o prazer de encontrar em Lisboa, Gonçalves Dias, donde saiu, após algumas diligências concernentes à sua missão para Alemanha em busca de subsídios para a História do Brasil". Encontro fortuito. Entre um e outro, pois, não há o menor ponto de contato. Mesmo a prosa do brasileiro, nada tem da prosa do português, embora ambos sejam os melhores e mais escorreitos escritores de nossa língua. Do verso, nem há que dizer. Não só Camilo versejou muito depois de Gonçalves Dias, se bem que da mesma idade do poeta maranhense, como no grande romancista não foi a poesia uma preocupação constante.
Complete-se o quadro, para ressaltar, nos dois perfis, a diversidade de temperamento e, portanto, de processos literários, com a afirmação de ter sido Camilo o maior e o mais atrevido espadachim literário de seu tempo, o sabedor mais desabrido no dizer desaforos e insultos em letra de forma. A sua vida de escritor — poeta, romancista, escavador de maravilhas históricas — está entrecortada de polêmicas, discussões, acres disputas, ataques violentos e desaforadas defesas, em cujos lances nem sempre entre os contendores, gente de alta polpa nas letras, de lá e de cá, foi guardada, não apenas as comezinhas conveniências sociais, mas o simples asseio de linguagem, que deve ser o apanágio de pessoas de mediano recato. Silva Pinto, que antes o atacara ferozmente, traça-lhe o perfil nos Combates e Críticas, em uma linha, quando diz que em geral os grandes homens insultados aguardam o juízo da posteridade, Camilo não, Camilo encarregou-se da desforra... Gonçalves Dias tinha outro temperamento. Nunca revidou as críticas que lhe fizeram. Mas, verdade, é que isso era talvez só aparência. Altivo, brioso e guardando em todos os seus atos uma rara independência de ação e uma coragem digna, não tolerava a menor arranhadura nos seus melindres pessoas, exagerados estes certamente pelo preconceito da cor. O que é exato é que ele mesmo o diz em sua carta ao seu sogro, publicada por Tobias Monteiro, em 1905, em relação a determinadas medidas, que deviam ser tomadas pelo Ministro da Fazenda e Presidente do Ceará, o Conselheiro Ferraz e o Sr. Marcelino Gonçalves: — "Decidam eles como quiserem, que eu suporto tudo exceto que me cheire o desaforo". Na vida civil, pois, ele se reservou, para si, uma atitude diversa daquela que tinha na república das letras. E disso são sobejas provas o ofício que mandou ao Presidente daquela então Província, Marcelino Gonçalves, depois Visconde de São Luís sobre o caso da prisão de um "camarada" no Icó, — que é uma página deliciosa de ironia e humorismo; e o outro ao Ministro das Relações Exteriores, José Maria da Silva Paranhos, depois Visconde do Rio Branco, dando a sua demissão de um cargo que tinha nessa Secretaria, e que vem estampado no Panteon Maranhense, em que o mestiço genial se mostra de uma altivez e dignidade pouco comuns. Espírito independente, pensando por si, sem consultar as conveniências dos potentados, nem os interesses e exigências das ideias predominantes no seu tempo, deixou dessa modalidade de seu temperamento um lindo estalão, por onde será medida com absoluta segurança.
Refiro-me ao seu célebre Prefácio aos Anais Históricos, de Berredo, que motivou a sua enérgica e altiva resposta à Religião, jornal que então encarnava num mais alto grau o espírito religioso e eminentemente sectário do clero brasileiro. E mais ainda as páginas magníficas da Meditação, escritas em versículos bíblicos e que são, em 1845, um brado formidável, sincero e audacioso em favor da abolição da escravatura no Brasil. Diz delas Antônio Henrique Leal: — "É um poema em prosa, um canto singelo e plangente erguido a favor da emancipação da escravatura". E, pondo em destaque a significação dessas páginas em épocas tão recuadas às da campanha abolicionista, afirma: — "Esse escrito de Gonçalves Dias foi pelo tempo em que apareceu um ato de coragem, e uma das vozes precursoras da santíssima e caridosa lei de 28 de setembro de 1871".
A estada de Gonçalves Dias em Lisboa foi curta. E apesar daquela nota de Camilo no Dicionário de Educação e Ensino, nada autoriza a supor entre os dois escritores uma convivência assídua. De um lado, o desempenho da missão que o levara a Portugal e de outro, um importante incidente íntimo, não deixaram ao poeta longos vagares para largas intimidades. Porque não é possível deixar de referir aqui o caso acima indicado. Gonçalves Dias viajava com a esposa e uma cunhada. Em Lisboa devia esperar o sogro. Uma tarde, porém, o poeta encontrou-se com a sua primeira namorada, que foi em toda a sua vida o seu grande, o seu único amor. D. Ana Amélia, estava em Lisboa com o marido. O poeta foi ferido pela surpresa do encontro. Este, como se sabe, deu motivo à sua magnífica poesia "Ainda uma vez — adeus! " Os versos foram escritos nos dias. Logo depois Gonçalves Dias resolveu partir para Paris. A esposa e a cunhada ficaram esperando pelo Dr. Cláudio Luís da Costa, pai de sua mulher.
