Nascido em Lisboa, no Largo do Carmo, em 16 de março
de 1825, começou para ele o deslizar cruel duma vida de aventuras e de luta,
que uma nevrose hereditária exacerbou com tortura até o arrastar ao terrível
ponto final do suicídio. A primeira, a incomportável desgraça que o feriu, foi
a morte de sua mãe, D. Jacinta Marta Rosa de Almeida do Espírito Santo,
... mártir
que passou
como ele diz numa poesia inserta em Um livro.
Camilo era filho natural de Manuel Joaquim Botelho
Castelo Branco, cavalheiro de Vila Rial, e foi batizado em Lisboa, na igreja
dos Mártires, sendo seu padrinho o Dr. José Camilo Ferreira Botelho e madrinha
Nossa Senhora da Conceição. Os dez primeiros anos da sua vida passou-os ele em
companhia de seu pai, frequentando uma escola de primeiras letras do mestre
João Inácio Luís Minas Júnior.
No perfil biográfico do visconde de Ouguela, seu
condiscípulo nesta escola, diz Camilo:
Naquele ano
de 1884 nos encontramos. Meu pai morreu. E como eu já não tivesse mãe nem fosse
inteiramente pobre, a desgraça deparou-me parentes em Trás-os-Montes onde vim a
entender que não há lágrimas bastantes a deplorarem o destino dum órfão com
oito anos de idade, e as faces quentes e úmidas dos últimos beijos e das últimas
lágrimas de seu pai.
Noutro livro, Duas
horas de leitura, encontramos o seguimento da narrativa desta catástrofe:
Aos meus
dez anos levantou-se uma tempestade no seio da minha família. Uma vaga levou
meu pai à sepultura, outra atirou comigo de Lisboa, minha pátria, para um
torrão agro e triste do norte.
Este torrão agro e triste era uma aldeola de Vila
Rial. Para lá embarcou Camilo, acompanhado por sua irmã e uma criada, no vapor Jorge IV, por deliberação do conselho de
família.
Dos bens de seu pai nada lhe tocou. Dura lex...
Foi bem
pregada peça, diz ele, para que eu não tivesse a impudência de nascer, a
despeito da moral jurídica, filho bastardo de não sei que nobre. Disseram-me
que uma lei da Senhora D. Maria I me deserdava. A boa da rainha, se tivesse
amado mais cedo um certo bispo, não legislaria tão cruamente para os filhos do
pecado.
A criada que acompanhou Camilo na sua viagem de
Lisboa a Vila Rial passou à posteridade na prosa inconfundível do Mestre.
Chamava-se Carlota Joaquina: era uma mulher
gorda e frescalhona que bolsava os fígados do beliche abaixo, e gritava “á
del-rei”, de aflita com o enjoo.
Tinha razão para afligir-se a Sra. Carlota
Joaquina. Uma tempestade sacudiu violentamente o vapor, obrigando-o a arribar a
Vigo para não ir despedaçar-se de encontro às penedias da perigosa costa norte.
O safar-se o barco a salvo de tão perigosa jornada incutiu no espírito
religioso da boa velhota a ideia de transitar pelo Bom Jesus do Monte em
romagem piedosa de agradecimento ao Senhor que apazigua as tempestades e dá
ânimo e esperança aos corações que creem.
Uma vez cm Vila Rial encaminharam-se para a obscura
aldeia da Samardã, onde iam residir e onde Camilo devia começar a sua educação
literária na companhia amorável do padre Antônio de Azevedo, cunhado de sua
irmã. Com ele ia aprender latim, cantochão, e ler Fernão Mendes Pinto e Luís de
Camões. A este sacerdote exemplar dedicou Camilo um dos seus melhores romances,
O bem e o mal. Na sentida carta que
lhe dirige, como dedicatória, Camilo recorda com saudade os anos que viveu na
companhia desse padre e pergunta-lhe se ainda se recorda daquele incorrigível rapaz de 14 anos que ia à venda da Serra do Mésio
jogar a bisca com os carvoeiros, e a bordoada muitas vezes.
Esse rapaz
sou eu; é este velho que lhe escreve aqui do cubículo dum hospital, muito
vizinho ao cemitério dos Prazeres. Eu sou aquele a quem padre Antônio de
Azevedo ensinou os princípios de solfa, e as declinações da arte francesa. Sou
aquele que leu em sua casa as “Viagens de Ciro”, o “Teatro dos Deuses”, os
“Lusíadas”, as “Peregrinações” de Fernão Mendes Pinto e outros livros, que
foram os primeiros. Sou aquele que, sem saber latim, rezava matinas, laudas,
terça, sexta, etc., com padre Antônio. Sou, finalmente, aquele, a quem padre
Antônio disse: o tempo há de fazer de você alguma coisa.
A profecia do bondoso sacerdote cumpriu-se no
volver dos anos, como os senhores sabem: Camilo foi efetivamente alguma coisa —
o maior romancista português e o mais desgraçado de todos os homens.
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OLDEMIRO CÉSAR
Camilo Castelo Branco: sua vida e sua
obra (1914)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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