2/24/2020

Camilo Castelo Branco: "O maior amigo de Camões" (Ensaio)



O MAIOR AMIGO DE LUÍS DE CAMÕES
Matias Salazar nasceu no último quartel do século passado, em Lisboa. Era seu pai um professor de gramática latina, idólatra de Horácio, e mais ainda dos nossos escritores clássicos, e sobretudo de Luís de Camões. Colecionou o latinista uma camoniana quase perfeita. Privou-se muitas vezes de reformar a coçada casaca para comprar a edição rara, e não pequenas angústias domésticas lhe custou esta sublime loucura, que nos ricos é luxo, e nos pobres paixão digna de respeito.

O velho Salazar legou a seu filho Matias as melhores edições venezianas dos clássicos latinos, e a camoniana, ainda incompleta.
Matias recolheu com a herança preciosa a paixão paterna. Talvez lhe escasseassem recursos para enterrar modestamente o pai; talvez que os derradeiros lençóis se rompessem no trato da longa enfermidade; pode até ser que o herdeiro iludisse a fome com os êxtases contemplativos na livraria; é, porém, certo que Matias Salazar, conquanto magoado de saudades, gozava-se na posse da herança com júbilo, não semelhante na essência, mas igual na intensidade, ao de um perdulário herdeiro sequioso de esbanjar o cofre do pai avaro.
Herdara-lhe também a ciência o solitário Matias. Sabia latim em grande cópia; e, posto que a idade fosse verde ainda para o magistério, os pais dos discípulos, informados do bom proceder do moço de vinte e dois anos, consentiram que seus filhos se aperfeiçoassem com ele.
O viver de Matias era lecionar latim, e reler Os Lusíadas ampliando as notas, que seu pai escrevera, em acrescentamento às do licenciado Manuel Correia, edição de 1613. Neste lavar, enlevo das horas roubadas ao repouso, o professor esquecia-se de providenciar para as sopas do dia seguinte, quando acontecia gastar nalguma versão estrangeira d’Os Lusíadas os amuados cobres que forrava da pitança de cada mês. A necessidade aguilhoava-o algumas vezes em seu letárgico desprezo das reclamações do estômago, e então repetia consigo estas palavras do príncipe dos poetas do seu tempo:
“...Aí está o meu Antônio, pedindo-me quatro maravedis para carvão, e não tenho para lhos dar.” E acrescentava, falando a si próprio: “Como ousas tu carpir-te, miserável verme, se não tens um pão em casal?”
Num desses dias de extrema necessidade, um erudito abastado procurou Matias para examinar a sua camoniana, ainda incompleta. O curioso olhou em derredor de si, e viu a indigência tão escrita nos móveis como no semblante e trajos do possuidor da camoniana. Animou-o o aspecto da pobreza a propor ao latinista a venda do seu tesouro. Matias respondeu:
— Primeiro, venderia o sangue das veias, senhor!
— Talvez não saiba — replicou o rico — que eu lhe dou quatrocentos mil-réis pela coleção das suas edições.
Não vendo, senhor; e creia que vivo do magro jantar de ontem, porque no princípio do mês comprei o tomo VII das Memórias da Academia, em que vem impresso o Discurso do Conde da Barca contra de la Harpe, detrator do nosso Camões.
— Sendo assim — redarguiu o douto — o senhor tem a cabeça desarranjada! Matias Salazar sorriu amargamente à injúria, e reteve no peito a resposta e a desafronta.
***
Outro erudito de melhor cabeça e coração, e já sobre idade, procurou o mestre de latim para ver algumas folhas danificadas dum comento às rimas de Luís de Camões, escritas por João Pinto Ribeiro, a alma da revolução de 1640. Porção do manuscrito, que chegara a estar na tipografia, Deus sabe por que esforços e dinheiro, chegou às mãos do pai de Matias! Examinou o douto apaixonado as páginas; e maravilhou-se do muito que o paciente moço cavara no terreno filológico para recensear as palavras inovadas pelo imortal épico, ou restauradas do português antigo. De sorte se travaram e amistaram os dois amigos de Camões, que daí em diante passavam juntos as suas horas feriadas. A situação doméstica de Matias melhorou consideravelmente. O amigo espiava-lhe as necessidades, e providenciava a tempo e com a delicadeza, melhor que o favor, de modo que o filólogo mal sabia quando o pequeno lucro das lições se acabava. A tanto chegou o afeto do velho, que lhe ofereceu uma sua filha, menina de prendas com patrimônio bastante para a independência. Matias pediu espera de tempo e reflexão, e saiu com uma resposta de que o próprio velho se espantou:

