3/07/2020

A galinha degolada (Conto), de Horacio Quiroga




A galinha degolada

Tradução: Iba Mendes (2020)

O dia todo num banco do quintal, permaneciam sentados os quatros filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos e voltavam a cabeça com a boca aberta.

O quintal era de terra, cercado de um dos lados por um muro de tijolos. O banco ficava paralelo ao muro, a uma distância de cinco metros, e ali eles se conservavam imóveis, mantendo os olhos fixos nos tijolos.  Ao cair da tarde, quando o sol se escondia por trás do muro, os idiotas faziam festa. No princípio a luz ofuscante prendia-lhes a atenção, e aos poucos seus olhos se animavam; em seguida, riam estrepitosamente, convulsionados pela mesma expressão de alegria, contemplando o sol com satisfação bestial, como se fosse comida.

Outras vezes, alienados no banco, zumbiam horas inteiras, imitando o ruído do bonde elétrico. Os estridentes sons sacudiam-nos da inércia e então, mordendo a própria língua, corriam mugindo por todo o quintal. Porém, quase sempre permaneciam imergidos na letargia obscura do idiotismo, e assim passavam o dia inteiro sentados no banco, com as pernas erguidas e paralisadas, empapando as calças com uma baba pegajosa.

O mais velho tinha doze anos e o menor oito. Em todo o seu aspecto sujo e descuidado observava-se a completa ausência de cuidado maternal.

Entretanto, ouve um tempo em que esses quatro idiotas haviam sido o encanto dos pais. Com três meses de casados, Manzzini e Berta orientaram seu profundo amor de marido e mulher, e mulher e marido, para um futuro muito mais glorioso: um filho. Ora, que satisfação maior poderia haver para os dois apaixonados que essa honrosa consagração de carinho, libertado do mesquinho egoísmo de um mútuo amor sem propósito algum e, o que é pior para o mesmo amor, sem esperanças possíveis de renovação?

Assim se sentiram Mazzini e Berta, e quando o filho nasceu, aos catorze meses de casamento, acreditavam que a felicidade estava completa.  A criança cresceu, bela e radiante, até atingir um ano e meio de idade. No vigésimo mês, porém, o menino fora tomado por convulsões terríveis, e já pela manhã não podia reconhecer mais seus pais. O médico o examinou longamente, concentrando toda sua atenção profissional em pesquisar a doença como de causa hereditária, originada dos pais.

Passados alguns dias, os membros paralisados recobraram os movimentos, mas a inteligência, a alma, o próprio instinto se haviam desaparecido por completo. Ficara profundamente idiota, babão, apático, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.

— Meu filho, meu querido filhinho! — soluçava a infeliz mulher sobre aquele farrapo de vida.

O pai, desolado, acompanhou o médico até a saída.

— Ao senhor eu posso falar com franqueza: trata-se de um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se, mas apenas naquilo que é permitido ao seu próprio idiotismo, e nada além disso.

— Oh, sim... sim... — assentia Mazzini. — Porém diga-me: o doutor acredita realmente que o caso seja hereditário?

— Quanto à herança paterna, eu já expressei minha opinião sobre seu filho. No que diz respeito à mãe, tem ela um pulmão que não funciona bem. Não vejo nada além disso, a não ser uma respiração débil. Faz-se necessário examiná-la mais detidamente.

Com a alma dilacerada pelo remorso, Mazzini redobrou o amor a seu filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Precisou ainda consolar sem trégua a Berta, ferida em seu íntimo por aquele fracasso de sua precoce maternidade.

Como é natural, o casal direcionou todo seu amor na esperança de outro filho. Este nasceu saudável, e seu sorriso límpido reacendeu o futuro extinto. Contudo, aos dezoito meses as convulsões do primogênito se repetiram, e no outro dia amanheceu idiota.

Desta feita, os pais mergulharam em profundo desespero. Logo seu sangue, seu amor estavam amaldiçoados! Sobretudo seu amor! Contava ele vinte e oito anos, e ela vinte e dois. E toda essa apaixonada ternura, porém, não era capaz de gerar um átomo de vida. Já não pediam beleza e inteligência como se dera com o primogênito. Em vez disso, queriam apenas um filho! Um filho como outro qualquer!

Do segundo desastre brotaram novas labaredas do dolorido amor, um desesperado desejo de redimir de uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Vieram gêmeos, e passo a passo repetiu-se o mesmo processo dos mais velhos.

Mas acima de sua imensa amargura, pairava em Mazzini e Berta uma grande compaixão pelos quatro filhos. Fez-se necessário arrancar do limbo da mais funda animalidade, não já suas almas, senão o próprio instinto abolido.  Não sabiam comer, mudar de lugar e nem sequer sentar-se. Por fim, aprenderam caminhar, mas por não saberem distinguir os obstáculos, esbarravam em tudo. Quando lhes davam banho, mugiam até ficar com o rosto vermelho, injetado de sangue. Só se animavam para comer, ou quando viam cores brilhantes ou escutavam trovões. Riam-se, então, pondo a língua de fora e expelindo golfadas de baba, tomados de um frenesi bestial. Eram, no entanto, dotados de certa faculdade imitativa, porém nada além disso.

