Resenha Livro - “A Normalista” – Adolfo Caminha
Por: Paulo Marçaioli
“A Normalista” foi o primeiro romance publicado pelo escritor naturalista cearense Adolfo Ferreira dos Santos Caminha (1867 – 1897). O livro data de 1893 – posteriormente, em 1895, seria publicado o “Bom Crioulo”, obra pioneira na abordagem do amor homossexual numa época em que tal orientação era vista como uma espécie de perversão sexual.
Consta que o “Bom Crioulo” foi pessimamente recepcionado pela crítica da época, em que pese o fato de a obra ainda se situar nos marcos do naturalismo/realismo literário, escola comprometida com a descrição objetiva da realidade numa operação semelhante a de um cientista que observa fenômenos de maneira isenta.
Costuma-se situar o naturalismo literário como uma espécie de desdobramento ou mesmo radicalização da escola realista – se o comprometimento com a objetividade, a crítica social e o afastamento da idealização do amor, visto mais como uma convenção ou comunhão de interesses egoístas, já estão presentes nas obras de maturidade de Machado de Assis e Eça de Queirós, no naturalismo há o ingrediente adicional das escolas cientificistas em voga em fins do século XIX.
O evolucionismo, o darwinismo social e o determinismo irão engendrar, no naturalismo, histórias em que a trajetória das personagens estão de certa forma antecipadamente condicionadas pelo meio em que vivem, pela situação social, pelos instintos e impulsos sexuais e, em alguns casos, até pela raça.
Contudo, ao suscitarmos algumas datas chave, perceberemos que o naturalismo e o realismo embaralham-se, confundem-se na evolução da literatura brasileira do séc. XIX. O “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis, ponto de partido do realismo literário no país, data de 1881, mesmo ano do lançamento d’o Mulato, primeiro romance do maior expoente naturalista do Brasil, Aluísio Azevedo. “O Cortiço”, talvez o ponto máximo do escritor naturalista maranhense data de 1890, três anos antes da publicação do primeiro romance de Adolfo Caminha.
O fato é que o romance “A Normalista” foi publicado já num momento em que a escola literária do naturalismo já estava consolidada no Brasil – e de certa forma a obra antecipa mesmo temas da escola modernista, com sua ênfase na descrição dos tipos populares e uma ácida e irônica crítica da sociedade. Poderíamos sugerir uma comparação entre o romance do escritor cearense e obras como “Bruzundangas” e “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” do romancista carioca Lima Barreto. Ambas fazem crítica social com humor e ironia de tipos populares urbanos. Mas há aqui uma diferença essencial: enquanto o cearense demonstrava um otimismo inequívoco com o advento da República, Lima Barreto ia em sentido diametralmente oposto, já que pudera vivenciar a frustração das expectativas de mudança com a mudança do regime político de 1889.
“A Normalista” conta a trajetória de Maria do Carmo, menina oriunda do sertão do Nordeste, órfã de pai e mãe e criada sob os cuidados do padrinho João da Mata e da madrinha D. Terezinha. O termo “normalista” refere-se às alunas da Escola Normal, espécie de magistério destinado exclusivamente às mulheres.
A crítica social dá o tom neste romance que tem como subtítulo “Cenas Do Ceará”. Tipos populares e urbanos de extratos mais baixos da sociedade como amanuenses, estudantes, professores, barbeiros, jornalistas e poetas boêmios são situados numa Fortaleza tida como atrasada, provinciana. Não bastasse a língua afiada do povo que não perdoa as supostas falhas morais da Normalista e seu namoro com o estudante Zuza, existiam mesmo pasquins e jornais que se incumbiam de disseminar a fofoca em tom de deboche. Todo este moralismo é também cínico e hipócrita já que a infidelidade conjugal (de ambos os lados) predomina em todo lugar. Consta que o tom ácido de Adolfo Caminha neste romance repercutia a sua experiência de vida, já que o escritor supostamente se relacionara com uma mulher que já fora casada e fora também vítima da chicana.
As passagens finais do romance são interessantes ao revelarem um certo otimismo com relação ao futuro republicano no país. Depois de uma gravidez indesejada, Maria do Carmo é remetida a uma casa de campo para ter a criança afastada do julgamento implacável da sociedade fortalezense. No campo, há uma espécie de revigoramento da protagonista, sugerindo uma interessante oposição entre a cidade e a aldeota:
“Provisoriamente instalada no seu bucólico e numeroso retiro da aldeota, longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabugices de D. Terezinha e do mal hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado de Mestre Cosme e da Tia Joaquina, o aspecto úmido da mata resplandecendo num fundo verde-claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na larga convivência da natureza, tudo isso robustecia-lhe o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando lhe o quase extinto amor à vida, à alegria, à mocidade, e às apagadas reminiscências do bom tempo em que ela ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da vazante”.
Um nostálgico olhar de um passado perdido ante uma modernização sob as bases de uma monarquia católica engendraram uma sociedade falso-moralista, hipócrita e não solidária. A redenção num futuro republicano erigido sob as bases da ciência, sem com isso obscurecer as tradições de nosso povo. Esta parece ser a síntese sugerida na trajetória d’a Normalista.
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