Na dolorosa epopeia do gênio discutido e caluniado abre uma
exceção, que nos consola, este grande nome de Camilo Castelo Branco. Os grandes
homens insultados pela mediocridade confiaram sempre do futuro o glorioso
desagravo; Camilo encarregou-se da desforra; e os seus insultadores são homens mortos para
a imputação, desde a hora em que o gigante os discutiu, — dado que não vinguem
purificar-se no arrependimento e honrosamente confessá-lo.
Eu insisto ainda agora na expiação que me reabilita: se há quem
muito deva em lição, mais que muito salutar, ao mestre de todos nós, sou eu,
que lhe agredi o trabalho colossal, sem resvalar ao insulto ignóbil ao homem que mais
tarde me foi mestre e ao lar que
me recebeu amigo...
Pude assistir, hóspede, nesse lar, à formação do último livro de
Camilo. Pede-me a consciência, porventura iludida, um juízo favorável à consciência
dos insultadores do livro e do seu autor; — eu creio que os sentimentos de
simples equidade, avocados pela simplicíssima vergonha, dariam rebate à confissão
do erro no espírito desses transviados, se nesses espíritos pudesse transluzir
um clarão tenuíssimo daquele viver de sacras amarguras que tem o lenitivo
no trabalho, ou que desabafa em palavras de amigável incitamento quando a
provocação dos insensatos o não distrai para as violências do corretivo.
Afigure-se ao leitor de boa fé e de claro entendimento que a
sorte, raro propicia a entendimentos honrados, o levou em hora de paz ao
remanso de São Miguel de Seide. É hospede na hospitaleira morada. Alta manhã,
subiu ao gabinete de trabalho do mestre e achou-o solitário. Saiu da oficina
para o lugar do descanso: sobre o leito, presa dos sofrimentos físicos de cada
hora, que os sofrimentos morais vingam sufocar a espaços, o grande homem
descansa no trabalho. Não há que hesitar na interrupção: entrai: lá está o
sorriso socrático do mestre a receber-vos, carinhoso. Aí tendes a fera que se
propõem acossar uns tais que mal espulgam a insignificância nas horas ferozes
em que o pulguedo da vaidade parva lhes dá rebate às fúrias: aí tendes o homem feroz que
esses pregoeiros de especiarias podres apontam como o algoz de suas industrias
deles. Não hesiteis na expansão do vosso crer: ele — o verdugo — tem
indulgência e conselho para todas as ignorâncias; tem o silencio de favor para
as vaidades que o não insultam; o que ele não tem é a resignação criminosa da
bondade exagerada, quando os pigmeus chafurdam no pântano fetidíssimo da injúria
soez, no intuito de lhe salpicarem a formidável sombra; o que ele não tem é a
indulgência da exagerada caridade quando suspeita que o agressor ingênuo
encobre o vulto de vilão cobarde que se agacha na sombra, menos escura que a
alma do miserável.
Então, nesses momentos em que os profanos imaginam, à luz vermelha
da represália do mestre, uma irritação feroz, o grande homem converte o
insultador em títere, prende-lhe o cordel; puxa: as cambalhotas sucedem-se; o
público ri perdidamente, ou sente frêmitos de espanto: o insolente morde a
terra, e, quando o auditório espera a punhalada final vibrada pelo gigante, o
gigante aplica no esmurraçado nariz do iconoclasta um misericordioso piparote,
e ri.
Riso que seria crudelíssimo se a bondade da suprema força o não
temperasse...
Às vezes, quando o feroz inverno da aldeia me fornecia, benévolo,
o pretexto para conservar-me à beira de Camilo, o mestre concedia-me a leitura
do seu trabalho, e eu lia distraído: é que eu pensava, enquanto lia, nos
esforços de uns míseros parturientes que atroam os ares com os seus gemidos,
quando cerradas noites dolorosas de meditação lhes arrancam dez páginas
de original,
morto ao nascer, — uns reformadores sarrafaçais que põem a tratos de emendas os
compositores mártires, quando não preferem — no furor de produção — pôr a
tratos a crítica misericordiosa que lhes corrige, em que pese a safanões
ingratos, as demasias de desaforados absurdos. Confrontava, e confronto a
espontaneidade ubérrima e a ardentíssima e vigorosa seiva daquele espírito de
luz com a escuridade interior dos eunucos que o doestam lá da acolheita das
suas tropelias. É assim que o mister do crítico se distrai, a espaços, avocado
pelo dever de amargas retaliações.