Com os gêmeos pareceu concluída a aterradora descendência. Todavia, passados três anos, desejaram ardentemente um novo filho, acreditando que o longo tempo transcorrido houvesse aplacado a fatalidade.

Não satisfaziam suas esperanças. E nesse ardente desejo que se exasperava, em razão de sua infrutuosidade, tornaram-se cada vez mais amargos. Até esse instante, cada um havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na desgraça dos filhos; mas a desesperança da redenção diante das quatro bestas que haviam nascido de cada um deles, fez germinar a imperiosa necessidade de culpar os outros, algo que é próprio dos corações subalternos.

Os primeiros arrufos iniciaram com a troca de pronomes: teus filhos. E, como além do insulto havia a insídia, o ambiente tornou-se carregado.

— Parece-me — disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos — que poderia manter os meninos mais limpos.

Berta permaneceu lendo, como se não tivesse ouvido.

— É a primeira vez — emendou ela — que te vejo preocupado com o estado de teus filhos.

Mazzini voltou um pouco a cara para ela com um sorriso forçado:

— De nossos filhos, é o que me parece.

— Bem, de nossos filhos. Fica melhor assim? — E levantou os olhos.

Desta vez Mazzini foi bastante claro:

— Provavelmente vai atribuir a culpa a mim, não?

— Era só o que me faltava!… — murmurou.

— Só faltava o quê?

— Que se alguém tem a culpa, não sou eu, entenda bem! — É isso que queria dizer.

O marido olhou-a um momento, com brutal desejo de insultá-la.

— Deixa para lá — articulou, secando-se por fim as mãos.

— Como quiser, mas se está insinuando que...

— Berta!

— Como quiser!...

Esta foi a primeira discussão e logo sucederam outras. Porém, nas suas inevitáveis reconciliações, suas almas se uniam em ardente anseio por outro filho.

Nasceu assim uma menina. Viveram dois anos em cruel ansiedade, sempre na iminência permanente de outro desastre. Nada, entretanto, aconteceu, e voltaram para ela toda sua complacência, que a pequena levava aos mais extremos limites da má-criação.

Se nos últimos tempos Berta sempre cuidava de seus filhos, ao nascer Bertita esqueceu-se quase que completamente dos outros. A simples recordação deles a horrorizava, e de tal forma que se sentia como se tivesse cometendo uma ação atroz. O mesmo se dava com Mazzini, embora em menor grau. Mas nem por isso a paz havia atingido às suas almas. A mais banal indisposição de sua filha fazia suscitar o terror de perdê-la, por causa de sua infecta descendência. Haviam acumulado fel o tempo suficiente para que o vaso, ao menor contato, quebrasse-se, transbordando fora seus venenos.

O respeito mútuo entre ambos fora perdido desde a primeira discussão envenenada; e se há algo a que o homem se deixa seduzir para a satisfação de sua crueldade, é quando já começou a humilhar de todo uma pessoa.

Antes se reprimiam pela ausência mútua de sucesso; agora, porém, que este havia chegado, cada qual, atribuindo o êxito a si próprio, sentia maior desprezo às quatro aberrações que o outro havia obrigado a criar.

Com tais sentimentos, já não havia mais afeto possível para os quatro filhos maiores.  A empregada vestia-os, dava-lhes comida e os colocava para dormir com visível brutalidade. Não os banhava quase nunca. Passavam quase o dia todo sentados em frente ao muro, alheios a mais leve carícia.

Desta maneira Bertita completou quatro anos. E nesta noite, como consequência das guloseimas que os pais eram incapazes de negar-lhe, a menina teve calafrios e febre. E o receio de vê-la morrer ou tornar-se idiota fez reabrir a eterna chaga.

Fazia três horas que não se falavam e a razão foi, como quase sempre, os fortes passos de Mazzini.

— Meu Deus! Será que você não pode caminhar mais devagar? Quantas vezes?...

Ela sorriu, desdenhosa:


— Está bem, é que me esqueço. Acabou-se! Não faço de propósito.

Ela sorriu com indiferença:

— Não, não acredito muito em você!

— Nem eu deveria ter acreditado tanto em você... sua tísica!

— Quê? O que você disse?

— Nada!

— Sim, ouvi você dizer alguma coisa! Olhe: não sei o que disse, mas juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que você teve!

Mazzini empalideceu.

— Ah, por fim! — murmurou cerrando os dentes. — Isso era tudo o que você queria dizer, sua víbora!

— Sim, víbora, sim! Mas eu tive pais saudáveis, ouviu bem? Saudáveis! Meu pai não morreu louco! Eu poderia ter tido filhos como os de todo mundo! Esses filhos são seus, os quatro!

— Víbora, tísica! Foi isso que eu disse, e o que eu quero dizer! Pergunta, pergunta ao médico quem tem maior culpa da meningite dos seus filhos: meu pai ou o seu pulmão doente, víbora!