Assim, não há como dar ao encontro do poeta e do romancista senão a significação de uma simples visita literária. Isso vale acentuar para melhor ajuizar-se do valor do conceito em que Camilo tinha Gonçalves Dias, assegurado através de várias referências em diversas e dilatadas oportunidades. A Camilo não importava o homem, mas o escritor. Era a obra que o grande mestre destacava, focalizando-lhe as qualidades primaciais. São assim diversas e elogiosas as referências a Gonçalves Dias na vastíssima obra de Camilo.
Resenhamo-las aqui. A primeira, data de 1861, quando foi da publicação em folhetim do Comércio do Porto, do romance As três irmãs. O romance apareceu em livro no ano seguinte. No capítulo I, intitulado No cemitério do Prado Camilo descreve alguns túmulos — amigos novos a quem oferecer a minha amizade e os devaneios religiosos do meu coração. Seguindo diz: "Entre estes, encantou-me o monumento de um menino, fábrica primorosa de mármores diversos, lavor de muito custo, todo em arabescos e laçarias. Considerei que uma grande saudade de pai desabara naquelas excedentes de arte. Belos e de entranhada mágoa me pareceram estes versos do epitáfio:
O invólucro de um anjo aqui descansa;
Alma do céu, nascida entre amargores,
Como flor entre espinhos!... Tu, que passas;
Não perguntes quem foi... Nuvem risonha
Que um instante correu ao mar da vida;
Romper de aurora que não teve ocaso;
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência
Levada à plaga eterna do infinito,
Como oferenda de amor ao Deus que o rege.
Não perguntes quem foi, não chores, passa.
Em nota ao último verso, na primeira edição 1862, vem: — "Peregrinos versos do Sr. Gonçalves Dias, poeta brasileiro de eminente engenho".
Para quem nas letras portuguesas não era pródigo em ditirambos aos escritores lusos, esse "eminente engenho" em sua pena para um escritor brasileiro, havia não há dúvida de representar uma verdadeira consagração. E assim era. Na segunda edição, em 1865, ocorre um asterisco àquela nota. Está assim redigido:
"Há dois meses que o grande poeta morreu desastradamente num naufrágio".
O conceito mantém-se. Este "grande poeta" emparelha com aquele "eminente engenho".
Certamente foi só a fantasia de Camilo que após aqueles versos em um túmulo do cemitério do Prado. Mas eles foram realmente escritos para um túmulo. Vêm nos Últimos Cantos e têm a data de 25 de outubro de 1848. Estava o poeta no Rio, onde os escrevera intitulando-os Sobre o túmulo de menino. Teriam sido gravados no túmulo do pequeno morto? Ou foram escritos a propósito de um túmulo de um entezinho querido. Difícil uma resposta. O certo é que impressionaram a Camilo, que os registrou no seu romance, que vai já na décima edição.
Destacados pelo autor da Corja, oferecem esses versos motivos de duas interessantes observações. Uma, a de que Gonçalves Dias, apesar de sua educação literária iniciada em Coimbra, não se limitava aos portugueses. Ia buscar mais alto a sua inspiração. O último verso dessa delicada nênia lembra o assaz citado: — Num ragioniam di lor, ma guarda e passa, do sublime Dante, no 3º Canto do Inferno. A outra, a de que a esses versos, peregrinos versos, como lhes chama Camilo, não devem ser estranhos, embora como remota inspiração, os da introdução da linda e magoada poesia de Fagundes Varela — o Cântico do Calvário.
Gonçalves Dias morreu em 1864. Quase dez anos depois Camilo dá ao prelo a tradução do Dicionário de Educação e Ensino, para o qual escreveu a parte relativa a Portugal e ao Brasil. No seu tomo primeiro vem o artigo — Gonçalves Dias (Antônio). São cinco estiradas colunas. Daí recortamos estes conceitos: — "A reputação de poeta distinto e primeiro entre os seus contemporâneos coevos deu-a o belo livro intitulado Primeiros Cantos, publicados no Rio de Janeiro". Adiante, referindo-se aos trabalhos literários que tinha em mãos Antônio Henrique Leal, diz: — "aprimorada biografia do eminente poeta brasileiro". E, aludindo aos trabalhos etnográficos realizados por Gonçalves Dias, de 1859 a 60, no hinterland do Ceará e do Amazonas: — "e da incansável lida a que se devotava com tanta probidade como talento". Finalmente: — "Morreu o primeiro poeta brasileiro, e um dos que mais puramente rimaram língua portuguesa".
Tratando-se de um mestre exigentíssimo como Camilo e, além do mais, português, justifica-se e desculpa-se o orgulho dos grifos com que muito de propósito ilustrei as citações acima. Merecem-no os dois gigantes — Camilo e Gonçalves Dias.
Um ano depois, em 1874, não se havia arrefecido a admiração de Camilo pelo poeta dos Timbiras. Nas Noites de Insônia lê-se: — "o primaz dos escritores brasileiros e chorado Gonçalves Dias".
