“A Filha do Doutor Negro” (Resenha)
A filha do
doutor negro foi o romance com que Camilo Castelo Branco
mimoseou o seu público. Foi um verdadeiro mimo, porque poucas vezes o talento
do grande escritor se mostrou tão esplêndido e vigoroso como nesta maravilhosa
produção.
Tem sido e será ainda por muito tempo assunto de
eternas discussões o saber se o romance deve analisar as pústulas do corpo
social, mostrá-las em toda a sua hediondez, analisar friamente a vida, ser o
observador implacável e descompassivo das misérias da existência,
apresentar-nos tal, como ele é, o quadro da sociedade despido de todos os
prestígios da pintura; ser como o explicador, que nos teatros, em cujo palco se
desenrola um panorama diante dos expectadores, vai indicando, com a sua voz
monótona e sem inflexões, as paisagens que vão aparecendo; ou se deve pôr antes
em jogo as paixões do coração humano, deixar o estudo das feridas nojentas da
sociedade a quem pode remediá-las, pintar e não fotografar, apresentar as
cópias idealizadas e não os modelos prosaicos, contar com o fogo de um ator, e
não recitar com a monotonia do ponto, ser em fim da escola idealista, e não da
escola realista.
Confesso que todas as minhas predileções pertencem
àquela e não a esta escola, que prefiro o livro cuja leitura me extasia, me
enleva, e me comove, ao livro cujas páginas só me podem inspirar asco, tédio e
ceticismo. Bem sei que me objetam que o romance deve ser a pintura da sociedade
real, e não a de uma sociedade fictícia, que nada se lucra com a leitura de um
livro onde não aprendamos a conhecer os homens, e onde pelo contrário sejamos
levados a encará-los por um prisma enganador. Tudo isso será verdade, mas ah!
neste século, em que vai sendo cada vez mais pronunciada a tendência
materialista, onde se poderão refugiar as nobres aspirações da humanidade, se o
santuário da literatura também for profanado, se lhe arrancarem de lá a estátua
do ideal para a arrastarem pelos tremedais da sociedade, se obrigarem também a
dar fruto as pobres florinhas desse jardim defeso, como se lhes não bastasse o
aroma com que se tem deliciado os séculos, os eflúvios do bom, do belo, e do
justo, que tem contribuído mais para a regeneração social do que esses frutos
amargos produzidos pelas flores, enxertadas em árvores úteis, do pomar da
escola de Balzac?
Qual é o fim da escola realista? Iniciar os moços
nos mistérios da existência, precavê-los contra os perigos da sociedade,
ensinar-lhes a conhecer o mal por baixo da camada brilhante que o esconde? A
natureza não deixa raptar artificialmente os seus direitos, e mil Balzaques não
hão de impedir que a experiência seja a única e verdadeira mestra da vida. E
sabem, por fim de contas, o que essa literatura faz? Forma uma geração, como a
geração juvenil que por aí campeia, geração materialista, sem fogo, sem
ilusões, e sem experiência, homens de vinte anos com a devassidão torpe, com o
egoísmo, com a secura de coração dos velhos, para quem as cãs não são diadema
venerando mas coroa de orgia, geração que não encontra espinhos na vida, porque
não quer colher nem uma flor só, geração de Rastignacs e de Rubemprés
aperfeiçoados pelo estudo dos seus modelos.
Mas suponhamos que não é esse o fim da escola
realista, e os mesmos que fazem parte dela zombam da influência exercida pela
literatura sobre os costumes, e asseveram que ninguém se emenda dos seus vícios
ou dos seus defeitos em atenção a um romance e a uma peça de teatro. Nesse caso
qual é? Flagelar o crime e o ridículo, atá-los ao pelourinho, e expô-los à
irrisão da posteridade? Falta-lhes para isso a nobre indignação, a ira sagrada!
O escalpelo de Balzac está muito longe de ser o látego de Juvenal, e o
pelourinho da Comédia Humana é um
pigmeu ao pé da colossal coluna, a que Aristófanes atou a sociedade grega.
Estes observadores do coração humano fariam melhor, se deixassem falar o seu.
Estes frios analisadores, que não veem no vício senão um assunto, no espetáculo
da sociedade corrupta um modelo que pacientemente copiam, são capazes de aparecerem
no vale de Josafá com um aparelho fotográfico, para tirarem uma cópia fria e
descorada do Juízo final, cópia que
Miguel Ângelo contemplará com um sorriso de escárnio.
Mas então não será esse o seu fim, e terá
unicamente o de retratar a sociedade, de apresentar um traslado fiel da época
em que vivemos, sem nenhuma outra intenção? Ainda nesse caso não acho que os realistas preencham esse fim; tem um
sistema de observação muito mesquinho, veem muito ao pé, procedem pela análise
e não pela síntese, fazem laboriosamente o quadro, reunindo figura a figura, de
onde resulta ficar uma tela verdadeira nas particularidades, falsa no todo, sem
proporções, sem perspectiva, sem claro-escuro. Tal não pode ser o sistema da
arte, tal não foi o sistema de Molière. Resulta daí que Molière apresentou um
quadro luminoso, magnífico do seu tempo, em que a vista abrange de relance as
glórias e os ridículos, as virtudes e os vícios do século de Luiz XIV, Alceste
e Tartufo. Balzac não fez mais do que apresentar uma coleção de tipos, nada
genéricos, um grupo de variedades de uma espécie, e, nem que vivesse dois mil
anos, poderia, pelo sistema que adotava, completar a lista de forma que o
futuro pudesse perceber finalmente quais eram as diferentes faces do século em
que vivemos. Canalis pode resumir em si a literatura? Goriot pode-se considerar
como o tipo genérico da paternidade no século XIX? Gobseck e Grandet bastam por
si sós para a descrição do usurário atual?
