Camilo Castelo Branco: O incendiário
Camilo Castelo
Branco, em seguida a regressar da Póvoa de Varzim a Seide, vinha triste,
apreensivo, porque lhe faltava a convivência com velhos amigos, o Pindela, o
João de Mendonça e outros, seus infalíveis parceiros de palestra à mesa de
algum dos cafés daquela animada praia.
Não era que
eles se importassem com a colônia balnear, com a sua vida galante e
mexeriqueira, com as trupes
dramáticas que chegavam ou partiam, com os casamentos em projeto, com as perdas
ou os lucros dos batoteiros. Nada disso os interessava.
Apenas vinham
à porta do botequim, não para ver alguma linda mulher, mas algum bonito cavalo,
que lhes anunciavam. E, trocando rápidas impressões acerca do ginete em
evidência, voltavam tranquilos para a sua mesa, onde conversavam recordações e
saudades — infólio volumoso, que mentalmente Camilo arquivava com ternura.
Passar da
Póvoa para a solidão melancólica de Seide era, em verdade, um irritante
contraste, contra que os nervos do romancista protestavam revoltados, durante
algumas longas semanas de impaciência e desalento.
Então
renasciam os pavores e as apreensões sinistras, não só quanto ao seu estado de
saúde, mas também à insânia de Jorge, o seu primogênito, a quem o regresso à
aldeia de Seide sugeria as alucinações e os vícios de que na ruidosa temporada
da Póvoa era menos perseguido.
Camilo
percebeu que Jorge, depois que chegara a Seide, estava muito exaltado, e
lembrou a D. Ana Plácido a conveniência de o levarem para o Bom Jesus do Monte,
onde aproveitariam ainda alguns dias de agradável outono.
Mas a
exaltação de Jorge não tardou a atingir uma grande violência em conflito com o
irmão, tendo o pai e a mãe necessidade de esforçadamente os apaziguar,
expondo-se assim ao perigo de algum possível desacato.
No dia
seguinte, pensando sempre no seu infeliz Jorge, que continuava a mostrar-se
excitadíssimo, Camilo pediu a D. Ana Plácido que lhe fosse buscar o “Tratado
clínico de psiquiatria”, pelo Dr. Krafft Ebing.
Ela, com a sua
habitual resignação e indefectível paciência, obedeceu logo. Acendeu uma vela,
foi procurar o livro e voltou em breve. Seriam dez horas da noite. O antigo
candeeiro da banca de Camilo iluminava bem todo o recinto.
Contudo, o
romancista tentou ler, encontrar a página relativa aos “atos impulsivos” e não
o pôde conseguir; queixava-se de lhe faltar a vista e de não poder dominar uma
crise nervosa. D. Ana Plácido submissamente tomou o livro e começou lendo com
vagar, não sem algum custo, porque havia compreendido quanto o estado de Jorge
preocupava nesse momento Camilo.
Chegou a
triste leitora ao parágrafo em que o ilustre professor vienense diz que no caso
de degenerescência hereditária, agravada pelo abuso do álcool e do onanismo, a
impulsão irresistível para os atos criminosos, tais como o incêndio, é vulgar.
Desafogando a
sua angústia de mãe desolada, D. Ana Plácido pousou o livro sobre a banca e
disse, no trêmulo das fundas emoções:
— Então, não
devemos considerar o Jorge um criminoso, mas apenas um doente, pelo fato de já
ter ido ao Outeiro com a ideia de pegar fogo.
— Pobre mãe! —
respondeu Camilo. —Triste consolação é essa. De um modo ou outro, o nosso Jorge
está perdido.
Camilo descera
a pala do boné e ficou imóvel na sua cadeira de braços.
Um estranho
não saberia dizer se ele dormia ou meditava.
Mas D. Ana Plácido
bem sabia que o romancista pensava e no que pensava, porque o mesmo assunto
enchia de amargura as duas almas: era a desgraça do filho.
Ao cabo de
algum tempo de um silêncio torturado, Camilo perguntou:
— O Jorge onde
está?
— Fechou-se no
quarto, respondeu a mãe.
— Mas não o
tens sentido?
— Não.
— Então
sossegou. Hão de ser onze horas. Vamo-nos deitar.
Onze horas da
noite, em São Miguel de Seide, são um abismo insondável de solidão e de
silêncio, ainda quando haja luar. Mas a negrura do céu, do arvoredo e dos
montes parecia tornar mais espessos e vastos o silêncio e a solidão.
Camilo
recolheu-se à sua alcova, modesta e tristonha, que tinha por antecâmara uma
saleta, escassamente mobiliada. Era no andar superior, bem como o escritório e
o quarto de D. Ana Plácido.
Sempre receosa
de uma tragédia, ela dormia pouco e em sobressalto; um gemido de Camilo bastava
para despertá-la. E, naquela noite, estava tão inquieta que não poderia
adormecer.
Mais assustada
ficou ao sentir os passos de Jorge, que tinha podido escapar-se de casa.
Reentrava cauteloso, para não ser pressentido. Mas a pobre mãe deu fé e logo
adivinhou o motivo dessa misteriosa fuga, porque no coração das mães infelizes
há uma presciência aguda como a ponta de um punhal que se crava fundo.
