A mancha hiptálmica
Tradução: Iba Mendes (2020)
— Que
tem essa parede?
Levantei
também a vista e olhei. Não havia nada. A parede estava lisa, fria e
completamente branca. Apenas em cima, próximo ao teto, estava ofuscado pela
ausência de luz.
Outro,
por sua vez, alçou os olhos e os manteve por um instante imóveis e bem abertos,
como quando se quer dizer algo que não se sabe exatamente como expressar.
— P...
parede? — indagou logo em seguida.
Isto
sim: torpeza e sonambulismo das ideias, quanto é possível.
— Não é
nada — respondi — é a mancha hiptálmica.
— Mancha?
—...
hiptálmica. A mancha hiptálmica. Este é
o meu quarto. Minha mulher dormia daquele lado.... Que dor de cabeça! Bem,
estávamos casados fazia sete meses e anteontem ela morreu. Não é isto?... É a
mancha hiptálmica. Uma noite minha mulher acordou sobressaltada.
— O que
você diz? — perguntei-lhe inquieto.
— Que
sonho mais estranho! — respondeu-me ainda angustiada.
— Que
era?
—
Também não sei... Sei que foi um drama... Uma questão de drama... Uma coisa
obscura e profunda... Que horror!
— Por
Deus, trata de lembrar-te! — instei com ela, vivamente interessado. — Vocês me
conhecem como homem de teatro...
Minha
mulher fez um esforço.
— Não
posso... Só me lembro do título: A mancha tele... hita... hiptálmica! E o rosto
amarrado com um lenço branco.
— Quê?...
— Um
lenço branco no rosto... A mancha hiptálmica.
“Estranho!"
murmurei ininterruptamente por mais de um segundo para meditar sobre aquilo.
Porém
dias depois minha mulher saiu do quarto com o rosto amarrado. Assim que a vi,
lembrei bruscamente e notei em seus olhos que ela também havia se lembrado.
Ambos caímos na gargalhada.
—
Sim!... sim!... — ela ria. Assim que vesti meu cachecol, lembrei...
— Um
duende?…
— Não sei;
creio que sim...
Durante
o dia ainda gracejamos com aquilo, e à noite, enquanto minha mulher se despia,
gritei-lhe de repente da sala de jantar.
— Veja
lá...
— Sim,
a hiptálmica! respondeu-me rindo. Da minha parte, pus-me a rir, e durante
quinze dias vivemos em plena loucura de amor.
Após
esse lapso de aturdimento, seguiu-se um período de inquietação amorosa, a surda
e mútua decepção de um desgosto que não veio e que, por fim, afogou-se em
explosões de radiante e furioso amor.
Uma
tarde, três ou quatro horas depois de almoçar, minha mulher, não me achando,
entrou em seu quarto e ficou surpresa ao ver as persianas fechadas. Viu-me
estendido na cama como um morto.
—Federico!
— gritou enquanto corria até mim.
Não respondi
uma só palavra nem sair de lugar. E era ela, minha mulher! Vocês entendem?
—
Deixa-me! — afastei-me com raiva, voltando-me para a parede.
Durante
um certo tempo não ouvi nada. Depois, sim: os soluços de minha mulher, o seu
lenço afundado até a metade na boca.
Nessa
noite ceamos em silêncio. Não pronunciamos uma palavra, até que, às dez, fiquei
surpreendido com a mulher agachada diante do guarda-roupa, dobrando com extremo
cuidado, prega por prega, um lanço branco.
— Mas
desgraçado! — exclamou desesperada, erguendo minha cabeça. — O que faz?
Era
ela, minha mulher! Eu a abracei de volta com intimidade.
— Que
fazia? — respondi-lhe. — Buscava uma explicação exata para o que está
acontecendo conosco.
— Federico...
meu amor... — murmurou.
E a
onda da paixão nos envolveu mais uma vez.
Vi que
ela se despia ali mesmo na sala de jantar. E perguntei uivando de amor:
— Por
que não?...
— Hiptálmica,
hiptálmica! — respondeu rindo e se despindo com toda a pressa.
Quando
entrei, fiquei impressionado com o considerável silêncio do quarto. Aproximei-me
sem fazer barulho e olhei. Minha mulher estava deitada, com o rosto
completamente inchado e branco. O seu rosto estava envolvido num lenço.
Afastei
suavemente o cobertor e pus-me à beira da cama, impondo as mãos por trás de sua
nuca.
Não
havia ali nenhum farfalhar de roupas nem remota trepidação. Nada. A chama da
vela queimava como se fosse aspirada pela imensidão do silêncio.
Passaram
horas e horas. As paredes, brancas e frias, ia gradualmente escurecendo até o teto.
Que era isso? Não sei...
E alcei
novamente meus olhos. Os outros fizeram o mesmo e os mantiveram concentrados à
parede por dois ou três segundos. Por fim, senti-os pesadamente fixos em mim.
— Você
nunca esteve num manicômio? — indagou-me.
— Que
eu saiba, não... — respondi.
— E no
presídio?
— Até o
momento, também não.
— Pois
tenha cuidado, porque pode acabar num ou noutro.
— É
possível... perfeitamente possível... — repliquei procurando dominar a confusão
de minhas ideias.
Saíram.
Estou
convencido de que foi denunciar-me, e acabo de me estender sobre o divã. Como a
dor de cabeça persistisse, atei o rosto com o lenço branco.
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