— Eu tenho todas as minhas faculdades sujeitas ao amor destes livros — disse o gramático. — Vivo alheio a tudo, e concentrado num só ponto. A minha paixão é o estudo. Se eu trouxer para junto de mim uma senhora, serei como um amigo; mas verdadeiro amante, como entendo que deve ser o marido, isso é que eu, a pesar meu, nunca saberei ser. Seria desditosa a senhora que casasse comigo, se ela não amasse os meus livros mais que a mim próprio, Tenho vinte e cinco anos, e nunca experimentei leve desejo de me casar, ou mesmo de entreter o coração com afetos estranhos ao estudo. A idade das paixões passou, sem eu dar fé que passava. Já agora assim irei indo, e bem vou, se alguma imprevista desgraça me não tolher este obscuro contentamento.
Não teve que retorquir o velho, nem o seu amor-próprio se ofendeu. Continuaram na maior intimidade, manifestada por uma nova prova de dedicação por parte do erudito, que valia muito com os homens grandes do reinado de D. Maria I e da regência de D. João.
Vendo o velho que o seu amigo, com tantas horas de trabalho, escassamente ganhava para alimentar-se e vestir-se com a aurea mediocritas, que o professor tanto encarecia, cuidou em arranjar-lhe emprego numa secretaria de Estado. Consultou a disposição do moço, e, como o visse rebelde a aceitar ocupação incombinável com o gênero de seus estudos, levou-o a aceitá-la, prometendo conseguir que o ministro o dispensasse da assiduidade nos trabalhos de escrivaninha. Aceitou Matias o emprego; e, zeloso no cumprimento dos seus deveres, sujeitou-se, sem faltar um dia, aos trabalhos que tão longe estavam de se compadecerem com a sua índole literária. O velho tomou a peito melhorar-lhe a mobília, e ordenar-lhe em melhores estantes os livros, que iam crescendo à medida que aumentavam os lucros.
***
Em 1811, sofreu Matias Salazar uma das maiores dores de sua vida, senão a  maior, depois da morte de seu pai. Então foi que José Agostinho de Macedo saiu a lume com as suas Reflexões Críticas sobre o Episódio do Adamastor em Os Lusíadas, Canto V, Oitava 39. Luís de Camões era deprimido pelo zoilo; a imagem sacratíssima dos amores de Matias era enodoada pela saliva pestilencial do sórdido graciano. Sábio algum, português ou estrangeiro, se atrevera a menosprezar o maior poeta do seu século! Lá fora as multiplicadas versões em todas as línguas; na pátria as sucessivas edições veneradas como o arquivo único dos fastos dela; o poema de Camões posto como base de eterno bronze às ruínas da nação que descobrira mundos! e, assim mesmo, houvera um português a chafurdar na lama da inveja, e ousou sacudi-la à face do decrépito Portugal, que não tem mais glórias vivas que as do seu poeta! Profunda angústia excruciara o coração de Matias!
Posto que carecesse do hábito de escrever e dar relevo e ordem à sua muita leitura de epopeias clássicas, Matias Salazar escreveu um folheto contra o detraidor de Camões, e à sua custa o estampou, e gratuitamente o distribuiu para acelerar o conhecimento da resposta, temendo que o pô-lo à venda retardasse, e tivesse alguns fracos ânimos suspensos, ou inclinados às razões de José Agostinho. Para satisfação do nosso português de fina têmpera, saíram à liça, contra o crítico, João Bernardo da Rocha, e Pato Moniz; mas o graciano recalcitrou com obcecada contumácia, e mais injuriosas invetivas no Exame Examinado que publicou em 1812, ao mesmo tempo que ostentava O Gama com desenfreada filáucia.
Decorreram oito anos em que a intervalos a polêmica do contumaz fradalhão fez febres de raiva a Salazar. Recrudesceram estas ao extremo afogo da indignação, quando José Agostinho estampou uma geral Censura dos Lusíadas depois de haver publicado o Oriente no estólido e protervo intuito de se avantajar à epopeia de Camões, tratando o mesmo motivo do descobrimento de novos céus e novos climas “por mares nunca dantes navegados”.
Com que prazer, porém, Matias Salazar não leu a Agostinheida! Aí era engenhosamente biografado o frade com mordente sátira, e verberado por látego de mão que sabia onde estavam as fibras mais doridas! Salazar decorou os relanças mais sarcásticos, para os andar declamando a quem lhe pagava a canseira com estrídulas risadas, com as quais pensava ele vingar bem vingado o seu Camões. Promiscuamente declamava ele a prosa faceta de “O Gigante Adamastor vingado, ou o Gama convertido em Gamelada” apologia de Camões, e severas palmatoadas que estouravam nas sacrílegas mãos do frade.
A primeira vez que aos olhos de Matias Salazar chegou o poema de Almeida Garrett, deu-se lá naquela entusiástica alma uma alegria, que só outra maior ele teve em sua vida, e essa hão de ver que o desceu à sepultura. Extraordinário devia ser o alvoroço de seu espírito, à só palavra Camões, para, desde o prefácio, absolver o autor do livro destas palavras: “...declaro desde já que não olhei a regras nem a princípios, que não consultei Horácio nem Aristóteles, mas fui insensivelmente depôs o coração e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte e operações combinadas do espírito.”
Se Matias, num outro qualquer poema, não intitulado Camões, lesse o atrevimento de “não consultei Horácio nem Aristóteles”, lançaria de si o livro atentatório dos preceitos e dos invioláveis sacramentos da arte.
Leu de um só fôlego o livro das saudades, o hino grandioso do que fomos como heróis, e a aspérrima condenação do que fomos como ingratos.
E desciam-lhe a quatro as lágrimas, quando declamava:
Correi sobre estas flores desbotadas
Lágrimas tristes minhas, orvalhai-as,
Que a aridez de sepulcro as tem queimado.
Rosa d’amor, rosa purpúrea e bela,
Quem entre os goivos te esfolhou da campa?