Seja como for, e sem querer protrair mais este
longa digressão, parece-me que a escola realista, sejam quais forem as suas
intenções filosóficas, não produz em literatura senão as Fanis e as Madames Bovaris, que,
permitam-me que o diga, não se pode dizer rigorosamente que tenham o mérito do Paulo e Virgínia de Bernardin de Saint
Pierre, e da Átala de Chateaubriand.
Camilo Castelo Branco escreveu nas duas escolas. Em
ambas deu provas do seu vasto e flexível talento, mas, parece-me, foi sempre
mais feliz nos romances em que viveu a vida dos seus personagens, em que
chorou, amou, sofreu com eles, do que nos outros em que se limitou a fazê-los
aparecer em cena, como marionetes a
quem faz mover o braço oculto do diretor.
Amor de
perdição, Estrelas propicias, Romance de um homem rico, Amor de salvação, Filha
do doutor negro, são, em quanto a mim,
as suas obras primas. É possível que a minha predileção pelo gênero me obrigue
a ser parcial. Forcejei porque assim não fosse, mas, se o não consegui, paciência.
A Filha do
doutor negro é incontestavelmente um belíssimo romance, bem delineado, bem
conduzido, admiravelmente escrito. Os diálogos estão perfeitamente travados, e
são em geral de um vigor, de uma elevação de pensamentos, de uma poesia muito
notáveis. Abro ao acaso, e leio o seguinte.
Duas palavras de explicação preliminar.
A heroína do romance, Albertina, filha de um
advogado mulato, de grande inteligência e de grande reputação, amou
extremosamente um escrevente de seu pai, com quem este a não deixa casar,
cedendo aos assomos de vaidade naturais a todos os grandes democratas, que
querem o nivelamento social tendo por base o plano em que estão colocados, e
que bradam pelo derrubar dos andares superiores, protestando furiosos quando
lhes chega a sua vez de descerem ao nível das lájeas térreas. Albertina,
desesperada, fugiu com o escrevente, para casar com ele. Perseguiu-os o velho,
incitado por uma ira que degenera em verdadeiro frenesi. A causa dessa
perseguição era, mais do que a vaidade ofendida, o amor paternal, amor cioso
como nenhum, tanto mais quanto se vê obrigado a comprimir os zelos implacáveis
que o acompanham.
Querem que lhes diga o que penso? Parece-me que a
escola idealista consegue, sem ter a isso pretensões, ser mais verdadeira do
que a escola realista. A intuição vale mais do que a observação. Excomunguem-me
embora os pontífices da crítica; compreendo o doutor negro, não compreendo le pére Goriot.
Imaginam facilmente quanto não sofreria o pobre
advogado com os mesmos golpes, que feriam, vibrados por ele, sua filha
estremecida. Antônio da Silveira, um amigo da família, alma generosa, coração
nobre, vem procurá-lo e encontra-o prostrado no leito da dor, mas sempre
implacável, sempre inacessível à misericórdia. É então que ele lhe diz estas
admiráveis palavras:
Sr. doutor Alpedrinha, da borda do abismo, onde a
mão da sua soberba o quer despenhar, levante os olhos para cima e veja Deus.
Vossa senhoria lançou de si com desprezo uma tábua salvadora, quando as ondas
amaríssimas da vida se cavaram em redor da sua alma desvigorizada pela
irreligião. A piedade era o salvamento. A conformidade era o triunfo. A
caridade era o anjo bom que o chamava a perdoar e a abençoar a união de sua
filha. Vossa senhoria consultou os mestres do orgulho, folheou o seu Voltaire,
e não encontrou lá o ditame do perdão da injúria, nem a bandeira da
misericórdia com que devera cobrir a pureza de sua filha, manchada pela
difamação. A soberba está aqui sentada à cabeceira desta cama, com um braço
enroscado na sua garganta. Se do outro lado estivesse uma cruz, a vitória da
honra seria certa. Não vejo um sinal do cristão enfermo em volta deste leito, é
forçoso que as más paixões o dilacerem. Ali fora encontrei uma senhora
chorando. Chora porque perdeu a filha. Chora porque vai perder seu marido.
Chora porque há de sobreviver ao esteio que se lhe quebra para estender a mão à
caridade pública. Valia bem a pena que vossa senhoria obrigasse o pai daquela
desgraçada mulher a ceder-lha para um fim de vida tão desprezado!... Há de o senhor
doutor acabar aí com este peso de remorso sobre o peito!
Francisco Simões sentou-se arrebatadamente na cama
e bradou:
— Cale-se! cale-se que me abafai... Deixe-me morrer
que eu não tenho já espírito que se levante a Deus!
— Pois Deus baixará até ao seu espírito! —
redarguiu Antônio da Silveira. — Experimente, meu amigo. Chame a divina fé em
seu socorro. Veja se pode apagar com lágrimas esse brasido que lhe requeima as
entranhas. Peça ao Senhor a felicidade de sua filha. Perdoe-lhe a ela, perdoe ao
homem que lha roubou.
Que alteza de pensamentos! Que elevação de estilo!
Que nobre singeleza de linguagem!
E conservam-se sempre nessa altura as trezentas
páginas desse admirável romance.
---
PINHEIRO CHAGAS
Ensaios Críticos (1866)
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020).
PINHEIRO CHAGAS
Ensaios Críticos (1866)
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...