Este conceito vem ratificado ainda nessas mesmas Noites de Insônia, referindo-se ao Pantheon Maranhense de Antônio Henrique Leal: — "É ver o esplêndido e, ainda mal, que incompleto, vestíbulo que ele erigiu como entrada para as obras completas de Gonçalves Dias, o portentoso poeta, o prosador inviolável na pureza da dicção".
Que outro escritor patrício mereceu tanto de Camilo? E mesmo entre os lusitanos? Não há como negar o valor subido de uma semelhante e continuada consagração. Esta, entanto, não para aí. Nesse mesmo número das Noites de Insônia encontra-se: — "Gonçalves Dias apoucado pela ignava bitola de um zoilo vesgo, tem dois monumentos: um de mármore na sua pátria, outro nos livros que são dele, que são nossos, que os temos na memória do coração desde a mocidade".
É preciso saber-se que o crítico ali acoimado de zoilo era Luciano Cordeiro e que os poetas portugueses que assim Camilo colocava abaixo dos grandes méritos do brasileiro de 217 Caxias, eram Luiz Augusto Palmerim, Serpa Pimentel, João de Lemos, Soares dos Passos, Pereira da Cunha, Xavier de Novaes e João de Deus! Toda a plêiade romântica que dominou a poesia de Portugal entre o ocaso de Garrett, Castilho e Herculano e o dealbar admirável da esplêndida aurora com que se anunciou a famosa Escola Coimbra.
A glória de Gonçalves Dias crescia no espírito de Camilo numa verdadeira e irresistível fascinação. Nem se diminua o valor do panegírico pela amizade entre os dois escritores, que foi efêmera. Depois de 1854, quando os dois estiveram juntos em Lisboa, deixaram de ver-se, para nunca mais. E não há na vida, nem de um, nem de outro, vestígio de correspondência epistolar. Mas, o esplendor do renome do poeta brasileiro empolgava o grande Camilo. Assim é, que o mestre das letras portuguesas, não perdia oportunidade de louvar Gonçalves Dias. Mais um exemplo. No seu magnífico Curso de Literatura Portuguesa, falando do Uruguai, de Basílio da Gama, diz: — "A majestade sentimental do assunto corresponde a poesia que murmúrios de certa suavidade prenuncia os doces cantares de Gonçalves Dias".
E, então, chegamos ao Cancioneiro Alegre (1879), Gonçalves Dias estava morto há 15 anos. No volver dos tempos não vingaram os danos do esquecimento. O poeta dos Cantos, continuava, para Camilo, nesse livro terrível, que foi pelourinho para muitos e grandes engenhos, imperador da lira americana. Não se ande deslembrado, ao perlustrar essas páginas não raro de amargoso travo, que elas, muita vez, no chiste da ironia, ocultam a chalaça literária de que era Camilo mestre insigne. Não é esse um livro de aplausos, nem de louvores: mas de ironia. Não pretendeu construir: mas demolir. Assim mesmo, Gonçalves Dias sai da peleja armado cavaleiro. E quem o conduz à posteridade, assim de ponto em branco, é o próprio Camilo, o ironista inconfundível e impenitente, que ao tratar do nosso grande lirista, não se esqueceu da ressalva feita nas Noites de Insônia: — "mas a nossa mocidade era tão amorável com os seus contemporâneos, quanto respeitosa com os antepassados". E do poeta brasileiro o crítico mordacíssimo escreveu: — "Os quilates deste poeta brasileiro eram os da melhor moeda, quando a sua poesia circulava nos corações das mulheres pálidas, e ruborizava o sangue das pulsações mais vitais da sua fisionomia. Visto desta distância, apenas me entreluz como estrela cadente nas brumas da serra que transpus, e para a qual, ao dobrar os espigões de outra mais alcantilada, olho com saudade. Raros são os príncipes da literatura que não assistam vivos aos funerais da sua glória. Gonçalves Dias morreu coroado imperador da lira americana; sumiu-se tragicamente no mar, como Elias no azul, quando o seu nome era o símbolo da musa cisatlântica, e a sua vida, um pouco falida ao dinheiro, uma glória nacional".
Foi precisamente essa glória nacional que Camilo, mesmo na rasoura invencível e igualitária de sua tremenda ironia, firmou definitivamente. Os conceitos deixados em seu tão acatado e desabusado livro de crítica literária engrandecem o poeta e o coroam de verdade com a merecida justiça imperador da lira americana. E da gigantesca e árdua peleja ele sai maior ainda e com o renome inatacável. Fê-lo Camilo conscientemente? Não o creio. Os azedumes da vida, os dissabores domésticos, a trágica doença do filho e o mal que o devia levar ao suicídio, já lhe haviam estragado a alma. Nesse estado de espírito não há lugar para o termo justo, nem para o conceito desapaixonado. Não importa, porém. Gonçalves Dias era verdadeiramente grande, o gigante venceu. Vinte e cinco anos (1854-1879) de formosa e indefectível admiração, fizeram o milagre. E Camilo, outro gigante, glorificando o poeta maranhense, entrou com ele, ombro a ombro para a imortalidade!
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NOGUEIRA DA SILVA
Revista Brasileira, dezembro de 1976.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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