Continuaram a discussão ainda com maior violência, até que um gemido de Bertita fechou instantaneamente suas bocas. À uma hora da manhã a ligeira indigestão havia passado, e como sempre acontece com todos os casais jovens que se amaram intensamente, ao menos uma vez, a reconciliação chegou, tanto mais abrasadora quanto mais agressivas tenham sido as ofensas.

O dia amanheceu esplendoroso, no entanto, Berta se levantou cuspindo sangue. As emoções e a péssima noite eram, sem dúvida, as grandes culpadas. Mazzini a reteve nos braços por longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que nenhum dos dois ousasse dizer uma só palavra.

Às dez horas, decidiram sair depois do almoço. Como tinham pouco tempo, deram ordem à empregada para que matasse uma galinha.

O dia radiante tirara os quatro idiotas de seu banco. De maneira que, enquanto a empregada degolava o animal lentamente na cozinha (Berta aprendera com sua mãe esse método de conservar a frescura da carne), sentiu como se alguém respirasse atrás de si. Voltou-se e viu os quatro idiotas com os ombros pegados uns nos outros, observando estupefatos a operação. Vermelho... vermelho...

— Senhora! Os meninos estão aqui na cozinha!

Berta apareceu; não queria que jamais entrassem ali. Quanto mais nessas horas de completo perdão, de esquecimento e felicidade reconquistada; podia ter evitado essa horrível visão! Porque, naturalmente, quanto mais intenso era o sentimento de amor ao marido e à filha, mais aversão nutria pelos monstros.

— Que se retirem, Maria! Leve-os, leve-os, estou ordenando.

As quatro bestas, aturdidas, brutalmente empurradas, foram enxotadas para o seu banco.

Depois de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires e o casal foi passear pelos arredores. À tarde, retornaram, mas Berta quis saudar por um momento os vizinhos da frente. A menina escapou ligeira para casa.

Entretanto os idiotas haviam permanecido o dia inteiro no banco. O sol já havia transposto os limites do muro, começava a esconder, e eles continuavam olhando os tijolos, mais inertes como nunca.

De repente, algo se colocou entre seu olhar e o muro. Sua irmã, cansada de passar cinco horas com os pais, desejou observar por conta própria. Parada no pé do muro, olhava pensativa para cima. Sem dúvida, queria subir. Por fim, decidiu trepar numa cadeira sem assento, mas ainda não alcançava. Tomou, então,  um caixote de querosene, e seus instintos topográficos a fez colocar o objeto em posição vertical. E com isso triunfou. 

Os quatro idiotas, com o olhar indiferente, examinavam como sua irmã, pacientemente, mantinha o equilíbrio e como, nas pontas dos pés, apoiava o pescoço na parte superior do muro, entre as mãos vacilantes. Viram-na olhar para todos os lados, buscando apoio com o pé para subir mais.

Porém o olhar dos idiotas se animara; a mesma luz insistente cravava-se em suas pupilas. Não tiravam os olhos da irmã enquanto uma sensação crescente de gula bestial ia transformando cada linha de seus rostos. Lentamente avançaram até o muro. A pequena, que já havia firmado o pé, ia montar no muro e pular para o outro lado, sentiu-se agarrada pela perna. Debaixo dela, os oito olhos fixados nos seus lhe deram medo.

— Solte-me! Deixe-me! — gritou sacudindo a perna.

— Mamãe! Ai mamãe! Mamãe, papai! — berrou imperiosamente.

Tentou ainda se agarrar na beirada do muro, mas foi puxada dali e caiu.

— Mamãe! ai! ma...

— Já não podia mais gritar. Um deles lhe apertou o pescoço, separando os cachinhos de cabelos como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma perna até a cozinha, onde pela manhã haviam sangrado a galinha. Seguraram-na firme,  arrancando-lhe a vida segundo por segundo.

Mazzini, na casa da frente, julgou ter ouvido a voz da filha.

— Parece que chamam você — disse para Berta.

Prestaram atenção, inquietos, mas não ouviram nada mais. Contudo, um instante depois se despediram e, enquanto Berta ia guardar o seu chapéu,  Mazzini correu para o quintal.

 — Bertita!

Ninguém respondeu.

— Bertita! — gritou com a voz ainda mais alterada.

E o silêncio foi tão fúnebre para seu coração atemorizado, que lhe subiu pela espinha um calafrio de um horrível pressentimento.

— Minha filha, minha filha! — correu desesperado até o fundo. Porém, ao passar frente à cozinha viu no chão um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta encostada e deixou escapar um grito de horror.

Berta, que se lançara correndo, ao ouvi o angustiado chamado do pai, escutou o grito e respondeu com outro. Mas, ao precipitar-se na cozinha, Mazzini, pálido como a morte, interpôs-se, contendo-a.

— Não entre!... Não entre!...

Berta, ainda assim, conseguiu ver o chão inundado de sangue. Apenas pôde erguer as mãos à cabeça e abraçar o marido com um profundo suspiro.

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Ilustração: André le Blanc

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