3/18/2020

A mancha hiptálmica (Conto), de Horácio Quiroga



A mancha hiptálmica
Tradução: Iba Mendes (2020)
— Que tem essa parede?
Levantei também a vista e olhei. Não havia nada. A parede estava lisa, fria e completamente branca. Apenas em cima, próximo ao teto, estava ofuscado pela ausência de luz.
Outro, por sua vez, alçou os olhos e os manteve por um instante imóveis e bem abertos, como quando se quer dizer algo que não se sabe exatamente como expressar.
— P... parede? — indagou logo em seguida.
Isto sim: torpeza e sonambulismo das ideias, quanto é possível.
— Não é nada — respondi — é a mancha hiptálmica.
— Mancha?
—... hiptálmica. A mancha  hiptálmica. Este é o meu quarto. Minha mulher dormia daquele lado.... Que dor de cabeça! Bem, estávamos casados fazia sete meses e anteontem ela morreu. Não é isto?... É a mancha hiptálmica. Uma noite minha mulher acordou sobressaltada.
— O que você diz? — perguntei-lhe inquieto.
— Que sonho mais estranho! — respondeu-me ainda angustiada.
— Que era?
— Também não sei... Sei que foi um drama... Uma questão de drama... Uma coisa obscura e profunda... Que horror!
— Por Deus, trata de lembrar-te! — instei com ela, vivamente interessado. — Vocês me conhecem como homem de teatro...
Minha mulher fez um esforço.
— Não posso... Só me lembro do título: A mancha tele... hita... hiptálmica! E o rosto amarrado com um lenço branco.
— Quê?...
— Um lenço branco no rosto... A mancha hiptálmica.
“Estranho!" murmurei ininterruptamente por mais de um segundo para meditar sobre aquilo.
Porém dias depois minha mulher saiu do quarto com o rosto amarrado. Assim que a vi, lembrei bruscamente e notei em seus olhos que ela também havia se lembrado. Ambos caímos na gargalhada.
— Sim!... sim!... — ela ria. Assim que vesti meu cachecol, lembrei...
— Um duende?…
— Não sei; creio que sim...
Durante o dia ainda gracejamos com aquilo, e à noite, enquanto minha mulher se despia, gritei-lhe de repente da sala de jantar.
— Veja lá...
— Sim, a hiptálmica! respondeu-me rindo. Da minha parte, pus-me a rir, e durante quinze dias vivemos em plena loucura de amor.
Após esse lapso de aturdimento, seguiu-se um período de inquietação amorosa, a surda e mútua decepção de um desgosto que não veio e que, por fim, afogou-se em explosões de radiante e furioso amor.
Uma tarde, três ou quatro horas depois de almoçar, minha mulher, não me achando, entrou em seu quarto e ficou surpresa ao ver as persianas fechadas. Viu-me estendido na cama como um morto.
—Federico! — gritou enquanto corria até mim.
Não respondi uma só palavra nem sair de lugar. E era ela, minha mulher! Vocês entendem?
— Deixa-me! — afastei-me com raiva, voltando-me para a parede.
Durante um certo tempo não ouvi nada. Depois, sim: os soluços de minha mulher, o seu lenço afundado até a metade na boca.
Nessa noite ceamos em silêncio. Não pronunciamos uma palavra, até que, às dez, fiquei surpreendido com a mulher agachada diante do guarda-roupa, dobrando com extremo cuidado, prega por prega, um lanço branco.
— Mas desgraçado! — exclamou desesperada, erguendo minha cabeça. — O que faz?
Era ela, minha mulher! Eu a abracei de volta com intimidade.
— Que fazia? — respondi-lhe. — Buscava uma explicação exata para o que está acontecendo conosco.
— Federico... meu amor... — murmurou.
E a onda da paixão nos envolveu mais uma vez.
Vi que ela se despia ali mesmo na sala de jantar. E perguntei uivando de amor:
— Por que não?...
— Hiptálmica, hiptálmica! — respondeu rindo e se despindo com toda a pressa.
Quando entrei, fiquei impressionado com o considerável silêncio do quarto. Aproximei-me sem fazer barulho e olhei. Minha mulher estava deitada, com o rosto completamente inchado e branco. O seu rosto estava envolvido num lenço.
Afastei suavemente o cobertor e pus-me à beira da cama, impondo as mãos por trás de sua nuca.
Não havia ali nenhum farfalhar de roupas nem remota trepidação. Nada. A chama da vela queimava como se fosse aspirada pela imensidão do silêncio.
Passaram horas e horas. As paredes, brancas e frias, ia gradualmente escurecendo até o teto. Que era isso? Não sei...
E alcei novamente meus olhos. Os outros fizeram o mesmo e os mantiveram concentrados à parede por dois ou três segundos. Por fim, senti-os pesadamente fixos em mim.
— Você nunca esteve num manicômio? — indagou-me.
— Que eu saiba, não... — respondi.
— E no presídio?
— Até o momento, também não.
— Pois tenha cuidado, porque pode acabar num ou noutro.
— É possível... perfeitamente possível... — repliquei procurando dominar a confusão de minhas ideias.
Saíram.
Estou convencido de que foi denunciar-me, e acabo de me estender sobre o divã. Como a dor de cabeça persistisse, atei o rosto com o lenço branco.

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