Um homem de paixões extremas
Aos 16 anos vamos ver Camilo casado em Friúme com
Joaquina Pereira, filha de lavrador rico. O ilustre escritor e meu distinto
amigo Sr. Alberto Pimentel, num feliz prefácio à comédia O Lobisomem, atribui ao entrecho do curioso entremez a história
destes primeiros amores, epilogados num casamento para generosa reparação duma
falta. A exigências de seu sogro foi Camilo para o Porto estudar, frequentando
a Academia e o 1º e 2º anos da Escola Médica, donde transitou para Coimbra,
perdido o ano por faltas. Rebentara a revolução chamada da Maria da Fonte, do
nome duma criatura encontrada, logo após o nascimento, junto da fonte do Vido,
na freguesia de Fonte Arcada, tendo cosido na fralda da camisinha um bilhete
com a seguinte copla:
Eis-me
exposta junto à linfa
Que aqui mana deste monte
Serei dela a clara ninfa,
Serei Maria da Fonte.
Que aqui mana deste monte
Serei dela a clara ninfa,
Serei Maria da Fonte.
Bêbeda e ladra, como o demonstrou Camilo, o que não
obstou a que a lenda fizesse dela a heroína duma revolução ridícula, cujo hino
guerreiro ainda amiúde por aí ouvimos cantar com foros de patriótico, Maria da
Fonte, levantando revoltosa celeuma no país — fermento azedo que fez levedar a revolução de 1846, como disse o
Mestre — originava o encerramento das aulas na douta cidade da beira Mondego e
obrigava Camilo a retroceder de Coimbra para Vila Rial e a cair com um
condiscípulo entre as hostes de Milhundres, que a ambos agregou à guerrilha na
qualidade de proclamadores. Já então Joaquina Pereira, em Friúme, com uma
filhinha nos braços, chorava o quase abandono do marido que se deixara prender,
numa saudosa visita a Samardã, dos encantos de Maria do Adro, linda camponesa
do lugar.
O Sr. Paulo Osório, no seu livro sobre Camilo, põe
muito justamente em destaque a feição amorosa do grande escritor:
Ele foi um
sacrificado ao amor, como já o haviam sido, em linha de curta ascendência, os
seus maiores, e como a mais que qualquer desses, ele tivesse ainda o amor às
letras, ioda a pequenina paixão se engrandecia, enriquecida pela sua imaginação
exuberante, romantizada pelo seu gênio de artista.
Esta triste e emaciada Maria do Adro morreu um mês
antes duma visita de Camilo à sua aldeia, evocadora dos seus amores pela linda
camponesa, numas férias grandes de setembro. Camilo recebeu a nova à entrada do
povoado, ingenuamente transmitida por um grupo de moças que ele de cima da sua
égua nervosa interrogava ansioso:
— Como
estão vocês, rijas, hein?
— Como um
ferro, graças a Deus. Então já sabe?
— O quê?
—Pois não
sabe que a Maria do Adro...
— Que tem?
está doente?
— Está com
Deus... Morreu faz amanhã um mês.
Vinte e quatro horas depois, Camilo, a convite do
marido de sua irmã, um médico distinto, ia à nave da igreja desenterrar o
cadáver da sua bem-amada. Esse lance shakespeariano vem assim descrito num dos
capítulos das Duas horas de leitura:
Lembra-me
que fuzilavam os relâmpagos duma trovoada de agosto quando entramos na igreja
pela porta da sacristia. Já lá tínhamos uma alavanca e uma enxada. Entrei na
igreja, alumiada a espaços pelo lampejo azul dos trovões, com religioso terror.
Ajoelhei maquinalmente, e senti os sustos dum sacrílego. Meu cunhado deu-me
ânimo com um riso desdenhoso. Abalamos a pedra tumular com o ferro do monte.
Sustentamo-la no pendor contra o peito. Revezamo-nos a cavar, até encontrar as
tábuas laterais do esquife. Não consenti daí em diante o uso da enxada.
Tirei a
terra às mãos-cheias, até sentir debaixo dos dedos, que cravava na terra, as
formas dum corpo mole. Eu tinha a cabeça em lume; as pulsações do coração eram
tão fortes que me agoniavam: não senti cheiro mau senão o da terra impregnada
de ossadas em pó, de vértebras, e pedaços de hábitos mortuários, e contudo
angustiava-me uma sensação de náusea, mas toda moral, sensação que nunca mais
experimentei. Meu cunhado, vendo-me descorar, ofereceu-me um vidro de espírito
que eu não aceitei. Prossegui na exumação, até encontrar as pontas do lenço que
cobria a face do cadáver. Segurei as quatro pontas nas mãos tremidas, tirei
devagar o pano, e vi Maria. Permaneci quieto não sei que tempo, com os joelhos
enterrados e a face pendida sobre a face morta. Não sei dizer-te o que pensei.
Talvez nada! A alma nesses lances creio que se aniquila. Há dores com que o
homem não pode, e Deus, quando as dá assim, permite a letargia, a morte passageira,
a paralisia dos órgãos condutores da impressão. Meu cunhado ergueu-me pelos
braços. Fitou-me com um sorriso... de médico, e afetou um ar de estranheza que
eu antes quisera não fosse fingido.
O resto do
trabalho fê-lo ele. Eu sentei-me na cadeira paroquial, procurando as minhas
ideias, que me fugiam aos turbilhões. Como privado da alma, o estrondo exterior
azoava-me os ouvidos: era o embate da saraiva nas vidraças da igreja, e o
ranger das árvores que açoutavam as cornijas. Eu estava como transido de medo.
Era no estio, e sentia uma espécie de serpente glacial cingir-me das costas
para o peito. O cadáver foi lançado num cesto. Esperamos que anoitecesse, e eu
tomei uma asa do cesto, ajudando a transportá-lo para uma mina seca, na margem
do rio. O dia seguinte fora o designado para dissecarmos o cadáver.
Prepararam-se escalpelos, tesouras e bisturis, durante a noite. Meu cunhado foi
chamar-me de madrugada à cama, e achou-me passeando no meu quarto.
—Já a pé?
disse ele admirado.
—Ainda me
não deitei.
O macabro episódio valeu a Camilo oito dias de
febril delírio e a observação do padre-mestre que o enfermo vagamente ouviu:
—Diz minha
cunhada que muitas pessoas desta família endoideceram...
A confirmação desta afirmativa devia tê-la
desgraçadamente Camilo, mais tarde, com a loucura de seu filho Jorge.
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