Fatos pitorescos sobre Camilo
Castelo Branco
“Formidável
corda de risos, formidável corda de lágrimas”, como lhe chamou Silva Pinto,
Camilo Castelo Branco ofereceu à literatura portuguesa páginas imorredouras.
Se a cegueira
o não conduz ao desespero da morte, Camilo teria talvez duplicado a sua obra.
Vida aventurosa, amoroso irrequieto, espírito irreverente, raro da sua boca
saía um elogio.
Uma tarde, em
São Miguel de Seide, o glorioso autor do Amor
de Perdição vergastava tudo e todos. Um amigo disse-lhe: “Sempre me refugio
em Vítor Hugo, para ver se você também diz mal dele”.
E logo Camilo:
“Esse velho não era nada tolo!”.
Um filho
começou dando indícios de loucura. E o implacável ironista explicava: “Coitado!
Era um rapaz inteligente. Ficou assim desde que leu as obras do Teófilo
Braga...”
Camilo, no
alvor da sua brilhante carreira literária, era brigão. Detestava os
pusilânimes. De um camarada com quem cortara relações, disse um dia:
“É um homem
tão cobarde que a gente cospe-lhe no rosto, limpa-lhe depois a cara com o bico
da bota e ele ainda nos diz: Muito obrigado!”
***
As suas
irreverências ficaram célebres. Um pintor, no Porto, convidou-o a ir a uma
exposição. O pintor tinha mais jactância que talento. E apontando um retrato a
óleo, explicou a Camilo: “Agora só me dedico a retratos. Veja o mestre, este.
Que lhe parece?”.
Resposta de
Camilo: “Na verdade, está parecidíssimo. Quem é?”.
***
As suas
permanentes dificuldades de dinheiro levaram o desventurado romancista a lutas
constantes com os editores. Propõe escrever um livro acerca de Lisboa antes do
terremoto de 1755, mas como o livro não mete brasileiros nem amor, os editores
dão-lhe apenas 150 mil réis.
***
Na obra de
Camilo, diz Junqueiro, não há uma árvore. Mas é um perdulário de talento. O seu
feitio azedo era certamente filho da desgraça que raro o abandonava.
***
Um dia, ao
tomar a diligência na Praça da Batalha, para ir visitar um amigo que morava nos
subúrbios do Porto, cumprimentou delicadamente duas damas. Uma delas disse para
a outra:
— Olha Maria
Isabel, este ó que é o Camilo que escreve livros.
— Por sinal
uma boa peste — comentou a outra. — Uma peste enjoativa!
Camilo ouviu,
mas disfarçou. Daí a momentos encarou com a dama que o alcunhou de peste,
dizendo com a maior desfaçatez:
— Oh! Maria
Isabel, desculpa. Há bocado não te reconheci.
A interpelada,
de semblante carregado, protestou:
— Vossa
senhoria está enganado. Chamo-me na verdade Maria Isabel, mas não o conheço!
E o diálogo
continuou assim:
— Ah! minha
ingrata! Não te lembras do teu antigo namorado? O teu Camilo como tu me
chamavas na intimidade?
— O meu
Camilo? — exclamou a dama, furiosa.
— Depressa te
esqueceste dos nossos amores, quando eras cozinheira da estalagem do Manuel
Domingos...
— Cozinheira
eu? O seu insolente, seu grande malcriado!
— Que belos
petiscos tu me fazias! E quando a tua patroa nos apanhou a darmos as nossas
beijocas?
— Sr. Camilo
Castelo Branco! — acabou por dizer a senhora, colérica.
— Ah! Já me
conheces?!
A companheira
fez ver à dama ofendida que ele certamente ouvira tratá-lo por peste e vingou-se cruelmente. Já na
carruagem, ainda Camilo lhe disse, com uma gargalhada:
— Adeus, Maria
Isabel. Dá beijinhos ao nosso petiz...
***
Próximo de um café frequentado por Camilo, vivia uma
senhora brasileira de nome Iracema. Trocista, alcunhou o escritor de Flautinhas e de Pernoita, devido à circunstância de ter as pernas altas e magras. O
romancista sabia do caso, ria-se e não ligava importância.
Mas a senhora,
solteirona, quando soube de quem se tratava, abandonou as alcunhas e começou a
lançar-lhe olhares doces. Os amigos, sabedores da reviravolta da formosa
Iracema, felicitaram o herói. Ele, risonho, elucidou:
— Vou escrever
à apreciadora do meu admirável focinho bexigoso...
E mandou-lhe
por um moço, duas quadras. A primeira era assim:
Diz-me, oh! jovem caipira,
Gostas muito do Flautinhas?
Minha linda, minha Iracêmea
boa p'rás galinhas...
Gostas muito do Flautinhas?
Minha linda, minha Iracêmea
boa p'rás galinhas...
A segunda
quadra é impublicável. E assinou. “Teu Camilo, o Flautinhas”.
Daí a uma
hora, apareceu no café um rapazito magro, a tremer muito, e perguntou quem era
o malcriado de um tal Camilo que lhe queria partir a cara.
Camilo levantou-se
logo e quando o brasileirinho, irmão da ofendida, ia dar-lhe um soco, ele
travou-lhe o braço, dizendo sorridente:
— Espere meu
amigo. O senhor é fraquíssimo, com poucas carnes, etéreo, quase gasoso. Se eu
lhe desse um tabefe, ia parar à Foz.
E contou-lhe
as troças da mana.
O rapazito
concordou, dizendo:
— Não deixa
vossa senhoria de ter razão, mas aqueles versos são muito fortes, Sr. Camilo.
O escritor
sorriu, abraçou-o e pregou no corpo do mano da Iracêmea uma formidável
bebedeira de vinho do Porto.
Por fim, o
escritor pegou no rapazinho e foi levá-lo a casa, dizendo à brasileirinha que
estava à janela:
— O seu mano,
apesar de não se lamber com a bebedeira em honra da nossa amizade ainda terá
forças para dar a Vossa Senhoria, um beijo de reconciliação em meu nome.
A senhorinha
bateu-lhe com a janela na cara e assim terminou a picaresca aventura.
***
Em 1861,
Camilo e Vieira de Castro moravam na Rua de São Julião, onde recebiam raras
visitas. Uma noite, Camilo deu ali uma ceia memorável que se prolongou até
altas horas. Quando o criado o avisou que despontava a aurora, o romancista
irritou-se:
— O dia nasce
para o merceeiro e para o alfaiate ali defronte. Para nós, não. Fecha as portas
das janelas e deixa as luzes acesas!
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LOURENÇO RODRIGUES
Anedotas e episódios da vida de pessoas célebres.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
LOURENÇO RODRIGUES
Anedotas e episódios da vida de pessoas célebres.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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