Depois da restauração, Salazar pôde ver o autor do poema; não ousara falar-lhe, mas deliciava-se a contemplar a espaçosa fronte, donde saíra a crônica de Luís de Camões, como os anjos poderiam escrevê-la. Um erguera à pátria uma ara onde fumará eterno o incenso do gênio; o outro, na ara da pátria, erigira o grão-cantor como símbolo já agora quase único das venturosas e efêmeras glórias dela, com ele mortas.
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Os olhos turvas para o céu levanta;
E já no arranco extremo: — “Pátria, ao menos
Juntos morremos...” E expirou coa pátria.

***

Matias Salazar, posto que tivesse sempre vivido alheio a partidos, e até ignorasse as leis da monarquia e o legítimo senhor do trono português, foi demitido em 1834 do seu lugar da secretaria, que exercera cerca de quarenta e tantos anos, A desfortuna não lhe fez dano com esta injustiça. Nesse, ou no seguinte ano, morreu em Lisboa um cônego, seu parente, que lhe deixou fazendas na província de Trás-os-Montes, bastantes para sustentar-lhe os restantes anos da vida com decência e quietação de ânimo. E, como a esse tempo, Matias Salazar soubesse que vivia em necessidade a filha do seu defunto amigo, já com filhos — a mesma que lhe fora oferecida, e depois casara com um delapidador do patrimônio, e de quem enviuvara — levou-a para sua companhia, acarinhou-a como a irmã, e entregou-lhe a administração de todos os seus haveres. Nobre procedimento do velho que assim pagou a amizade do outro!