A Corja,
elaborada ao correr da pena pelo mestre, é um novo documento para o processo da
mixórdia literária. Demonstra-se, uma vez ainda, que o esplendor da obra nova é
uma ilusão de ótica, fascinadora para o gentio zanaga, se os arrebiques não
ocultam o ouro de lei da concepção genial, ou da observação profunda, de par
com os conhecimentos da língua em que se escreve.
E raro ocultam esses tesouros.
O que por aí vemos, é a saudação aos arrebiques; e, justiça
inteira, se à pobre crônica jornalística não é vedado o ingresso nas sociedades
de geógrafos e
de escritores,
a crassíssima ignorância veda-lhe o uso da palavra em assumptos que demandam
estudo. Que há a esperar em afirmações de tal lote por parte desses eternos
infantes prodigiosos que trocam por bilhetes de teatro a sua triste colaboração
nas gazetas e os seus direitos de literato no Martinho ou na associação
risonha?
Eu não posso reproduzir-me no aquilatar da moderna escola, dos
modernos artistas, dos moderníssimos abortos e das deturpações que o trabalho
de boa fé tem obtido dos censores inconscientes e dos faciosos
instrumentos involuntários de uns tetrarcas burlescos da evolução deturpadíssima.
Mas que primores de saníssima linguagem, para lição crudelíssima dos abortos e
para nossa lição solicitada, não oferece o novo livro de Camilo! Depois, como a
espaços, transparece, no decorrer da epopeia de misérias, o moralista
mordacíssimo, e como nessa mordacidade transluz um raio de suprema piedade que
soem experimentar e conceder os espíritos de lei, firmados na base dupla do
estudo e da experiência dolorosa!
Eu pasmo — hoje — quando um espírito culto e de sérios precedentes
atira a luva, de envolta com a injúria, ao invencível atleta de mil combates.
Compreendo as agressões de uns gatunos que pedem a um puxão de orelhas a celebridade, uns
pelitrapos de botequim aceites na Associação dos escritores portugueses: mas,
que uma entidade pensante, no usufruto da imputação desça à camaradagem com a
suja horda — é o que não se pôde compreender sem derivar, para o triste caso,
da alucinação partidária, tanto monta — do mais triste faciosismo.
Ele, o flagelador da Corja,
não é apenas o erudito e paciente investigador da nossa história, o derradeiro
e mais ilustre mestre da língua portuguesa, “o gigante que fixou em livros
imorredouros toda a comedia portuguesa contemporânea” (palavras do Sr. A. da
Conceição no seu primeiro artigo sobre A
Corja); mal vai aos tristes agressores que o consideram imobilizado
nos estudos de há vinte anos: com a autoridade de quem assim levianamente
creu e mais tarde corrigiu os seus erros sobre Camilo e sobre outros, eu
poderia asseverar que o grande escritor acompanha no seu retiro da aldeia todo
o movimento literário e científico do período contemporâneo, — poderia
asseverá-lo, se não visse bater em retirada, após três dias de luta, a agressão
moderna ao suposto imobilizado... Mas não será um crime igual ao da agressão esta
aparência de defesa?
De homens como Camilo é uso dizer-se: “Está ainda mui perto de nós
para a justiça; o futuro há de fazer-lha”. Quer dizer: — Estabeleçamos como
norma o insulto aos mestres, durante a vida; mais tarde, depois da sua morte,
nos servirão seus nomes para injuriar os vivos! Oh! espíritos sublimados dos
homens de hoje, reformadores do existente, destruidores da torpeza legalizada!
se não aplicásseis todo o mármore disponível à construção das vossas próprias
estátuas antecipadas, se não empregásseis o vosso esforço em tentativas de
demolição das glórias justificadas, se não désseis guarida aos insignificantes
repletos de ódio e aos parlapatões repletos de charlatanismo, se abrigásseis o
respeito ao gênio aureolado pelos cabelos brancos e pelo saber, — não daríamos
o espetáculo permanente de contendas deploráveis entre os apregoados
voluntários do bom senso e da justiça.
---
ANTÔNIO DA SILVA PINTO
Camillo Castello Branco (1889)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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