D. Ana Plácido
suspeitou que Jorge sentira, mais uma vez, a impulsão irresistível para
efetivar a proeza de incendiário, que na primeira tentativa falhara.
Atormentada
por este pressentimento, que no seu espírito se fizera convicção, a malfadada
senhora abrira sorrateiramente uma das janelas do escritório e pôs-se a olhar,
a mirar para todos os lados, crendo que havia de ver rebentar alguma labareda
dentre a escuridão cerrada.
Mas, por mais
que espreitasse e remirasse, os seus olhos nada distinguiam na massa negra e
morta, onde o único sinal de vida era, de quando em quando, o voo rápido dos
morcegos.
Bem desejaria
enganar-se por amor daquele desgraçado filho, que nascera sob o influxo de uma
estrela funesta, que nem consciência tinha da sua própria mocidade e que a
natureza ironicamente dotara com algum talento artístico.
O sestro de
incendiário horrorizava a e a pobre mãe quase tinha saudades do tempo em que o
seu Jorge desenhava qualquer trecho de paisagem ou copiava as caricaturas de
Sanhudo; e ainda do tempo em que ele, alta noite, se empoleirava nas árvores de
Seide a tocar flauta, com uma expressão de tristeza que fazia chorar o pai e a
ela a arrepiava de desgosto.
Agora o seu
Jorge já não era um artista inculto, já não era um talento espontâneo, como a
florescência das ervas dos montes; agora queria ser incendiário, agora queria
vingar os seus rancores de degenerado semeando a destruição e a ruína, como um
vândalo que se propusesse destruir as mesquinhas aldeias de Seide e Landim.
Prouvera a
Deus que naquela noite se enganasse, que Jorge não tivesse praticado qualquer
malfeitoria que o tornasse ainda mais odioso aos vizinhos e aos criados.
Mas o coração
de D. Ana Plácido não podia aquietar se, não dava trégua às suas apreensões e
por isso ela foi, pé-ante-pé, encostar se à vidraça, na saleta de Camilo. Sem
fazer o menor ruído, observou, olhando na direção de Landim; e logo descobriu
uma chama que rompia ainda timidamente no lugar do Outeiro.
Aterrorizada,
espavorida, soltou um grito, que estremunhou Camilo; desceu à pressa a escada,
clamando pelos criados, especialmente pelo Tomás da Brasileira, que era forte e
valente; mandou-os tocar o sino a rebate, chamar o Nuno, que morava ali bem
perto, e que fossem todos a correr para o Outeiro, levando cada um a água que
pudesse, porque o fogo parecia estar ainda em princípio.
Empurrando-os
quase até ao portão, que deixaram escancarado, Ana Plácido, cardíaca e
linfática, subiu a escada abafando.
Ao limiar da
saleta parou e conseguiu dizer:
— Lá foram.
Confio que o Tomás salvará a situação.
— Deus queira,
respondeu o romancista.
Entretanto,
ele tinha se sentado na cama e feito luz. Pôs o boné, enterrando-o, embrulhou-se
no edredom e acendeu inconscientemente um charuto.
Nada mais
falso que a aparência de tranquilidade desse fumista, cujo busto tinha naquela
hora um estranho aspecto caricatural.
Camilo sentia
galopar o coração e latejar as carótidas. Tinha a cabeça escandecida, os pés
frios, o peito mordido de nevralgias, tinha carrilhões nos ouvidos.
Não cessara
ainda o rebate aflitivo dos sinos em Seide e Landim. Dos lados do Outeiro
vinham gritos de alarido.
Aproximando-se
da janela, D. Ana Plácido exclamou:
— Virgem
Santíssima! acudi-me. O fogo vai lavrando!
Mas caiu em
si, reconheceu a claridade mansa de uma fogueira, acesa pelos aldeões, talvez
com a intenção de espiarem ou intimidarem o incendiário.
Meia hora
depois voltavam os criados.
Camilo bradou:
— Vem cá,
Tomás.
— Senhor
Bisconde!
— O que se
passou?
— O fogo foi
pegado na madeira da nora. Referia-se ao engenho hidráulico para tirar água dos
poços.
— E ardeu
muito?
— Uns quatro
palmos bem medidos.
A indenização
seria, talvez, o preço de quatro capítulos de um livro a fazer.
— O pior,
tornou Camilo, é que tu agora ficas mal com todas as sogras.
— Antão por
quê?
— Porque te
fizeste salvador das noras.
D. Ana Plácido
atalhou:
— Ainda bem
que já gracejas. Mas não te demores, Tomás, que o Sr. Jorge tem luz no quarto e
pode pegar fogo à casa. Se não abrir a porta, arromba-lha.
Tomás foi
cumprir a ordem. Jorge não abriu logo.
— Se não abre,
meto a porta dentro.
Então Jorge
apareceu, vinolento, e regougou ameaçador:
— Não foi
hoje, mas não tardará muito, palavra de honra.
Imediatamente
o Tomás da Brasileira deu-lhe dois empurrões, jogando-o contra o leito e
deixou-o subjugado pelo medo. Foi mais uma noite de tortura que Ana Plácido e
Camilo desvelaram no seu exaustivo Calvário de Seide.
---
ALBERTO PIMENTEL
O torturado de Seide (1921)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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