Neste tempo, deu-se Salazar com todo o fervor de seu peito aos velhos amores do seu Camões. Cogitava ele em escrever-lhe a vida; mas descorçoava-o a pouquidade de notícias elementares com que urdi-la, sem seguir as pisadas dos outros biógrafos. Neste desejo, mal ajudado pela imaginação cansada, saiu de Lisboa em demanda do lugar onde Camões passara a sua primeira época de desterro, por amor de Catarina de Ataíde, ou por haver ferido em duelo o maledicente que mareara a clara fama da sua Natércia.
A duas léguas de Abrantes, no declive da montanha que se lava no Tejo. Onde agora é Constança, parou Salazar, e aí repetiu às solidões os versas do desterrado; e de lá, olhando a torrente do Tejo e as barcas que vêm derivando para Lisboa, exclamavacom o poeta:
Até que venha aquele alegre dia
Que eu vá onde vós ides, livre, e ledo;
Mas tanto tempo quem o passaria!

Não pode tanto bem chegar tão cedo:
Porque primeiro a vida acabaria
Que se acabe tão áspero degredo.

O velho compenetrava-se de suas doridas fantasias, e consubstanciava, na sua, a alma do poeta alanceada da bárbara ingratidão dos seus contemporâneos. Esta dor, igual à que ele poderia sentir pelos infortúnios de um extremoso amigo, parecer-vos-á singular, senão maníaca. Seja como for, a amargura do amigo de Luís de Camões era sincera. Talvez se deva explicar tamanha singularidade por uma desordem do espírito, preparada desde os tenros dezoito anos, em que ele começara a idolatria do poeta; e, depois, a soledade de uma longa vida, e o concentrar-se naquele só pensar e meditar, quer-me parecer que tanto basta para justificar a dor que lhe representa a constante imagem do tão infeliz como sublimado glorificador da pátria.
Arfava-lhe em ânsias o peito, quando na mente, como a traços de fogo, lhe saía  o soneto de Camões, invocando a morte, como remédio ao cru tormento da saudade, encruado pelo da miséria:
Oh! quanto melhor é o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh! quanto melhor é um só momento
Que livra de anos tantos de agonia!
etc.
Igual comoção o debulhava em lágrimas, repetindo a tão maviosa estância d’Os Lusíadas:
E ainda, ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem;
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prêmio de meus versas me tornassem.

A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.

***

E enlevava-se em dolorosas e sombrias meditações o velho Salazar, pensando na morte do poeta.
Conquanto frei José Índio, monge de Guadalaxara, anotasse à margem de um exemplar d’Os Lusíadas: “lo lo bi morir en un hospital de Lisboa sin tener una savana con que cobrir-se...” Matias acreditava que Luís de Camões tivesse morrido na Albergaria de Sant’Ana, asilo de caridade, em que os pobres iam curar-se nas doenças, ou morrer delas. Sabia o velho que do palácio dos Vimiosos fora a mortalha para o cantor de Inês, e daí inferia que o poeta, a ter morrido no hospital, receberia a mortalha da Santa Casa.
Passava o velho horas em êxtases defronte de umas ruínas, vizinhas da ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz, junta ao Arco de Sant’Ana. Ali dizia a tradição que morara o poeta; e pondera Faria e Sousa que nunca mais fora habitada aquela casa. Dali ou de uma próxima albergaria fora arrancado o cadáver dos braços da atribulada mãe, e levado à igreja das franciscanas, e lançado em pobre sepultura.
Mas — clamava Salazar num brado íntimo:
Onde jaz, Portugueses, o moimento
Que do imortal cantor as cinzas guarda?

E andava como perguntando às rumarias e pedras mudas daquele convento pelas cinzas que sacudira de si a grande alma, batendo as asas que a levaram à bem-aven-turança.
Ao seu pungente cismar respondiam os versas de Garrett:
Nem o humilde lugar onde repousam
As cinzas de Camões, conhece o Luso.

Foi de júbilo para Salazar, quando o Sr. Antônio Feliciano de Castilho, em 1835, alvitrou à “Sociedade dos Amigos das Letras” explorar-se a sepultura de Camões; mas logo se atravessou a guerra civil, e esqueceu exumar os ossos, quando se cavavam sepulturas para enterrar as vítimas do ódio político.
Mais tarde prosseguiram as diligências. Matias Salazar, se bem que estranho aos comissionados na exploração, assistiu hora por hora nos trabalhos, e deu a medo o seu parecer em todas as conjecturas. Em certo local apareceram uns ossos envoltos em pouca terra. A comissão decidiu que eram aqueles os ossos de Luís de Camões.
Almeida Garrett, neste pressuposto, escreveu em 1839: “para mim é moralmente certo, é provado, quanto humanamente se pode provar em casos tais, que ali estão as cinzas de Camões. O lugar é o da história; de todos os sinais que ela nos dá para reconhecermos aquele sepulcro venerado, só nos falta a loisa que o terremoto esmigalhou”.
Matias Salazar, quando pôde, a furto, curvar-se sobre a suposta e já proclamada sepultura do poeta, tomou com mão convulsa uma vértebra daquela ossada, e escondeu-a com avara sofreguidão, e religioso terror.
Quando chegou a casa, sumiu-se no estreito recinto dos seus livros, beijou o osso, e permaneceu horas num espasmo, cujo sinal único de vida eram umas lágrimas, que eu bem não sei se devam chamar-se de alegria.
***
Quando um sujeito de Aveiro escreveu, em 1852, uma carta ao Sr. Alexandre Herculano, perguntando-lhe se uma D. Catarina de Ataíde, sepultada no convento de São Domingos de Aveiro, seria a amada de Luís de Camões, Matias teve notícia dessa carta, e o mesmo foi logo partir para Aveiro a examinar os dizeres das memórias contemporâneas dum frade, confessor daquela D. Catarina de Ataíde, e ali vivera e morrera. O velho examinou a memória, ouviu a tradição, confrontou-a com a história, e concluiu que as cinzas da infausta amante do poeta estavam no extinto convento de São Domingos de Aveiro.
Grande, porém, senão dolorosa, foi a admiração de Salazar, quando, anos depois, lendo o primeiro tomo da edição das obras de Camões, precedida duma detençosa e ilustrada biografia do poeta escrita pelo Sr. Visconde de Juromenha, encontrou as seguintes linhas:
“...Mas como existiam duas senhoras do mesmo nome e apelido, servindo ambas no emprego de damas da rainha D. Catarina, ao mesmo tempo que o poeta frequentava a corte e o paço, cumpre distinguir qual destas duas senhoras foi a amante do poeta. Era uma delas D. Catarina de Ataíde, filha de Álvaro de Sousa, terceiro filho de Diogo de Sousa Castelanho de Arronches, senhor de Vagos, Eixo, Requeixo e outros lugares no termo de Aveiro, mordomo-mor da rainha D. Catarina, e casado com D. Filipa de Ataíde, filha de Cristóvão Correia, comendador de Alvaiade, de quem teve, além de outros filhos, esta D. Catarina de Ataíde, que foi dama da rainha D. Catarina, e morreu moca, pouco tempo depois de haver casado com Rui Pereira de Miranda Borges, senhor de Carvalhais, e jaz sepultada na capela mor do extinto convento de São Domingos de Aveiro, onde tem um epitáfio pelo qual consta que falecera aos 28 de setembro de 1551. Em uns apontamentos manuscritos contemporâneos, datados do ano de 1573, que existiam entre os papéis deste convento, e escritos por um frade por nome frei João do Rosário, havido em grande crédito, conforme a tradição do convento, e que se diz ter sido confessor desta senhora nos últimos tempos em que vivera, se leem estas palavras: E toda las vezes que no poeta desterrado por essa razão lhe falava, sempre em resposta havia que assim não era, e que fora aquela alma grande, que para empresas grandes, e a regiões tão apartadas o levara”.
Acrescenta, algumas linhas depois, o douto Visconde de Juromenha:
“Pela delicada negativa que esta faz, se vê, que abstraindo de si a imputação que se lhe fazia, se absteve de nomear a outra senhora, não só por amizade e deferência com a companheira, mas talvez porque razões mais fortes a impeliam a guardar o segredo exigido... etc.”.
Ora, Matias Salazar tinha tirado das palavras de D. Catarina de Ataíde ao seu confessor inferências justamente apostas às do Sr. Visconde de Juromenha, e nelas permaneceu, depois mesmo que o eminente escritor deu a razão das suas.
Matias firmara as suas convicções nas seguintes bases:
O confessor falou mais de uma vez em Luís de Camões a D. Catarina de Ataíde. E toda las vezes que no poeta desterrado por essa razão lhe falava, diz a memória. Raciocinava Salazar que a suspeita do confessor já não era só suspeita enquanto a ser aquela D. Catarina a amada do poeta; no que ele insistia era em saber se a ida dele para a Índia fora motivada por esse amor tão notório, ou por desejos de engrandecer-se no Oriente. A isto respondia a modesta senhora que não fora o poeta desterrado por causa dela, por essa razão; mas sim porque tinha uma alma grande, aspirando a grandes empresas, e impelido por essa grande alma, e não por desgostos de coração, se fora a regiões tão apartadas.
Pedia Salazar que notassem a clareza do apontamento do confessor, e dizia:
“Se o frade estivesse duvidoso enquanto à pessoa, não formularia deste modo o seu dizer, poeta desterrado por essa razão — por causa dela. Falava-lhe como de coisa sabida. O que ele queria era saber se ela fora a causa essencial da ida de Camões para tão longe da pátria.”
E admirava-se, pois, Salazar que o Sr. Visconde de Juromenha pudesse interpretar as palavras do frade tão ao invés do que elas ostensiva e virtualmente dizem, a ponto de rematar assim a sua análise e confronto: “Não sendo, portanto, esta, cumpre averiguar qual era a verdadeira amante do poeta.”
Eu, por minha parte, inclino-me à opinião que o leitor quiser, respeitando muito a rejeitada.
***
Desde que alguns patriotas aventaram a ideia de erigir uma estátua a Luís de Camões, o nosso velho andava radioso de alegria, já lendo’ a opinião da imprensa enquanto ao local, já pedindo aos artistas o seu plano, e oferecendo modestamente os alvitres com que sonhava para sair grande e digno o monumento. A sua ideia era que a estátua se levantasse no Campo de Sant’Ana, por ter sido a praça convizinha da casa onde habitara o poeta, e por outras excelentes qualidades topográficas. Levou a um jornal o seu voto com um extenso artigo; mas os redatores perderam o artigo, e acharam que a feira da ladra não podia ser deslocada em sacrifício a uma estátua, nem a estátua sofreria que em volta da sua base se estendessem andrajos e ferraria.
Matias Salazar benzeu-se quando viu designado entre dois restauradores à la carte o local para o monumento de Luís de Camões; mas pediu a Deus que o não deixasse morrer, sem ver uma pedra que rebatesse os tiros de estrangeiros, por quem somos apelidados bárbaros.
Quando ele manifestava este anelo a alguns amigos, estes riam dos oitenta e oito anos do ancião, que pedia vida de Nestor para ainda ver a estátua de Camões!
No princípio deste ano de 1862 Matias Salazar caiu no leito entrevado, e debalde esperou recobrar forças.
— Poderei ir ao menos numa sege ou cadeirinha ver a estátua do meu amigo de infância?
O médico, a quem era feita a pergunta, ria-se da tontice do velho, cuidando que ele se imaginava contemporâneo de Camões.
Tinha Matias em sua companhia um filho e os netos da filha já defunta do erudito que o empregara na secretaria.
Todos os dias lhe liam um canto d’Os Lusíadas, que ele emendava logo que o leitor passava em claro um verso ou algum monossílabo. Se lhos declamavam mal, tremia como se lhe aplicassem a pilha galvânica aos nervos atrofiados.



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CAMILO CASTELO BRANCO
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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